
Então comandante do Exército reafirma que não concordou com a trama golpista. “O brigadeiro [Batista Júnior] também foi contrário a qualquer coisa naquele momento”, disse Freire Gomes em depoimento no STF como testemunha de acusação
O Supremo Tribunal Federal (STF) começou a ouvir, nesta segunda-feira (19), as testemunhas da acusação na ação penal que investiga a existência de uma trama golpista para manter o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no poder após a derrota nas urnas, em 2022. O relator do caso, Alexandre de Moraes, preside as oitivas, acompanhado pelos ministros Cristiano Zanin, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Flávio Dino, da primeira turma.
A rodada de depoimentos marca o início de uma maratona de audiências que deve durar ao menos duas semanas, com a escuta de 81 testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa. O objetivo é esclarecer a organização e a execução da trama golpista, identificando os principais articuladores e seus papéis.
A PGR denunciou Bolsonaro e mais 33 pessoas por golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e organização criminosa. Segundo o órgão, a trama teve como líderes o ex-presidente Jair Bolsonaro e o ex-ministro da Defesa general Braga Netto. O procurador-geral da República, Paulo Gonet, e os réus Bolsonaro e Braga Netto também acompanharam as oitivas.
No depoimento, o general Freire Gomes, então comandante do Exército, reafirmou que advertiu o presidente de que não concordava com as ações golpistas patrocinadas por ele. “Eu estava focado na minha lealdade de ser franco ao presidente do que nós pensávamos. O brigadeiro também foi contrário a qualquer coisa naquele momento”, disse Freire Gomes.
O general Freire Gomes, assim como o brigadeiro Carlos Almeida Baptista Junior foram arrolados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) como testemunhas de acusação. Eles já haviam prestado depoimentos e confirmaram que Bolsonaro apresentou a minuta do golpe.
De acordo com a investigação da Polícia Federal, Bolsonaro apresentou a seus auxiliares e aos comandantes das Forças Armadas três dispositivos como base para sustentar a ação golpista: a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o Estado de Defesa e o Estado de Sítio. O plano previa a intervenção na Justiça, anulação das eleições, a prisão e até a morte de autoridades.
Sobre o comportamento dos demais militares que estiveram com Bolsonaro na ocasião, Freire Gomes disse que eles não foram os mesmos do que ele e o comandante da Aeronáutica. “Como fui muito enfático naquele momento, que eu me lembro, o ministro da defesa ficou calado, e o almirante Garnier apenas demonstrou o respeito ao comandante-chefe das forças armadas, não interpretei como qualquer tipo de conluio”, disse o general diante de Moras.
O ministro Alexandre Moraes viu contradição entre esta declaração do general dada hoje no depoimento ao STF e o seu depoimento à PF no ano passado. O general enfrentou o questionamento de Moraes. “Nunca menti. O Almirante Garnier tomou a posição de estar com o presidente. Não omiti o dado. Ele disse que estava com o presidente, agora a intenção do que ele quis dizer não me cabe”, disse.
Em seu depoimento à Polícia Federal, em março de 2024, Freire Gomes relatou: “que o depoente [Freire Gomes] e o Brigadeiro Baptista Junior (Aeronáutica) afirmaram de forma contundente suas posições contrárias ao conteúdo exposto; que não teria suporte jurídico para tomar qualquer atitude; que, acredita, pelo que se recorda, que o Almirante Garnier teria se colocado à disposição do Presidente da República”, escreveu a PF.
Freire Gomes novamente reafirmou que alertou Bolsonaro sobre os riscos de agir fora dos limites legais, mas negou que tivesse ameaçado dar voz de prisão a Bolsonaro. “A mídia até disse que eu dei voz de prisão ao presidente, e isso não aconteceu”, declarou Freire Gomes. Ele explicou que, durante conversas com outros comandantes militares, deixou claro que qualquer ação contrária ao processo eleitoral significaria atuar fora da legalidade.
Além do general Freire Gomes, também foram ouvidos nesta segunda-feira Adiel Pereira Alcântara, ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal; Clebson Ferreira de Paula Vieira, ex-integrante do Ministério da Justiça; e Éder Lindsay Magalhães Balbino, responsável por uma empresa contratada pelo Partido Liberal (PL) para fiscalizar as eleições.
Éder Balbino, que foi ouvido logo no início, afirmou não ter encontrado indícios de fraudes nas urnas eletrônicas. Ele é dono de uma empresa acusada de ter auxiliado na produção de um material com suspeitas infundadas sobre o sistema eleitoral.
Ele também afirmou ter ouvido a voz do ex-presidente Bolsonaro durante uma reunião, com outras pessoas.
Clebson Viera, que é servidor do Ministério da Justiça, foi ouvido em seguida. No depoimento, ele disse ter ficado “apavorado” ao perceber que a Polícia Rodoviária Federal (PRF) teve uma atuação diferenciada em municípios nos quais as pesquisas apontavam vitória de um ou de outro candidato.
Adiel Pereira Alcântara, ex-coordenador de inteligência da Polícia Rodoviária Federal (PRF), afirmou em seu depoimento que ouviu uma ordem do então diretor de operações da PRF, Djairlon Henrique Moura, para que a inteligência do órgão atuasse para reforçar abordagens de ônibus e vans durante as eleições de 2022. A orientação da chefia era que a PRF deveria “tomar um lado”, por determinação do diretor-geral.
Na denúncia, a Procuradoria afirma que o grupo usou recursos da PRF e do Ministério da Justiça para tentar barrar o voto de possíveis eleitores de Lula, na data do segundo turno. O ex-diretor-geral da corporação, Silvinei Vasques, é réu no processo.
“Entre as pautas que foram discutidas na reunião, o inspetor de Djairlon, que era o diretor de operações, ele pediu um apoio ao diretor de inteligência, inspetor Reischak, para que a inteligência apoiasse a área de operações no indicativo de abordagens de ônibus e vans que tinham como origem os estados de Goiás, São Paulo, Minas e Rio de Janeiro e destino no Nordeste”, afirmou.
Questionado na oitiva, Adiel disse que questionou o diretor sobre o porquê de as abordagens mirarem apenas veículos desses estados e com destino ao Nordeste. E ouviu como justificativa que eram estados com alta incidência de acidentes em períodos de longos fluxos.
“Eu não me convenci, e transpareci que achei estranho aquela ordem. E aí ele falou, não sei qual foi contexto que ele falou, mas ele falou mais ou menos o seguinte: ‘Tem coisas que são e tem coisas que parecem ser. Está na hora da PRF tomar lado. A gente tem que fazer jus das funções de direção e aquilo era uma determinação do diretor-geral”’. A testemunha destacou ainda que a ordem foi reiterada no dia seguinte, pelo então diretor de inteligência Reischak, em novo encontro que reuniu diretores de inteligência dos estados.
“Nessa reunião, o inspetor Reischek pegou esse pedido de apoio da diretoria de inteligência e repassou para as unidades regionais de inteligência. Ele repassou essa determinação do inspetor Djairlon, diretor de operações, para os ‘Ceints’ (chefes de serviços de inteligência dos estados)”, afirmou Adiel.