Este artigo, com o título Génocide au Yémen sous l’égide des États-Unis, foi publicado originalmente em Le Grand Soir, a 24 de outubro de 2018. A tradução é de Rosanita Campos.
DAVID WILLIAM PEAR
“Só Deus pode salvar nossas crianças”, dizem os pais e as mães iemenitas, obrigados a verem seus filhos morrer sem poder fazer nada além de confortá-los em seus derradeiros instantes de vida, rogando a Deus que os salve. Os pais e as mães rezam e os consolam, enquanto, um após outro, seus filhos morrem de cólera, desidratação e fome.
Onde está Deus? Não é possível atravessar o bloqueio total imposto pelos EUA ao Iêmen para salvar seus filhos. Uma epidemia de cólera não é uma catástrofe natural, é uma obra humana.
Desde 2015, a epidemia de cólera se instalou em consequência da guerra biológica contra o Iêmen. As bombas americanas, despejadas pelos pilotos sauditas, destruíram os sistemas de água e esgoto do Iêmen. Peças de reposição, produtos químicos e combustível, necessários para a operação de estações de tratamento de água e esgoto do Iêmen, foram proibidos de entrar no país. Água potável, a vacina contra a cólera, e até mesmo os comprimidos de purificação de água, não podem entrar. O surto de cólera resultante era previsível.
A água de esgoto das estações de tratamento transborda para os cursos de água que irrigam as terras agrícolas, contaminando os vegetais antes de serem colocados no mercado. A água residual flui para as cidades, áreas residenciais e campos de refugiados. Moscas pululam sobre águas residuais e espalham cólera por toda parte. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha, o Crescente Vermelho e os Médicos Sem Fronteiras, hospitais, clínicas, organizações humanitárias e defensores dos direitos humanos foram alvos de atentados.
As Nações Unidas, controladas pelos Estados Unidos, dão uma aparência de legalidade ao bloqueio e ao embargo de armas que, unilateralmente, visa o Iêmen. Não faz sentido perguntar por que a ONU também não proibiu a entrega de armas à Arábia Saudita. Nós sabemos a resposta.
A ONU está triste com a crise humanitária e a pior epidemia de cólera na história da humanidade. Mas a ONU não faz nada para deter o genocídio cometido pelos sauditas, sob o comando dos Estados Unidos, ou a destruição do Iêmen, e publica conscientemente valores falsos e subavaliados sobre o número de mortes de civis.
A ex-embaixadora dos Estados Unidos na ONU, Nikki Haley, ficou furiosa quando as Nações Unidas ousaram criticar timidamente os Estados Unidos por transferirem sua embaixada para Jerusalém. Ela falou da falta de respeito das Nações Unidas pelos Estados Unidos e ameaçou represálias financeiras contra as Nações Unidas e países cujos votos não estavam de acordo com os desejos dos EUA. A ONU não é um mediador honesto, porque é dominada pelos Estados Unidos e tem medo de contrariá-los.
O presidente Donald Trump reduziu o financiamento para as agências humanitárias da ONU, não tentou impedir Israel de assassinar milhares de palestinos desarmados, retirou os Estados Unidos do Conselho de Direitos Humanos da ONU e zomba do Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas. O conselheiro de segurança nacional de Trump, John Bolton, disse que os Estados Unidos planejam se retirar de um grande número de tratados que formam a base e os fundamentos do direito internacional.
Em outras palavras, Bolton confirma que os Estados Unidos são um estado pária; eles ridicularizam as Nações Unidas. Desde o início da guerra contra o terror na era Bush, os Estados Unidos mostraram o maior desprezo pelas Convenções de Genebra. Obama também violou o direito internacional consuetudinário impunemente. Obama assassinou cidadãos norte-americanos, bombardeou casamentos e funerais no Afeganistão e destruiu a Líbia. Ele invadiu a Síria em uma guerra ilegal de agressão. Obama era especialista em matar. Parece que ele até se gabou disso.
Causar uma epidemia de cólera deliberadamente, equivale a conduzir uma guerra biológica.
O Iêmen não é o primeiro país contra o qual os Estados Unidos usam armas biológicas e químicas. Durante a Guerra da Coreia da década de 1950, os Estados Unidos foram convincentemente acusados de guerra biológica.
Durante a Guerra do Vietnã, os Estados Unidos pulverizaram milhões de litros do agente laranja, que envenenou o solo, rios e pessoas. O agente laranja, 50 anos depois, “ainda causa abortos espontâneos, doenças de pele, câncer e má formação congênita”.
Os Estados Unidos contaminaram a Bósnia, o Afeganistão e o Oriente Médio com urânio empobrecido. O urânio empobrecido pode causar câncer, defeitos congênitos e provavelmente muitos outros problemas de saúde. Os Estados Unidos sabem disso. Veteranos americanos da guerra no Iraque receberam um alerta de saúde, pois poderiam estar contaminados.
Em 1995, Madeleine Albright foi entrevistada por Lesley Stahl no programa ’60 Minutes ‘. Esta entrevista deveria estar eternamente no lugar de honra no Museu da Infâmia. Stahl perguntou a Albright se as mortes de mais de 500 mil crianças iraquianas, causadas pelas sanções dos EUA, “valia a pena”. A resposta de Albright foi: “Eu acho que é uma escolha muito difícil, mas o resultado… nós achamos que o resultado valeu a pena” (Albright não nos disse quem eram “nós”). Agora sabemos que ‘nós’ deliberadamente usamos a guerra biológica para matar 500.000 crianças iraquianas.
Quantas outras crianças, Albright, o governo Bill Clinton e ‘nós’ matamos no mundo porque ‘nós’ achamos que valeu a pena?
Centenas de milhares, de acordo com um estudo do documento parcialmente desclassificado da Defense Intelligence Agency, “IRAQ WATER TREATMMENT VULNERABILITIES” [maiúsculas no original]. O documento, parcialmente desclassificado, foi descoberto em 1998, em um site oficial do Sistema de Saúde Militar. Em 2001, a Associação para Vítimas de Genocídio divulgou o estudo acima mencionado: “O Papel das ‘Vulnerabilidades no Tratamento de Água no Iraque’ para Acabar com o Genocídio e Prevenir Outros Genocídios”.
Durante a primeira Guerra do Golfo, de 1991, os Estados Unidos deliberadamente atacaram todas as instalações de purificação de água e saneamento no Iraque, o que, em si, é um crime de guerra. As vulnerabilidades do tratamento da água no Iraque, produzidas pelo Departamento de Defesa dos EUA e implementadas em 1991, continuaram a ser implementadas pelo presidente Bill Clinton. Mesmo depois que Albright admitiu no programa ’60 Minutes ‘que o regime de sanções dos EUA matou 500 mil crianças iraquianas,’ nós’ continuamos com o embargo draconiano de equipamentos de purificação de água.
O Ministério da Defesa e o ‘nós’ de Madeleine Albright sabiam que sem água potável, as doenças transmitidas pela água, como a cólera, afetariam e matariam centenas de milhares de iraquianos. Privar uma população inteira de necessidades básicas para a vida é genocídio e é uma violação das Convenções de Genebra. Destruir os suprimentos de água potável para conscientemente causar epidemias como a cólera é uma guerra biológica.
Sanções econômicas e embargos comerciais são uma guerra bárbara contra as populações civis. Não há como minimizá-las com elementos da linguagem, como alvos cirúrgicos ou intervenção humanitária. Agora, pense em milhões de pessoas em Cuba, Irã, Venezuela, Síria, Birmânia e Costa do Marfim, que nesse momento estão sob embargo dos EUA.
O documento ‘Vulnerabilidades no tratamento da água no Iraque’ revela a intenção diabólica que pode presidir as sanções, mesmo quando elas são autorizadas pela ONU. Por essas e outras razões, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha expressou preocupação com o uso de tais sanções, mesmo quando as Nações Unidas as autorizaram. A ONU não tem direito de violar as Convenções de Genebra, e vai além de sua autoridade quando isso acontece.
Os Estados Unidos também passaram por cima da autorização da ONU ao impor um bloqueio total ao Iêmen. Como esperado, as crianças estão morrendo de cólera no Iêmen, assim como no Iraque. Dezenas de milhares de civis morreram de fome, doenças e falta de remédios. Vinte milhões de seres humanos estão morrendo nesse momento de fome, uma fome causada pelos Estados Unidos e seus prepostos, a chamada coalizão saudita.
Nos últimos três anos, a partir do governo Obama, os Estados Unidos entregaram bombas, munição e combustível à Arábia Saudita. Pior ainda, os militares dos EUA estão no centro do comando e controle da guerra no Iêmen. Outros países que se beneficiam da guerra, como o Reino Unido, países da UE e Canadá, também têm as mãos cobertas de sangue e excrementos infectados com cólera de crianças iemenitas.