Não houve, durante todo o processo que conduziu à Revolução de 30, móvel maior das forças políticas, que se levantavam contra o status quo da República Velha, do que a necessidade de varrer a podridão que tomara a casta política da oligarquia.
Como diz o manifesto da Revolução de 5 de julho de 1924:
“Estes governos de nepotismo, de advocacia administrativa e de incompetência técnica na alta administração, de concessão em concessão, de acordos em acordos, vêm arruinando paulatinamente as suas [do país] forças vitais, aniquilando-o interna e externamente.”
Da mesma forma, o manifesto do capitão Luiz Carlos Prestes, em Santo Ângelo, no dia 29 de outubro do mesmo ano:
“Todo o Brasil, de norte a sul, ardentemente deseja, no íntimo de sua consciência, a vitória dos revolucionários, porque eles lutam por amor do Brasil, porque eles querem que o voto do povo seja secreto, que a vontade soberana do povo seja uma verdade respeitada nas urnas, porque eles querem que sejam confiscadas as grandes fortunas feitas por membros do governo à custa dos dinheiros do Brasil”.
O manifesto da Coluna, assinado em Porto Nacional por Miguel Costa, Prestes e Juarez Távora, a 19 de outubro de 1925, vai no mesmo sentido, ao falar dos princípios “consagrados pela nossa Constituição – hoje espezinhada por um sindicato de políticos sem escrúpulos, que se apoderaram dos destinos do país, para malbaratar a sua fortuna, ensanguentar o seu território e vilipendiar o melhor de suas tradições”.
Aliás, é Prestes, então o principal líder tenentista, que popularizou, em sua entrevista ao jornal carioca “A Esquerda” (ed. 09/04/1928), concedida em Paso de los Libres, na Argentina, a palavra de ordem pela regeneração dos costumes políticos. Diz ele: “Prevejo o inevitável triunfo da campanha para a regeneração dos costumes políticos, pacífica ou revolucionariamente”.
Porém, é Getúlio Vargas quem, na campanha eleitoral de 1930 – e, depois, no decorrer da própria Revolução – levaria mais longe a formulação do problema (e, naturalmente, a solução prática dele).
Assim, diz a sua plataforma na campanha à Presidência:
“Apesar de nem sempre terem dos fatos uma visão de conjunto, são, realmente, as classes populares, sem ligações oficiais, as que sentem com mais nitidez, em toda a extensão, por instinto e pelo reflexo da situação geral do País sobre as suas condições de vida, a necessidade de modificação dos processos políticos e administrativos. Vivemos num regime de insinceridade; o que se diz e apregoa não é o que se pensa e pratica. (…) Burlam-se, pela falta de garantia, os mais comezinhos direitos assegurados na Constituição. A campanha de reação liberal — não é demais insistir — exprime uma generalizada e vigorosa tentativa de renovação dos costumes políticos e de restauração das práticas da democracia, dentro da ordem e do regime.”
Logo após a Revolução, a dois de janeiro de 1931, falando às Forças Armadas, Getúlio diz:
“O programa da Revolução reflete o espírito que a inspirou e traça o caminho, para o ressurgimento do Brasil: institui o aumento da produção nacional (…); estabelece a organização do trabalho deixada ao desamparo pela inércia ou pela ignorância dos governantes; exige a moralidade administrativa, conculcada pelo sibaritismo dos políticos gozadores; impõe a invulnerabilidade da justiça, maculada pela peita do favoritismo; modifica o regime representativo com a aplicação de leis eleitorais previdentes, extirpando as oligarquias políticas e estabelecendo, ainda, a representação por classes em vez do velho sistema da representação individual, tão falho como expressão da vontade popular; assegura a transformação do capital humano como máquina, aperfeiçoando-o para produzir mais e melhor; restitui ao elemento homem a saúde do corpo e a consciência da sua valia, pelo saneamento e pela educação e restabelece, finalmente, o pleno gozo das liberdades públicas e privadas sob a égide da lei e a garantia da justiça.”
E, ele completa:
“Para isso conseguir, cumpre, previamente assear o terreno inchado de vegetações daninhas, punindo os negocistas sem escrúpulos, por vezes traficantes da honra nacional, de modo que, quando o país voltar à normalidade da sua vida legal, com a confiança restabelecida entre governantes e governados o crédito refeito e o povo feliz, não possa mais ressurgir, reconstituindo-se, o estado de opróbrio que vem de ser demolido.”
Porém, é no discurso de posse, a três de novembro de 1930, que essa questão fica mais clara: depois da Anistia, o saneamento moral do país é o primeiro ponto do programa que Getúlio anuncia à Nação.
Por isso, neste momento da vida nacional, escolhemos esse pronunciamento para hoje republicá-lo (já o havíamos publicado em nossa edição de 11/08/2010 – portanto, há sete anos – porém ressaltando outros ângulos políticos).
É uma característica intrínseca dos governos e regimes antinacionais e antipopulares – portanto, antidemocráticos – o apodrecimento e afundamento na corrupção. Foi assim na República Velha, na ditadura de 64, nos governos Collor e Fernando Henrique, assim como foi nos governos Dilma e Temer – e não foi por acaso, mas pela debilidade de suas raízes nacionais, estabelecidas por suas próprias escolhas, que Lula acabou nessa panela malcheirosa, inclusive como um de seus melancólicos paladinos.
Ao contrário, Getúlio, Jango, e também Juscelino, tão caluniados pelo entreguismo lacerdista, mais de meio século depois, permanecem como os governantes honrados que foram. Quem foi capaz, em mais de 50 anos, de encontrar alguma jaça na conduta moral e no caráter desses grandes homens?
C.L.
GETÚLIO VARGAS
O movimento revolucionário, iniciado, vitoriosamente, a 3 de outubro, no Sul, Centro e Norte do País, e triunfante a 24, nesta Capital, foi a afirmação mais positiva que, até hoje, tivemos da nossa existência como nacionalidade. Em toda a nossa história política, não há, sob esse aspecto, acontecimento semelhante. Ele é, efetivamente, a expressão viva e palpitante da vontade do povo brasileiro, afinal senhor de seus destinos e supremo árbitro de suas finalidades coletivas.
No fundo e na forma, a Revolução escapou, por isso mesmo, ao exclusivismo de determinadas classes. Nem os elementos civis venceram as classes armadas, nem estas impuseram àqueles o fato consumado. Todas as categorias sociais, de alto a baixo, sem diferença de idade ou de sexo, comungaram em um idêntico pensamento fraterno e dominador: – a construção de uma Pátria nova, igualmente acolhedora para grandes e pequenos, aberta à colaboração de todos os seus filhos.
O Rio Grande do Sul, ao transpor as suas fronteiras, rumo a Itararé, já trazia consigo mais da metade do nosso glorioso Exército. Por toda parte, como, mais tarde, na Capital da República, a alma popular confraternizava com os representantes das classes armadas, em admirável unidade de sentimentos e aspirações.
Realizamos, pois, um movimento eminentemente nacional.
Essa, a nossa maior satisfação, a nossa maior glória e a base invulnerável sobre que assenta a confiança de que estamos possuídos para a efetivação dos superiores objetivos da Revolução brasileira.
Quando, nesta cidade, as forças armadas e o povo depuseram o Governo Federal, o movimento regenerador já estava, virtualmente, triunfante em todo o País. A Nação, em armas, acorria de todos os pontos do território pátrio. No prazo de duas ou três semanas, as legiões do Norte, do Centro e do Sul bateriam às portas da Capital da República.
Não seria difícil prever o desfecho dessa marcha inevitável. À aproximação das forças libertadoras, o povo do Rio de Janeiro, de cujos sentimentos revolucionários ninguém poderia duvidar, se levantaria em massa, para bater, no seu último reduto, a prepotência inativa e vacilante.
Mas, era bem possível que o Governo, já em agonia, apegado às posições e teimando em manter uma autoridade inexistente de fato, tentasse sacrificar, nas chamas da luta fratricida, seus escassos e derradeiros amigos.
Compreendestes, senhores da Junta Governativa, a delicadeza da situação e, com os vossos valorosos auxiliares, desfechastes, patrioticamente, sobre o simulacro daquela autoridade claudicante o golpe de graça.
Os resultados benéficos dessa atitude constituem legítima credencial dos vossos sentimentos cívicos: integrastes definitivamente o restante das classes armadas na causa da Revolução; poupastes à Pátria sacrifícios maiores de vidas e recursos materiais, e resguardastes esta maravilhosa Capital de danos incalculáveis.
Justo é proclamar, entretanto, senhores da Junta Governativa, que não foram somente esses os motivos que assim vos levaram a proceder. Preponderava sobre eles o impulso superior do vosso pensamento, já irmanado ao da Revolução. Era vossa também a convicção de que só pelas armas seria possível restituir a liberdade ao povo brasileiro, sanear o ambiente moral da Pátria, livrando-a da camarilha que a explorava, arrancar a máscara de legalidade com que se rotulavam os maiores atentados à lei e à justiça – abater a hipocrisia, a farsa e o embuste. E, finalmente, era vossa também a convicção de que urgia substituir o regime de ficção democrática, em que vivíamos, por outro, de realidade e confiança.
Passado, agora, o momento das legítimas expansões pela vitória alcançada, precisamos refletir maduramente sobre a obra de reconstrução que nos cumpre realizar.
Para não defraudarmos a expectativa alentadora do povo brasileiro; para que este continue a nos dar seu apoio e colaboração, devemos estar à altura da missão que nos foi por ele confiada.
Ela é de iniludível responsabilidade.
Tenhamos a coragem de levá-la a seu termo definitivo, sem violências desnecessárias, mas sem contemplações de qualquer espécie.
O trabalho de reconstrução, que nos espera, não admite medidas contemporizadoras. Implica o reajustamento social e econômico de todos os rumos até aqui seguidos. Não tenhamos medo à verdade. Precisamos, por atos e não por palavras, cimentar a confiança da opinião pública no regime que se inicia. Comecemos por desmontar a máquina do filhotismo parasitário, com toda a sua descendência espúria. Para o exercício das funções públicas, não deve mais prevalecer o critério puramente político. Confiemo-las aos homens capazes e de reconhecida idoneidade moral. A vocação burocrática e a caça ao emprego público, em um país de imensas possibilidades – verdadeiro campo aberto a todas as iniciativas do trabalho – não se justificam. Esse, com o caciquismo eleitoral, são males que têm de ser combatidos tenazmente.
No terreno financeiro e econômico há toda uma ordem de providências essenciais a executar, desde a restauração do crédito público ao fortalecimento das fontes produtoras, abandonadas às suas dificuldades e asfixiadas sob o peso de tributações de exclusiva finalidade fiscal.
Resumindo as ideias centrais do nosso programa de reconstrução nacional, podemos destacar, como mais oportunas e de imediata utilidade:
1) concessão de anistia;
2) saneamento moral e físico, extirpando ou inutilizando os agentes de corrupção, por todos os meios adequados a uma campanha sistemática de defesa social e educação sanitária;
3) difusão intensiva do ensino público, principalmente técnico-profissional, estabelecendo, para isso, um sistema de estímulo e colaboração direta com os Estados. Para ambas as finalidades, justificar-se-ia a criação de um Ministério de Instrução e Saúde Pública, sem aumento de despesas;
4) instituição de um Conselho Consultivo, composto de individualidades eminentes, sinceramente integradas na corrente das ideias novas;
5) nomeação de comissões de sindicâncias, para apurarem a responsabilidade dos governos depostos e de seus agentes, relativamente ao emprego dos dinheiros públicos;
6) remodelação do Exército e da Armada, de acordo com as necessidades da defesa nacional;
7) reforma do sistema eleitoral, tendo em vista, precipuamente, a garantia do voto;
8) reorganização do aparelho judiciário, no sentido de tornar uma realidade a independência moral e material da magistratura, que terá competência para conhecer do processo eleitoral em todas as suas fases;
9) feita a reforma eleitoral, consultar a Nação sobre a escolha de seus representantes, com poderes amplos de constituintes, a fim de procederem à revisão do Estatuto Federal, melhor amparando as liberdades públicas e individuais e garantindo a autonomia dos Estados contra as violações do Governo central;
10) consolidação das normas administrativas, com o intuito de simplificar a confusa e complicada legislação vigorante, bem como de refundir os quadros do funcionalismo, que deverá ser reduzido ao indispensável, suprimindo-se os adidos e excedentes;
11) manter uma administração de rigorosa economia, cortando todas as despesas improdutivas e suntuárias – único meio eficiente de restaurar as nossas finanças e conseguir saldos orçamentários reais;
12) reorganização do Ministério da Agricultura, aparelho, atualmente, rígido e inoperante, para adaptá-lo às necessidades do problema agrícola brasileiro;
13) intensificar a produção pela policultura e adotar uma política internacional de aproximação econômica, facilitando o escoamento das nossas sobras exportáveis;
14) rever o sistema tributário, de modo a amparar a produção nacional, abandonando o protecionismo dispensado às indústrias artificiais, que não utilizam matéria-prima do País e mais contribuem para encarecer a vida e fomentar o contrabando;
15) instituir o Ministério do Trabalho, destinado a superintender a questão social, o amparo e a defesa do operariado urbano e rural;
16) promover, sem violência, a extinção progressiva do latifúndio, protegendo a organização da pequena propriedade, mediante a transferência direta de lotes de terras de cultura ao trabalhador agrícola, preferentemente ao nacional, estimulando-o a construir com as próprias mãos, em terra própria, o edifício de sua prosperidade;
17) organizar um plano geral, ferroviário e rodoviário, para todo o País, a fim de ser executado gradualmente, segundo as necessidades públicas e não ao sabor de interesses de ocasião.
Como vedes, temos vasto campo de ação, cujo perímetro pode, ainda, alargar-se em mais de um sentido, se nos for permitido desenvolver o máximo de nossas atividades.
Mas, para que tal aconteça, para que tudo isso se realize, torna-se indispensável, antes de mais nada, trabalhar com fé, ânimo decidido e dedicação.
Quanto aos motivos que atiraram o povo brasileiro à Revolução, supérfluo seria analisá-los, depois de, tão exata e brilhantemente, tê-lo feito, em nome da Junta Governativa, o Sr. General Tasso Fragoso, homem de pensamento e de ação e que, a par de sua cultura e superioridade moral, pode invocar o honroso título de discípulo do grande Benjamin Constant.
Através da palavra do ilustre militar, apreende-se a mesma impressão panorâmica dos acontecimentos, que vos desenhei, já, a largos traços: a Revolução foi a marcha incoercível e complexa da nacionalidade, a torrente impetuosa da vontade popular, quebrando todas as resistências, arrastando todos os obstáculos, à procura de um rumo novo, na encruzilhada dos erros do passado.
Senhores da Junta Governativa:
Assumo, provisoriamente, o Governo da República, como delegado da Revolução, em nome do Exército, da Marinha e do povo brasileiro, e agradeço os inesquecíveis serviços que prestastes à Nação, com a vossa nobre e corajosa atitude, correspondendo, assim, aos altos destinos da Pátria.