(HP, 20 e 22/04/2016)
Este é um dos grandes discursos de Getúlio Vargas.
A 23 de fevereiro de 1931 – portanto, poucos meses após a Revolução de 30 – o presidente visitou Minas Gerais. Em banquete que o homenageou, em Belo Horizonte, definiu, no pronunciamento em que agradeceu aos mineiros, as linhas estratégicas da revolução que acabara de sublevar o país.
Na semana de Tiradentes, oferecemos ao leitor esta peça histórica de seu maior continuador – pronunciada na própria terra do proto-mártir da nacionalidade.
C.L.
GETÚLIO VARGAS
Era meu desejo, logo que assumi o Governo da República, visitar os Estados de Minas Gerais e Paraíba, expressões simbólicas, no Centro e Norte do país, das nossas reivindicações liberais. Circunstâncias estranhas à minha vontade, ampliadas, no correr dos dias, com as necessidades imperiosas da alta administração, retardaram a realização desse desejo, que, além de um dever cívico, seria motivo de íntima satisfação. Venho, agora, realizar a primeira dessas aspirações.
Queria expressar-vos pessoalmente o meu profundo reconhecimento pela espontaneidade e entusiasmo com que o povo mineiro aceitou a minha candidatura, sugerida pela palavra, nesse momento precursora, de Antônio Carlos, o primeiro que, numa clarividente certeza, vislumbrou, na curva longínqua do horizonte, a borrasca revolucionária. Precisava manifestar-vos, de viva voz, a minha admiração pelo ardor cívico, pela energia, pela constância e dignidade com que, escudados e fortalecidos nas vossas tradições do liberalismo, sustentastes, com denodo, a campanha da sucessão presidencial.
Recordo, senhores, com respeito, a firmeza de Minas nessa luta sem tréguas contra o poder pessoal do homem que, na chefia da Nação, se desmandou no emprego de todos os processos da violência, extremados entre a corrupção e a força, para abater o adversário altivo, fechando-lhe, finalmente, numa última afronta, o recurso derradeiro das urnas livres. Era de meu dever, por isso, trazer o testemunho pessoal do meu aplauso à bravura e ao desassombro dos heroicos filhos desta terra lendária, que, vilipendiados nos seus direitos, espoliados na escolha dos mandatários da sua soberania, se ergueram em armas, para lutar contra o Governo, que se pusera fora da lei e tentava, por todos os meios, o desprestígio da própria nacionalidade.
Fora da lei os opressores, mas, ao alcance das armas os oprimidos – lançastes mão do único recurso que vos restava para evitar a ruína da Pátria.
Ainda não surgiu o historiador que descreverá com verdade a epopeia da vossa bravura e a audácia do vosso gesto, atirando-vos à pugna, com nobre desinteresse, dispostos aos maiores sacrifícios.
Para que o povo mineiro, pacífico por índole, que durante quase um século viveu entregue ao seu labor fecundo, isento de convulsões, sendo, por várias vezes, o asilo respeitado onde se refugiavam os perseguidos políticos de qualquer credo e de dentro dos seus limites não sentira jamais os efeitos de um estado de sítio, para que esse povo se levantasse em armas, vibrante de ardor cívico, tendo à sua frente a figura prestigiosa e venerada de seu grande presidente Olegário Maciel, era preciso que estivessem esgotadas, como de fato o foram, todas as reservas da sua proverbial serenidade e que um alto sentimento, misto de dignidade ofendida e exaltação patriótica, o dominasse, arremessando-o ao fragor das lutas armadas.
E, convém seja dito e repetido, quando Minas interveio no problema da sucessão presidencial, tinha como certo poder decidi-lo dentro dos preceitos constitucionais, sem jamais apelar para resoluções extremadas. Ao início da campanha, desejávamos, apenas, conquistar o respeito à livre manifestação das urnas, cooperando, assim, para o aperfeiçoamento da cultura política do povo, pelo evolver natural do nosso sistema de Governo, impondo respeito à opinião nacional. A prepotência, a brutalidade e a fraude fecharam- nos, porém, todas as portas, a ponto de termos de forçá-las pelas armas, para evitar o suicídio moral da Nação.
Ouso afirmar ter sido isso um bem para o Brasil. A evolução armada, isto é – a Revolução, quebrando todas as resistências e abatendo as múltiplas ficções constitucionais que entorpeciam a marcha do país à posse de si mesmo e destruindo, ao mesmo tempo, o respeito humano ao trôpego liberalismo, apenas de fachada, que nos manietava, vinha permitir reformas mais amplas e providências de maior eficácia para o nosso aparelho governamental.
Obra do povo, a Revolução, demonstrando a vitalidade do país, comprovou, de forma clara e palpitante, o valor das forças nutrizes da nacionalidade. Esforço popular e coletivo, as suas conquistas não podiam circunscrever-se à órbita dos partidos ou das facções políticas, que exerciam o monopólio das funções públicas, detendo a seu favor a posse exclusiva das posições.
Agora, atravessamos o período da convalescença. Dentro dele, devemos sanear a alta administração dos elementos viciados que a corrompiam. Punidos os que traficaram à sombra das funções que desempenhavam, urge a criação de uma mentalidade nova, sadia e forte, capaz de assumir, por intermédio dos seus líderes de fato, os encargos que lhe competem, não mais permitindo a retrogradação dolorosa aos métodos anteriores – causa de todos os males passados.
Cabe, aqui, rápida síntese do estado do país no momento da vitória revolucionária: ruína financeira, expressa em continuados déficits, que, por magia de algarismos, se transformavam em saldos alvissareiros; esbanjamento dos dinheiros públicos, sem termo nem medida, produzindo o enriquecimento dos apaniguados na direção dos negócios do Estado; o peculato instaurado como regra normal de administração e, predominando por sobre todos esses males, agravando-os, formidável crise de depressão econômica.
Esta, a herança que recebemos. Anima-nos, porém, a confiança de que, após severo regime de economia e de moralidade administrativa, postas em execução as reformas de ordem financeira que estão sendo elaboradas, em prazo menor do que se esperava, reporemos o Brasil em situação de prosperidade e segurança. Em vez do ambiente de mentira e de artifício, então reinante, estabeleceremos a verdade e a franqueza como norma e, em substituição ao otimismo, composto de hipocrisia e ignorância, com que nos iludiam, a realidade da situação, sem nada ocultarmos ao país.
Mesmo assim, apesar da economia a que nos obrigamos e dos profundos cortes nas despesas, motivados pela anarquia administrativa anteriormente dominante e atingido, ainda, por forte desequilíbrio econômico, que se reflete no decréscimo das rendas, tem sido intenso e profícuo o trabalho do Governo Provisório em todos os ramos de administração pública.
PARA ATINGIR O IDEAL DOS SALDOS-OURO
Inicialmente, para firmar o nosso crédito no exterior, faz-se mister assegurar o equilíbrio da nossa balança comercial, procurando, paulatinamente, atingir o ideal dos saldos-ouro.
Para isso alcançar, não poderemos fugir ao dilema: – aumentar a exportação ou diminuir a importação. O primeiro alvitre é o mais difícil de ser realizado, no momento, em vista da crise generalizada da superprodução, que afeta a economia universal, acrescida da concorrência dos preços baixos, em artigos similares, e do ânimo defensivo de todos os países, porfiando em se bastarem a si mesmos. No entanto, não olvidamos esforçar-nos nesse sentido, como demonstram várias iniciativas, já postas em prática, com o fim de aumentar a exportação, conseguindo para a produção brasileira novos escoadouros.
De outro lado, impõe-se-nos, como medida natural de defesa econômica, única ao nosso alcance, a redução da importação. Nesse terreno, providências múltiplas são aconselháveis, e o Governo não se tem descurado de promover a sua aplicação: procura intensificar o uso do álcool combustível; conseguir o aumento da produção do trigo, preconizando, mesmo, o fabrico do pão misto, e empenha-se por obter melhor aproveitamento do carvão e do algodão nacionais.
A par disso, devemos aceitar, como postulado cívico o compromisso de ampliar as nossas lavouras e aperfeiçoar as nossas indústrias, de forma tal que passe a ser considerado deslize de patriotismo alimentarmo-nos ou vestirmo-nos com tecidos ou gêneros importados.
A nossa época marca na história do mundo grave momento de sérias transformações sociais: a guerra que abalou o Ocidente exigiu dos povos hercúleo esforço de ação e de trabalho e, feita a paz, legou à humanidade métodos novos de industrialização de todas as culturas, dando às indústrias, pelo império da máquina, capacidade para produzir jamais atingida.
Daí, proveio a superprodução, fenômeno causador da crise atual. Hoje, intensificar e ampliar a produção é problema facilmente solúvel, dependendo, apenas, de capital, atividade e competência técnica; mas o corolário correlato, difícil de resolver, é a conquista dos mercados, e, para realizá-la, digladiam-se todas as nações civilizadas.
Devemos empregar, por conseguinte, o melhor e máximo esforço no estudo dos mercados onde possamos colocar os nossos produtos, procurando conhecê-los minuciosamente, para agir com segurança. Com o fito de aumentar a exportação, todos os meios devem ser empregados, sendo perfeitamente recomendável, em muitos casos, deixando de parte a moeda como simples expressão de valor, fazer a permuta direta de mercadorias, velho método comercial da antiguidade, agora em moda, que tem a vantagem de não permitir a emigração do ouro, destinado às aquisições no exterior.
O momento é propício para vos anunciar importante modificação, que pretendo levar a efeito, aproveitando a soma de poderes que a Nação conferiu ao Governo Provisório e que lhe permite realizar, com relativa facilidade, reformas radicais, impossíveis de execução em período de normalidade constitucional. Procuraremos, em breve tempo, resolver definitivamente duas velhas questões que não podem deixar de ser atendidas, no momento de reconstrução política e administrativa que atravessamos. Ouvidos previamente os Estados interessados, impõem-se-nos duas medidas de ordem econômica e financeira de alto alcance. Uma, referente aos impostos interestaduais, que, em alguns casos, se assemelham à verdadeira guerra de tarifas entre determinadas circunscrições federativas, grande mal, talvez o maior, decorrente do acúmulo de erros, legado oneroso do passado e que nos cumpre enfrentar e extinguir. Outra diz respeito ao imposto de exportação, por cláusula constitucional, receita dos Estados, renda antieconômica, repudiada pela maioria dos países produtores e que convém seja reduzido ao mínimo possível. Passando-se a sua arrecadação a encargo da União, único meio de uniformizar-lhes as taxas, permitir-se-á, ao mesmo tempo, atender a ponto grave da nossa economia – o complexo caso das dívidas externas dos Estados.
O problema das dívidas estaduais demanda urgente solução, visto como se reflete pesadamente sobre o crédito do país no exterior. Alguns Estados assumiram compromissos superiores à sua capacidade orçamentária e a falta de cumprimento das disposições contratuais, a que se obrigaram, quanto a juro e amortização, abala, nos círculos financeiros, europeus e americanos, o bom nome do Brasil, com grave prejuízo para a economia e finanças nacionais.
Faz-se mister, como providência sábia e inadiável, que a União, fiadora moral e de fato desses débitos, assuma a responsabilidade efetiva deles, encampando, em seu conjunto, as dívidas externas estaduais.
Haveria com isso dupla vantagem: primeira, de alta valia, consistindo na firmeza do nosso crédito; segunda, de real auxílio à indústria e à lavoura, permitindo-lhes grande surto, pois, em vez da multiplicidade de gravação, variável de Estado a Estado, impor-se-ia a uniformidade de uma taxa mínima, quanto bastasse a satisfazer o custeio da dívida consolidada, externa, dos Estados. Aqueles não assoberbados do ônus de tais compromissos veriam invertidas em melhoramentos materiais, úteis ao desenvolvimento das duas fontes de riqueza, a contribuição que lhes coubesse e, com os saldos globais apurados, formar-se-ia o capital de um grande Banco de Crédito Agrícola, destinado a amparar a produção nacional.
Seria, essa medida, de natureza temporária, com finalidade precisa, uma vez que o rumo para o qual devemos orientar nossa marcha é o da completa extinção dos impostos de exportação. A transferência do referido tributo ao Governo Federal, sua consequente uniformidade e redução, constituiria, para obtermos esse resultado, passo seguro e decisivo.
O PROBLEMA SIDERÚRGICO
Mas o problema máximo, pode dizer-se, básico da nossa economia, é o siderúrgico. Para o Brasil, a idade do ferro marcará o período da sua opulência econômica. No amplo emprego desse metal, sobre todos precioso, se expressa a equação do nosso progresso. Entrava-o a nossa míngua de transportes e a falta de aparelhamento, indispensável à exploração da riqueza material que possuímos imobilizada.
O ferro é fortuna, conforto, cultura e padrão, mesmo, da vida em sociedade. Por seu intermédio, abastecem-se de água as cidades e irrigam-se as lavouras. Dele se faz a máquina, e é força. Por ele se transporta a energia, florescem as indústrias, movimentam-se as usinas. Na terra, sobre fitas de aço, locomotivas potentes encurtam distâncias e aproximam regiões afastadas, que permutam, com rapidez, os seus produtos. Sobre as águas, é o navio a força propulsora que o aciona, fazendo-o singrar velozmente mares e rios. No ar, é o motor do aeroplano mantendo-o em equilíbrio e aligeirando-lhe o voo. É, finalmente, a trave do teto, o lume para o lar e, ao mesmo tempo, a arma para a defesa da Pátria.
Creio poder, portanto, afirmar que a grandeza futura do Brasil depende, principalmente, da exploração das suas jazidas de ferro.
E o ferro é Minas Gerais.
Aos mineiros, cujo próprio nome indica certa predestinação histórica nesse sentido, deve caber o esforço maior na conquista dessa glória. Minas possui montanhas de ferro, com capacidade para satisfazer as necessidades do consumo mundial durante séculos. Exploremo-las, adquirindo, com trabalho tenaz e inteligência prática, a abundância e a independência econômica.
Muito teremos feito dentro de breve tempo se conseguirmos libertar-nos da importação de artefatos de ferro, produzindo o indispensável ao abastecimento do país. Nacionalizando a indústria siderúrgica, daremos grande passo na escalada ao alto destino que nos aguarda. O nosso engrandecimento tem que provir da terra, pelo engrandecimento da agricultura. Mas, o esforço para esse fim se esteriliza e fraqueia, ao lembrarmo-nos que todo o maquinismo, desde o arado que sulca o seio da gleba até ao veículo que transporta o produto das colheitas, deva vir do estrangeiro.
Para dar realidade a essa justa aspiração, tão intimamente ligada à vida e ao fortalecimento da nacionalidade, quase tudo depende de vós, da vossa energia, da vigilância do vosso patriotismo e do vosso Governo, tão digno da nobreza do povo mineiro.
Na solução desse problema, em que se enquadra a fórmula principal do nosso progresso e do qual depende, evidentemente, a ascensão do Brasil, podeis contar com o Governo Federal, que mobilizará a totalidade dos recursos disponíveis, para vos auxiliar.
A tarefa é árdua. Fazei dela um ideal. O ideal é ainda a alma de todas as realizações. O mesmo idealismo que fez surgir por entre as montanhas sagradas de Minas as aguerridas hostes de seus filhos, em marcha para a redenção da República, transforme-se, agora, em idealismo construtor, fazendo-os curvar-se sobre a montanha fecunda para arrancar das suas entranhas a riqueza e a prosperidade da Pátria.
Completando, finalmente, o meu pensamento, no tocante à solução do magno problema, julgo oportuno insistir, ainda, em um ponto: a necessidade de ser nacionalizada a exploração das riquezas naturais do país, sobretudo a do ferro. Não sou exclusivista nem cometeria o erro de aconselhar o repúdio do capital estrangeiro a empregar-se no desenvolvimento da indústria brasileira, sob a forma de empréstimos, no arrendamento de serviços, concessões provisórias ou em outras múltiplas aplicações equivalentes.
Mas, quando se trata da indústria do ferro, com o qual havemos de forjar toda a aparelhagem dos nossos transportes e da nossa defesa; do aproveitamento das quedas d’água, transformadas na energia que nos ilumina e alimenta as indústrias de paz e de guerra; das redes ferroviárias de comunicação interna, por onde se escoa a produção e se movimentam, em casos extremos, os nossos exércitos; quando se trata – repito – da exploração de serviços de tal natureza, de maneira tão íntima ligados ao amplo e complexo problema da defesa nacional, não podemos aliená-los, concedendo-os a estranhos, e cumpre-nos, previamente, manter sobre eles o direito de propriedade e de domínio.
Precisamos convir que a obra da Revolução, além de ser vasta obra de transformação social, política e econômica, é, também, nacionalista, no bom sentido do termo. Não percebem esses efeitos profundos do movimento vitorioso, somente, os espíritos superficiais ou as consciências obcecadas. O ritmo revolucionário ninguém poderá modificá-lo antes que se encerre o ciclo das aspirações brasileiras não satisfeitas, porque a reação pelas armas, no Brasil, partiu do povo, com o concurso decisivo das classes armadas, que se colocaram ao lado da Nação, impulsionadas e fortalecidas pelo conjunto de todas as forças renovadoras, em estado latente.
Como parte integrante das multidões patrióticas que salvaram a Nação da iminente derrocada rebelando-se, cabe a vós, mineiros, preeminente quinhão de glória, pela audácia dos feitos e pela soma dos sacrifícios.
São estas as palavras de saudação e reconhecimento, que não podia deixar de dirigir ao glorioso povo de Minas Gerais, onde a natureza, prodigalizando-se, modelou, pela rigidez do ferro, abundantemente escondido nas entranhas da terra fértil, a têmpera do caráter dos seus filhos, a cuja dedicação e devotamento deve ser confiada a missão de presidir ao ressurgimento da Pátria nova.