(HP 05/09/2012)
No dia 7 de setembro de 1953, o presidente Getúlio Vargas comemorou pela última vez com o povo o Dia da Independência. Algumas horas depois da parada militar, fez o registro emocionado:
“No grande dia de hoje recebi da população da Capital da República as demonstrações mais carinhosas de afeto e de entusiasmo, que profundamente me comoveram e me alentaram.
“Não eram as manifestações dos afortunados e bem vividos, mas as do povo anônimo das ruas, daquele que luta para sobreviver e que sua o suor de sangue de todos os dias.” (discurso na Sociedade da Hora da Independência, 07/09/1953, in “O Pensamento Político de Getúlio Vargas“, AL, IHGRGS e MJC (real.), Porto Alegre/RS, 2004, pág. 155 e segs.).
A maior figura da nossa História, naquele momento, já enfrentava a campanha repugnante que o levaria, um ano depois, ao martírio. Por isso, frisou:
“Não basta cultuarmos os heróis e os estadistas que evocamos nesta data inspiradora, como figuras tutelares da Nação. Temos de lhes seguir o exemplo. Da sua obra deriva para nós a mais alta das responsabilidades – a de justificar perante os outros povos, pela civilização criada através do trabalho, o precioso bem que usufruímos, com o nosso viver de homens livres, na posse de imenso território, pleno de riquezas. Construindo para o futuro é que dignificaremos no presente a herança inestimável do passado.
“O Brasil anseia pela redenção econômica, imprescindível complemento de sua independência política. Urge congraçar todos os esforços para essa difícil, mas promissora conquista. Que não se desviem para dissídios estéreis, nem esmoreçam nos pessimismos entorpecedores as energias de que tanto precisamos para incentivar iniciativas, desenvolver as técnicas e abrir novos horizontes ao fecundo labor.“
E, de forma ainda mais incisiva:
“Não ajudam a Nação os que dela se aproveitam para o lucro fácil (…). Anunciei que governaria de portas abertas (…). É preciso, entretanto, assinalar que não estão construindo para o Brasil, nem servindo aos seus interesses, os que espalham a suspeição e a desconfiança, os que procuram desacreditar as nossas instituições, os que, na depravação da linguagem, tentam subverter o princípio da autoridade, os que perturbam a paz e a tranquilidade de que necessitamos para trabalhar e produzir. Sofre mais a essência do regime do que as pessoas investidas do poder público com as campanhas de calúnia e difamação que invocam a defesa da democracia, como pretexto para a insídia e a malevolência.”
Esta última observação estaria dolorosamente clara menos de 11 anos após estas palavras de Getúlio. A conclusão de seu discurso é um chamado à unidade nacional:
“Só a lição dos anos vividos no serviço da Pátria me assegura serenidade ante as incompreensões, as injustiças e os ultrajes. Lastimo, entretanto, que se procure dificultar o trabalho construtivo do País e comprometer a confiança do povo nos seus dirigentes, quando, mais do que nunca, se impõe a união nacional.
“Foi essa coesão de espíritos que nos permitiu debelar as maiores crises de nossa formação. A unidade é o signo da nossa história.“
A questão, portanto, é a unidade para empreender o desenvolvimento, a emancipação econômica e a justiça social. Só esta unidade nacional é possível, pois não é possível unir a nação para destruir-se ou para manter-se dependente e escrava. Portanto, esse objetivo estratégico é uma condição para a unidade nacional. Em seu segundo mandato, ao falar aos governadores dos Estados da bacia do Paraná, esboçando os planos para desenvolver seu potencial hidrelétrico (que depois seria realizado), Getúlio abordou do seguinte modo a rota estratégica do país:
“… a experiência tem demonstrado que só o nosso próprio esforço pode superar as dificuldades que o país ora atravessa, motivadas pelo volume insuficiente de nossa produção.
“Qualquer auxílio externo que venhamos a receber não poderá suprir a nossa ação continuada, firme e decidida na luta de emancipação econômica que vimos empreendendo e que se encaminha para uma vitória final. Ela estará tanto mais próxima quanto maior for o entusiasmo com que nos empregarmos na mais patriótica das tarefas – a de reconstruir um Brasil economicamente forte, politicamente livre e socialmente justo.” (in “Discursos Selecionados do Presidente Getúlio Vargas“, MRE/FUNAG, 2009, pág. 48).
São inúmeros os documentos deixados por Getúlio – boa parte deles, espantosamente atuais. Nas próximas edições, publicaremos alguns.
Getúlio era, desde jovem, completamente avesso à retórica vazia, que hoje parece fazer a fortuna dos marketeiros contratados à preço de ouro. Seus pronunciamentos, sempre, sem exceção, têm uma riqueza de conteúdo rara nos homens públicos de qualquer país e em qualquer época – mesmo considerando apenas aqueles que recusaram a oratória estilo rolando-lero.
Assim, para que o leitor tenha uma ideia, Getúlio não apenas abordou reiteradamente, para desbravá-los, os caminhos para o desenvolvimento nacional, mas, até mesmo, foi além, perscrutando o futuro necessário desse desenvolvimento. Por exemplo:
“Impera no Brasil essa democracia capitalista, comodamente instalada na vida, que não sente a desgraça dos que sofrem e não percebem, às vezes, nem mesmo o indispensável para viver. Essa democracia facilita o ambiente propício para a criação dos trustes e monopólios, das negociatas e do câmbio negro, que exploram a miséria do povo. Tira o que foi cedido ao Estado para entregar ao monopólio de empresas particulares. Ou a democracia capitalista, compreendendo a gravidade do momento, abre mão de suas vantagens e privilégios, facilitando a evolução para o socialismo, ou a luta se travará com os espoliados, que constituem a grande maioria, numa conturbação de resultados imprevisíveis para o futuro.
“Essa espécie de democracia é como uma velha árvore coberta de musgos e folhas secas. O povo um dia pode sacudi-la com o vendaval de sua cólera, para fazê-la reverdecer em nova primavera, cheia de flores e de frutos.” (comício em Porto Alegre, 29/11/1946, in “Getúlio Vargas“, org. Maria Celina D’Araujo, Edições Câmara, 2011, pág. 516).
Não é, portanto, uma surpresa que seu martírio, a 24 de agosto de 1954, não tenha tornado Getúlio menos presente nas comemorações da Independência em anos posteriores. Pelo contrário, como ele afirmou em sua Carta-Testamento:
“Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco.
“Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna.
“Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, as calúnias não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.“
Hoje, como nossa homenagem ao Dia da Independência, publicaremos um dos discursos mais profundos deste Herói Nacional. Não foi proferido no Sete de Setembro, mas a 3 de outubro de 1944 – aniversário da Revolução de 1930 -, quando o presidente instalou a Comissão de Planejamento. Nos dispensamos de mais comentários (até porque já exageramos), pois Getúlio Vargas, antes de tudo, é um autor que preza a clareza.
C.L.
GETÚLIO VARGAS
Senhores:
Mais do que em outras ocasiões graves da sua vida o Brasil enfrenta, neste momento, um problema imperioso: o da organização da economia nacional em bases consistentes, capazes de suportar, sem crises profundas, o desenvolvimento das forças produtivas, mantendo o ritmo do progresso com o máximo aproveitamento das suas fontes de riqueza e do seu potencial humano.
Só as mentalidades impermeáveis aos ensinamentos dos fatos podem acreditar ainda na validade dos princípios do laisser-faire econômico e nos seus corolários políticos. O livre jogo das forças sociais, no estágio de evolução a que atingimos, é a anarquia pura e simples. Esta verdade, cabalmente confirmada pelas imposições da guerra às grandes potências mundiais, torna-se de maior evidência em relação aos povos como o nosso, em plena fase de crescimento e expansão. País novo, no sentido da apropriação dos recursos naturais e sua valorização, o Brasil reclama disciplina e método em todas as atividades criadoras de riqueza.
A Comissão de Planejamento, que ora instalamos, não se destina a intervir compulsivamente na organização econômica, nem pretende entravar a iniciativa particular, mas, pelo contrário, ampará-la, quando tiver um sentido realizador e orgânico. Deverá agir apenas como instrumento de orientação, ajustando o desenvolvimento geral do País a diretivas racionais e previdentes, evitando desperdícios e perturbações sociais.
Os objetivos a atingir, quaisquer que sejam os esquemas propostos de trabalho, estão compreendidos nestes problemas básicos: – o da exploração produtiva das virtualidades do nosso território e o da melhoria do homem brasileiro. E esse programa exige, por sua vez, a solução de duas questões preliminares e vitais: a industrialização e educação técnica.
Sem trabalho científico na exploração da terra continuaremos a “fazer desertos”; sem acompanhar as conquistas técnicas não teremos indústrias verdadeiras, mas apenas extensas manufaturas, utilizando mão-de-obra por processos rudimentares.
O combate ao colonialismo econômico é precisamente um dos pontos doutrinários em que todos os brasileiros estão de acordo. Produzir à maneira colonial quer dizer baixo rendimento do capital empregado, operariado sem estímulos, salários ínfimos, sub-consumo e, consequentemente, superprodução.
Em outra oportunidade, por ocasião da Conferência de Interventores, em 1938, lembrei a conveniência do zoneamento das culturas segundo as determinantes geográficas. A Comissão de Planejamento certamente tomará a seu cargo os estudos para isso necessários. O nosso País, estendido da faixa equatorial até muito abaixo do trópico, exige o aproveitamento máximo das condições naturais. Isto só poderá ser alcançado quando dispusermos de energia abundante e de custo módico. Para obtê-la possuímos carvão, petróleo e potencial hidráulico. São fontes de energia que esperam uso largo e intensivo em substituição do esforço braçal.
No setor das indústrias metalúrgicas precisamos progredir o mais rapidamente possível, fabricando máquinas produtoras de máquinas, que nos encaminharão depois às máquinas das indústrias leves, fornecedoras de utilidades de consumo imediato. Com a instalação da nossa primeira usina siderúrgica, de proporções consideráveis, poderemos, desde logo, iniciar a indústria química autônoma. Máquinas-ferramentas, máquinas agrárias, combustíveis, transportes – são os elementos primaciais para a ampliação e intensificação das nossas culturas. Ensino técnico generalizado e eficiente, condensação de núcleos demográficos para facilitar a industrialização, apropriação imediata das zonas mais férteis e sua ligação aos centros distribuidores, representam etapas obrigatórias de um programa coerente e construtivo.
A reforma agrária que teremos de empreender não implica redistribuição, porque não temos, como outros povos, escassez de terras. A tarefa apresenta-se com outros aspectos: – os de técnica agrícola, de aparelhamento e educação para o trabalho.
Urge mecanizar a lavoura e industrializar os seus produtos, para enfrentarmos as necessidades do crescente aumento das populações e as exigências da exportação. É processo retrógrado de produção o que despreza os subprodutos, limitando-se às forças primárias de utilização. Até agora temos trabalhado empiricamente, instalando indústrias ao sabor das perspectivas eventuais de lucro. Necessitamos, daqui por diante, atender com maior cuidado às questões de rendimento e possibilidades de exportar produtos transformados em vez de matérias-primas em gêneros de alimentação. Para atingir tal objetivo, impõe-se reequipar as indústrias existentes e criar outras que lhes sejam complementares.
Só assim poderemos aumentar a renda nacional, ampliando a produção e o consumo. Quando isso houvermos conseguido, os problemas propriamente defensivos encontrarão natural e rápido encaminhamento, porque disporemos dentro do Pais de todos os elementos materiais e humanos indispensáveis ao aparelhamento militar.
Programa tão fácil de resumir reclama – bem o reconheço – o melhor das energias nacionais. Elas já estão mobilizadas para a guerra justa aos nossos agressores. Continuemos, pois, neste estado de alerta e de esforço com o fim de solidificar as bases da nossa produção, assegurando ao capital rendimentos satisfatórios e ao trabalho salários compensadores.
O Brasil, vitorioso juntamente com os seus aliados na luta que está travada, com o crédito fortalecido pela estabilidade da sua situação financeira, encontrar-se-á, finda a guerra, em condições sobremodo favoráveis para expandir-se e acelerar o seu progresso econômico.
Acredito que vos achais compenetrados da seriedade do momento, da importância de todas as contribuições e da necessidade de trabalhar dedicada e silenciosamente pelo engrandecimento da Pátria.
Não preciso indicar nem ampliar os perigos que nos rodeiam. Os povos fracos, herdeiros de base territorial vasta e rica, são, naturalmente, presa cobiçada. E não é apenas pela invasão manu militari que podem perder a sua independência e sofrer ameaças à sua soberania. Também isso acontece quando pela alienação das indústrias-chave se cedem os materiais estratégicos e se confiam a mãos alheias os fatores capitais da defesa nacional.
A Comissão de Planejamento, com a firme colaboração que estabelecerá entre os elementos militares, preocupados com os problemas de segurança, e os mais amplos setores da atividade privada, vai realizar tarefas que serão verdadeiras provas de seleção patriótica. O novo órgão do Estado saberá, por certo, contrapor-se aos propósitos solenes de especuladores e monopolistas e às influências pessoais ou de grupos, permanecendo fiel aos superiores interesses da Nação.