
Procurador-geral descreve “o panorama espantoso e tenebroso” que envolveu a trama golpista, que, segundo ele, só não se consumou graças à resistência do Exército
O procurador-geral da República, Paulo Gonet, ao fazer a leitura das acusações no julgamento dos réus no Supremo Tribunal Federal (STF), na manhã desta terça-feira (2), foi implacável no desnudamento e na caracterização da trama golpista, do início, meio e fim, e na identificação de Jair Bolsonaro como “líder” da organização criminosa que conspirou abertamente contra a democracia no país.
Depois da leitura do relatório feita pelo ministro Alexandre de Moraes, Gonet sustentou, com a identificação das provas materiais e testemunhais colhidas ao longo da investigação promovida pela Polícia Federal (PF), as acusações contra o chamado “núcleo crucial” do plano para manter Bolsonaro no poder e não aceitar o resultado das urnas, que deram vitória ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
“Afrontas acintosas”, “belicistas” e “perversão” foram alguns dos adjetivos utilizados pelo procurador para descrever as ações que envolveram a trama.
Em sua acusação, o PGR acusou Bolsonaro de liderar uma organização criminosa armada, voltada para minar a democracia brasileira, através de ataques às instituições republicanas, tentativas de golpe de Estado e incentivo a atos antidemocráticos que culminaram no fatídico 8 de janeiro de 2023.
O procurador-geral ressaltou que a sequência de práticas revelada pela investigação configurou uma “operação antidemocrática ofensiva ao bem jurídico protegido pela Constituição”, conduzida sob a “coordenação, inspiração e determinação” de Jair Bolsonaro.
“Os atos que compõem o panorama espantoso e tenebroso da denúncia são fenômenos de atentado com relevância criminal contra as instituições democráticas. Não podem ser tratados como atos de importância menor, como devaneios utópicos, como aventuras inconsideradas, nem como precipitações a serem reduzidas com o passar dos dias a um plano bonachão das curiosidades tão só irreverentes da vida nacional”, sentenciou Gonet.
O PGR também foi elucidativo ao destacar, na leitura da acusação, que a consumação de uma tentativa de golpe de Estado não depende de uma ordem formal do presidente da República.
Disse ele:
“Para que a tentativa se consolide, não é indispensável que haja ordem assinada pelo presidente da República para adoção de medidas estranhas à realidade funcional. A tentativa se revela na prática de atos e de ações dedicadas ao propósito da ruptura das regras constitucionais sobre o exercício do poder, um apelo ao emprego da força bruta, real ou ameaçada”, afirmou a PGR.
Gonet argumentou, ainda, que, enquanto o controle de constitucionalidade pode ser considerado suficiente para remediar desvios jurídicos, “nenhuma providência jurisdicional, contudo, é de valia contra a usurpação do poder pela força bruta”.
“Se a intentona vence pela ameaça do poderio armado ou pela sua efetiva utilização, efetivamente não há o que a ordem derruída [derrubada] possa juridicamente contrapor. A defesa da ordem democrática, contudo, acha espaço no direito democrático para se reafirmar, avantajar e dignificar quando o ataque iniciado contra ela não se consuma.”
Segundo ele, o julgamento tem por objeto atos “que hão de ser considerados graves enquanto quisermos manter a vivência de um Estado democrático de direito”.
“Opera como elemento dissuasório contra o ânimo por aventuras golpistas e expõe a tenacidade e a determinação da cidadania pela continuidade da vida pública inspirada no protagonismo dos direitos fundamentais e na constância das escolhas essenciais de modo de convivência política”, afirmou.
“A Constituição dispõe de meios para talhar investidas contra ela própria. Punir a tentativa frustrada de ruptura contra a ordem democrática é imperativo de estabilização do próprio regime. Não reprimir criminalmente tentativas dessa ordem recrudesce ímpetos de autoritarismo e põe em risco um modelo de vida civilizado”, acrescentou.
Gonet mencionou, ainda, documentos apreendidos com os investigados que previam “medidas de intervenção inaceitáveis constitucionalmente, sobre o exercício das atividades do Poder Judiciário, elaboração de estrutura de poder a ser construída no desenrolar do golpe, bem como acertos de prisões espúrias e substituição de titulares de cargos públicos.”
FIDELIDADE DO EXÉRCITO À DEMOCRACIA
Ele também associou a organização criminosa ao estímulo aos acampamentos em frente a quartéis, onde grupos pediam intervenção militar. “O apoio da organização criminosa a acampamentos em frente a quartéis onde se clamava abertamente por intervenção militar por parte das Forças Armadas igualmente se insere no contexto da atuação efetiva, por atitude de ruptura com a democracia, por meio da violência”, afirmou o PGR ao associar a organização criminosa ao estímulo às aglomerações em frente aos quartéis, onde os bolsonaristas clamavam por “intervenção militar”.
Intervenção militar que não houve, segundo Gonet, em razão da resiliência da sociedade brasileira às ameaças antidemocráticas e à posição firme adotada, principalmente, pelos comandantes do Exército e da Aeronáutica, que se opuseram à intentona golpista urdida por Bolsonaro e seu séquito mais próximo.
“O golpe tentado não se consumou pela fidelidade do Exército, não obstante o desvirtuamento de alguns dos seus integrantes. E da Aeronáutica, a força normativa da Constituição Democrática em vigor. Todos esses acontecimentos descritos na denúncia estão confirmados pelas provas de que os autos estão refertos”, destacou durante sua argumentação.
Gonet citou uma série de atos concretos que, segundo ele, demonstram a materialização do plano golpista. Ele mencionou “a convocação de responsáveis por tropas militares para ultimar medidas de quebra da Constituição”, a “incitação a movimentos de repúdio ao resultado eleitoral” — que, segundo o procurador, “acolhia a violência física que efetivamente se deu” –, e o apoio a acampamentos em frente a quartéis.
O procurador descreveu o ápice do plano como “o apogeu violento desses atos previstos, admitidos e incentivados pela organização criminosa”, que se concretizou com a tomada dos prédios dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. Gonet ressaltou que a ação foi violenta, com depredação e feridos, mas foi realizada com “método e organização”, indicando planejamento prévio.
Os 10 pontos centrais da denúncia da PGR contra Bolsonaro e demais golpistas.
- Crimes contra a ordem democrática
A PGR descreve que os denunciados cometeram “crimes de atentado”, que se consumam pela realização de atos executórios mesmo sem alcançar o resultado final. Isso inclui a tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, o golpe de Estado, danos contra o patrimônio da União e ataques a bens tombados. - Bolsonaro como líder de organização criminosa
A denúncia aponta Jair Bolsonaro como o chefe de uma organização criminosa armada, com forte enraizamento em estruturas do Estado e apoio de setores militares. O núcleo central envolvia nomes como Alexandre Ramagem, Almir Garnier Santos, Anderson Torres, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto. Mauro Cid, por sua vez, atuava como porta-voz de Bolsonaro.
- Narrativa de fraude eleitoral
A partir de 2021, Bolsonaro iniciou ataques sistemáticos ao sistema eleitoral, insistindo em fraudes inexistentes. Documentos apreendidos com Augusto Heleno e Alexandre Ramagem mostraram planejamento prévio para “estabelecer um discurso sobre urnas eletrônicas” e “continuar a criticar a urna eletrônica”, incluindo expressões como “fraudes pré-programadas”. Mesmo após relatório do Ministério da Defesa confirmar a integridade das eleições, Bolsonaro manteve a narrativa.
- Uso político de órgãos de inteligência e segurança
A denúncia detalha a criação da chamada “ABIN paralela”, uma estrutura clandestina instalada na Agência Brasileira de Inteligência para fins políticos. Esse grupo usava o sistema FIRST MILE para monitorar e espionar alvos, como o fiscal do Ibama, Hugo Loss, além de criar informações falsas contra ministros do STF. A Polícia Rodoviária Federal também foi usada, direcionando operações em municípios onde Lula obteve mais de 75% dos votos no segundo turno, dificultando o acesso de eleitores às urnas.
- Planos de atentado e ruptura institucional
Foram revelados planos como o “Punhal Verde Amarelo”, que previa a “neutralização” do ministro Alexandre de Moraes e do presidente eleito Lula, por meio de explosivos, armas ou até envenenamento. Outros documentos, como “Operação Luneta” e “Operação 142”, traçavam roteiros para anular eleições, prorrogar mandatos, substituir todo o TSE e preparar novas eleições sob controle militar.
- Minutas de decretos golpistas
Várias minutas de decretos foram elaboradas com a finalidade de quebrar a ordem constitucional. Uma delas, encontrada na casa de Anderson Torres, previa decretar Estado de Defesa no TSE e criar uma “Comissão de Regularidade Eleitoral”, sob justificativa de investigar supostas irregularidades nas eleições de 2022. O objetivo final era impedir a posse do governo eleito.
- Pressão sobre militares legalistas
Militares que se recusaram a aderir ao golpe, como o general Marco Antônio Freire Gomes (exército) e o tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior (aeronáutica), foram alvo de campanhas de ódio e ataques coordenados para destruir suas reputações. Em contrapartida, o almirante Almir Garnier Santos aceitou participar do plano e se colocou à disposição para cumprir ordens do decreto golpista.
- Financiamento e apoio a atos antidemocráticos
O grupo incentivou e deu suporte a manifestações em frente a quartéis militares, onde se pedia intervenção. Segundo a denúncia, houve coordenação entre integrantes do governo, como Mauro Cid e Mário Fernandes, e líderes dos movimentos. Além disso, o general Braga Netto teria entregue dinheiro vindo do agronegócio para financiar operações ligadas a essas mobilizações.
- Operação “Copa 2022” e monitoramento de autoridades
A PGR cita a operação “Copa 2022”, planejada para criar comoção social e pressionar pela adesão ao golpe. Em 15 de dezembro de 2022, militares apelidados de “kids pretos” foram a Brasília para monitorar locais frequentados por Alexandre de Moraes, incluindo sua casa e o STF. A ação, que incluía a possibilidade de “neutralização” do ministro, não avançou porque o então comandante do Exército não aderiu ao esquema.
- Conexão com o 8 de Janeiro
Por fim, a PGR afirma que os atos de invasão e destruição nas sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 foram fomentados e facilitados pela organização criminosa. Apesar de alertas de inteligência sobre a violência planejada, Anderson Torres viajou a Orlando às vésperas dos ataques, deixando de exercer sua função de garantir a segurança do Distrito Federal. Além disso, aliados como Wladimir Matos Soares forneciam informações sensíveis sobre a posse de Lula.