
Em nota oficial, gestores estaduais afirmam que declarações dele “insultam” os Estados nordestinos. 92% da dívida pública estadual com a União estão concentrados no Sul e no Sudeste, enquanto o Nordeste responde por apenas 3% do total
O Consórcio Nordeste (Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste) divulgou, nesta sexta-feira (29), nota pública em que os governadores da Região rebatem declarações recentes do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo).
No documento, os gestores estaduais afirmam que as falas dele “insultam” os Estados e cidadãos nordestinos e reforçam que o Brasil “só avançará com cooperação federativa, respeito e verdade”.
“Reafirmamos, por isso, nosso repúdio a toda forma de racismo, xenofobia e estigmatização regional”
A nota apresenta dados que, segundo os signatários, desmontam a “narrativa falaciosa” de Zema. Em 2024, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) desembolsou R$ 133,7 bilhões, sendo 73% destinados ao Sul e ao Sudeste.
O Estado de Minas Gerais, sozinho, recebeu R$ 12,7 bilhões, e ocupa a quarta posição entre os mais beneficiados. O Nordeste, por sua vez, ficou com R$ 13,3 bilhões.
Em relação aos chamados Gastos Tributários federais, a previsão para 2025 é de renúncia de R$ 536,4 bilhões. Desse total, R$ 256,2 bilhões devem se concentrar no Sudeste e R$ 89,3 bilhões no Sul, enquanto o Nordeste receberá R$ 79,3 bilhões.
PAPEL REDISTRIBUTIVO
Em termos proporcionais, a nota destaca que Norte (75,6%) e Nordeste (37,2%) são as regiões que mais dependem desses mecanismos, o que reforça o papel redistributivo previsto na Constituição.
Os governadores também contestam a ideia de que os Estados nordestinos seriam os principais responsáveis pelo endividamento da União. Segundo os dados apresentados, 92% da dívida pública estadual com a União estão concentrados no Sul e no Sudeste, enquanto o Nordeste responde por apenas 3% do total.
O texto ainda faz resgate histórico para afirmar que o Estado brasileiro privilegiou de forma contínua o eixo Sudeste-Sul desde o período colonial, com concentração de infraestrutura, crédito e investimentos industriais, enquanto o Nordeste enfrentou migrações forçadas, seca e desestruturação agrária.
“COLCHÃO DE PROTEÇÃO EM TEMPOS DE CRISE”
Ao rebater o argumento de dependência de programas sociais, os gestores ressaltam que iniciativas como Bolsa Família, BPC (Benefício de Prestação Continuada) e Garantia Safra funcionam como “colchão de proteção em tempos de crise” e geram efeitos multiplicadores na economia local, ao invés de estimular dependência.
“O Nordeste nunca reivindicou esmolas, mas lutou pela criação de políticas de desenvolvimento regional capazes de valorizar suas potencialidades e apoiar seus empreendedores”, está escrito na nota, assinada pelos 9 governadores da região, incluindo o presidente do Consórcio, Rafael Fonteles (PI).
No texto, os gestores também criticam o que classificam como “retórica que divide o país, desrespeita milhões de cidadãos e compromete o ambiente de negócios”. E encerram reafirmando repúdio a “toda forma de racismo, xenofobia e estigmatização regional”.
CRÍTICAS
A nota foi divulgada após Zema voltar a atacar os repasses federais ao Nordeste. Em entrevista na última quarta-feira (27), o governador disse que o modelo atual gera “ajuda eterna” e acusou o governo federal de usar recursos como “moeda de troca” política.
Não é a primeira vez que Zema provoca reação na Região. Em 2023, ele defendeu, em entrevista ao jornal Estado de São Paulo, que o Consórcio Sul-Sudeste atuasse como contraponto ao Nordeste. Naquele mesmo ano, chegou a afirmar que o Nordeste recebia tratamento privilegiado em relação a outras regiões.
Leia a nota na íntegra:
As governadoras e os governadores do Nordeste vêm a público repudiar declarações recentes que insultam nossos estados e cidadãos, reafirmando que o Brasil só avançará com cooperação federativa, respeito e verdade. O que está em debate não é apenas uma disputa política circunstancial, mas a forma como o país encara suas desigualdades históricas e projeta o futuro de sua economia e de sua gente. A verdade dos números desmente a narrativa falaciosa do governador Romeu Zema, expressa em entrevista ao portal Metrópoles.
Em 2024, o BNDES desembolsou R$ 133,7 bilhões, dos quais R$ 48,7 bilhões foram para o Sudeste e R$ 48,8 bilhões para o Sul. O Nordeste recebeu R$ 13,3 bilhões, o Centro-Oeste R$ 13,0 bilhões e o Norte R$ 9,7 bilhões. Ou seja, 73% de todos os desembolsos concentram-se no eixo Sul-Sudeste. Minas Gerais, sozinho, recebeu R$ 12,7 bilhões, sendo o quarto estado mais beneficiado.
O mesmo ocorre com os Gastos Tributários federais: em 2025, estima-se que o país renuncie a R$ 536,4 bilhões em tributos, dos quais R$ 256,2 bilhões ficarão no Sudeste e R$ 89,3 bilhões no Sul, enquanto o Nordeste receberá R$ 79,3 bilhões desses recursos. Em termos proporcionais, a relação entre Gastos Tributários e arrecadação revela que o Norte (75,6%) e o Nordeste (37,2%) dependem mais desses instrumentos que o Sudeste (14,9%) e o Sul (22,2%), o que evidencia a função redistributiva prevista na Constituição. Além disso, o Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE) também cobre o norte de Minas Gerais e do Espírito Santo, mostrando que não há preterição a esses estados. Os dados, portanto, são claros: não procede a ideia de que “o Nordeste vive de subsídios” ou que “Minas é prejudicada”.
Também não procede a insinuação de que os estados nordestinos seriam os principais responsáveis pelo endividamento do país. Dados atualizados até abril deste ano mostram que os estados brasileiros devem R$ 827,1 bilhões à União, sendo 92% dessa dívida concentrada nos estados do Sul e do Sudeste. O Nordeste responde por apenas 3% do total, proporção que desmente a narrativa de desequilíbrio e evidencia onde se encontra a real concentração do passivo.
É preciso compreender este cenário à luz da história. Desde o ciclo do ouro em Minas Gerais, que concentrou riqueza e infraestrutura na Colônia e no Império, passando pela centralização política no Rio de Janeiro e pela política do “café com leite” que assegurou recursos e crédito a São Paulo e Minas na República Velha, até os ciclos industriais do século XX, quando a indústria têxtil, automobilística e siderúrgica se instalaram no Sudeste com fortes subsídios e políticas de atração de mão de obra europeia, o Estado brasileiro sempre privilegiou o eixo Sudeste-Sul. Enquanto isso, o Nordeste foi marcado por migrações forçadas, desestruturação agrária e políticas emergenciais diante da seca. Apenas nas últimas décadas, com a expansão do sistema universitário federal e do investimento em pesquisa, a juventude nordestina começou a colher os frutos de uma presença mais consistente do Estado nacional, alcançando projeções positivas em ciência, cultura e economia.
Em pleno século XXI, porém, os recursos públicos destinados à modernização produtiva ainda se concentram majoritariamente nas regiões Sudeste e Sul. O Nordeste nunca reivindicou esmolas, mas lutou pela criação de políticas de desenvolvimento regional capazes de valorizar suas potencialidades e apoiar seus empreendedores. A concentração histórica de infraestrutura, capital humano e crédito no Centro-Sul contrasta com a luta do Nordeste contra o abandono e o preconceito, e torna ainda mais urgente uma política nacional de desenvolvimento equilibrado.
Nesse contexto, também é necessário defender as políticas assistenciais. Programas como Bolsa Família, BPC e Garantia Safra não são privilégios nem muletas, mas instrumentos contracíclicos indispensáveis ao combate das desigualdades sociais e regionais. Funcionam como colchão de proteção em tempos de crise e como alavanca para dinamizar as economias locais. Cada real transferido a famílias de baixa renda gera efeitos multiplicadores sobre o comércio, a agricultura familiar e os serviços, ampliando a base econômica e tributária dos municípios. Longe de fomentar dependência, essas políticas fortalecem o mercado interno, reduzem vulnerabilidades e consolidam a cidadania.
O que está em jogo, portanto, é a própria compreensão de desenvolvimento. Historicamente, setores do Sudeste resistem a discutir mecanismos de desenvolvimento regional, tratando-os como concessões indevidas. Mas não se trata de concessão: trata-se de justiça histórica e de cumprimento da Constituição, que reconhece a obrigação do Estado de corrigir desigualdades estruturais entre regiões.
A política nacional de desenvolvimento deve combinar crédito público — via BNDES, Caixa Econômica, Banco do Brasil, Finep e bancos regionais — com instrumentos tributários que garantam investimento, emprego e infraestrutura em áreas em que o mercado sozinho não entrega. Essa é uma agenda que os governadores nordestinos defendem com prioridade, e que não pode ser confundida com privilégios, mas sim entendida como condição para que o país inteiro avance.
A Federação é um pacto de solidariedade, não de hostilidade. Transformar diferenças econômicas em hierarquias morais de regiões e de pessoas é oportunismo eleitoral que empobrece o debate e fragiliza o Brasil. Esse tipo de retórica divide o país, desrespeita milhões de cidadãos e compromete o ambiente de negócios, porque cria incertezas institucionais.
Reafirmamos, por isso, nosso repúdio a toda forma de racismo, xenofobia e estigmatização regional. O Nordeste não aceitará ser transformado em bode expiatório de disputas eleitorais. Nossa cidadania é indivisível e exige respeito, com políticas públicas baseadas em dados e evidências, não em preconceitos e estereótipos.
Comprometemo-nos, como governadoras e governadores do Nordeste, a defender o crédito para o desenvolvimento com critérios técnicos e transparência; a aprimorar a avaliação dos Gastos Tributários, assegurando que gerem contrapartidas em emprego e inovação; a reforçar a cooperação inter-regional em cadeias estratégicas — das energias renováveis à logística, da saúde às tecnologias industriais e digitais —; e a promover o diálogo federativo em espírito republicano, pautado na verdade dos fatos e no respeito às instituições.
Rafael Fonteles (PT), do Piauí, presidente do Consórcio Nordeste
Paulo Dantas (MDB), de Alagoas
Jerônimo Rodrigues(PT), da Bahia
Elmano de Freitas (PT), do Ceará
Carlos Brandão (PSB), do Maranhão
Fátima Bezerra (PT), do Rio Grande do Norte
Raquel Lyra (PSD), de Pernambuco
João Azevedo (PSB), da Paraíba
Fábio Mitidieri (PSD), de Sergipe