Passados quarenta dias da regulamentação da Lei Aldir Blanc pelo Congresso Nacional, apenas 341,3 milhões, dos R$ 3 bilhões previstos, foram liberados pelo Ministério do Turismo para oito estados, na quarta-feira (9).
Ou seja, 40 dias depois da regulamentação, apenas 10% da verba determinada para auxílio emergencial foi entregue aos trabalhadores da cultura: artistas, contadores de histórias, produtores, técnicos, curadores, trabalhadores de oficinas culturais e professores de escolas de arte e capoeiristas.
A demora se deve à vasta burocracia imposta por Bolsonaro para que o dinheiro chegue até quem precisa, aqueles que foram os primeiros a interromper suas atividades e serão os últimos a voltar. Muitos artistas e outros profissionais do setor estão à beira do colapso.
Tática
A Hora do Povo entrevistou Stefânia Gola, sócia do Ó do Borogodó, uma das principais casas de samba de São Paulo, sobre a situação enfrentada com a pandemia e a falta de auxílio dos órgãos públicos.
Segundo, Stefânia Gola, passados quase seis meses do fechamento dos estabelecimentos culturais, “nós não estamos exatamente conseguindo nos manter… Não há nenhuma entrada de dinheiro. Há contribuições e ajuda de alguns amigos do Ó e, esse pouquinho que chega, tem ajudado a pagar os funcionários, que tiveram a jornada reduzida e agora estão na suspensão do contrato de trabalho. Estamos sem conseguir pagar aluguel e os proprietários do imóvel não estão abertos a nenhum tipo de acordo. Já fomos notificados para a entrega do imóvel”.
Para a sócia do Ó do Borogodó, os recursos da lei Aldir Blanc não terem chegado até agora “é uma tática sórdida e cruel, como tudo o que vem desse governo, de dificultar, frustrar uma conquista que é do setor da cultura, que se articulou politicamente e obteve uma vitória no Congresso Nacional, a despeito da inércia do executivo. Cabe frisar também que a atuação da Prefeitura de São Paulo também até agora não tem ajudado em nada”.
“Por enquanto, como não há cadastro e clareza, ainda estamos vivendo a expectativa da burocracia. Sabemos que será uma guerra. Porém, até o presente momento, todas as linhas de crédito, todos os auxílios anunciados para nós sempre esbarraram nas dificuldades que são comuns a todos os pequenos empresários brasileiros. Acho que não é difícil imaginar que as nossas empresas há anos lutam pela sobrevivência, literalmente vendendo o almoço para comprar a janta. A nossa realidade é de muitas vezes ter que escolher entre pagar um tributo ou pagar o funcionário, ou a conta de luz. Aí, se você tem pendências de qualquer ordem, uma parcela de tributo atrasada, um título protestado, o benefício acaba não chegando. A velha lógica brasileira de que o dinheiro só chega mesmo pra quem não tem problema de dinheiro”.
Stefânia Gola ainda aponta dificuldades com outros projetos. “Estamos desde o começo da pandemia esbarrando nas burocracias e negativas. Não conseguimos aprovação em nenhum Pronampe, fomos contemplados com um (pequeno) prêmio da prefeitura e não pudemos receber porque tínhamos dívida. O recurso da Lei Aldir Blanc significaria uma possibilidade de continuarmos vivos”.
Artistas estão a pão e água
Para o músico Helinho Guadalupe, “diante do desgoverno, incompetência de Jair Bolsonaro, que fez questão de atrasar recursos financeiros aprovados pelo Congresso Nacional, para garantir o não fechamentos de pequenas empresas, e o mínimo de sobrevivência a outros setores, foi fundamental a aprovação da Lei Aldir Blanc. Precisamos para ontem que se faça cumprir a lei aprovada”.
“Me colocando como trabalhador da área musical, que sou, posso afirmar que estamos a pão e água, pois fomos os primeiros a parar é seremos os últimos a voltar com nossa atividade, sem um plano organizado de pagamento e distribuição desses recursos aprovado pela Lei Aldir Blanc, fica quase impossível continuar vivendo. Muitos amigos vendendo instrumentos ou os rifando para garantir a comida à mesa de suas famílias. Estamos sem nos apresentarmos remuneradamente a mais de cinco meses, ninguém aguenta mais com tanto descaso”, frisou.
“Acho isso tudo muito triste, pois sabemos que o setor de Cultura tem uma participação efetiva no PIB do País, haja visto que emprega cerca de 20 milhões de trabalhadores direta e indiretamente”, lembra Helinho Guadalupe.
O músico ainda apontou outra questão importante no debate sobre a destinação dos recursos da lei Aldir Blanc. “Não dá para acreditar que na maior cidade do Brasil, ainda não convocaram os trabalhadores para o cadastro que será a linha direta para o recebimento do auxílio e que ainda teremos que travar uma luta política com setores privilegiados da Cultura que irão abocanhar a maior parte do bolo, podendo ficar de fora segmentos importantes, como os Terreiros de Samba, tradicionais Rodas de Sambas que agitam a cidade, pequenos espaços de Cultura”.
A cantora Railídia Carvalho, que é pré-candidata a vereadora, pelo PCdoB, considera que “a situação dos artistas é muito ruim, especialmente, aqueles dos segmentos populares como, por exemplo, os sambistas que vivem de cantar e tocar em bares”.
“Muitos têm vendido instrumentos, uma situação muito constrangedora e humilhante. Temos também as rodas de samba que tem um trabalho de preservação do gênero onde surgem novos sambas, onde os velhos sambas são lembrados e passados para as novas gerações, onde as mulheres também tem conquistado espaços-tempos de protagonismo como instrumentistas, compositoras e criado rodas formadas especificamente por mulheres”, disse Railídia.
“A Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e o secretario Hugo Possolo tem sido omisso em dialogar com a classe artística e sequer realizou uma mapeamento prévio pra saber quantos são os trabalhadores da cultura em São Paulo. Onde estão? Quem são eles? Como vai calcular então a distribuição de recursos se não tem um mapeamento do setor?”, questionou a cantora.
Atraso
Dentre os estados que receberam a pequena parte do recurso da lei Aldir Blanc, liberada pelo Ministério do Turismo, estão: Amazonas, Maranhão, Paraíba, Paraná, Piauí, Rio Grande do Norte, Santa Catarina e Sergipe.
Além disso, outra parcela ínfima foi liberada diretamente para municípios. A pasta também realizou o pagamento de R$ 13,6 milhões para 63 municípios de estados como São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Ceará e Acre.
Para entender o tamanho do problema, precisamos entender como funciona a lei Aldir Blanc. Ela prevê a distribuição de R$ 3 bilhões para a classe artística. Esse recurso ainda está dividido em três formas de apoio.
Veja:
- R$ 600,00 por três meses aos trabalhadores da cultura, sem emprego formal, que comprovem atuação na área nos últimos dois anos (por documentos ou declaração). É preciso ter renda mensal de até meio salário-mínimo (R$ 522,00) por membro da família, ou renda familiar mensal total de até três salários-mínimos. E, ainda, não ter recebido rendimentos acima de R$ 28.559,70 em 2018.
- O auxílio não será concedido a quem receber outros benefícios do governo federal (exceto Bolsa-Família), ou a quem tiver recebido o auxílio emergencial do governo federal.
- Os espaços artísticos e culturais, micro e pequenas empresas culturais, cooperativas, instituições e organizações culturais comunitárias que tiveram atividades interrompidas por causa da pandemia da Covid-19, também fazem parte dos beneficiários da lei. Esses lugares podem receber três parcelas de R$ 3 a 10 mil para manutenção.
A lei Aldir Blanc ainda prevê que uma parte do recurso seja usada em apoio a editais, chamadas públicas, prêmios, aquisição de bens e serviços vinculados ao setor cultural e outros instrumentos (bem como atividades que possam ser transmitidas pela internet ou disponibilizadas em redes sociais).
Como o dinheiro vai chegar?
A Lei Aldir Blanc determina que os Estados e Municípios criem planos determinando como fazer o dinheiro chegar até os trabalhadores e espaços do setor cultural com o cadastro dos trabalhadores e espaços beneficiados. Esses planos precisam ser aprovados pelo governo federal. Os governos estaduais e municipais precisam formular esse plano, cadastrá-lo em uma ferramenta criada pelo Ministério da Economia, a Plataforma +Brasil, aguardar a liberação pela União e só depois disso recebem a verba para distribuí-la para quem tem direito.
Quando a verba chega aos estados e municípios isso não quer dizer que artistas e espaços culturais estão perto de receber a verba. Nesse momento, quem mais precisa do recurso ainda terá que aguardar os prazos e regras do plano de seu município ou seu estado para quem se cadastrou nas modalidades que o recurso será entregue pela administração estadual.
Os R$ 600 aos trabalhadores ficará sob responsabilidade dos estados. Já os municípios e o Distrito Federal serão responsáveis por distribuir os subsídios mensais para a manutenção de espaços artísticos e culturais.
A Lei Aldir Blanc, aprovada no Congresso Nacional indicava que os repasses financeiros deveriam ocorrer em até 15 dias após aprovação da lei. Mas, apesar da urgência na efetivação das medidas, Bolsonaro vetou o item, e a liberação dos recursos dependerá ainda de cronograma a ser estabelecido pela União.
- Lote 1 – aprovados até 1º de setembro: recebem até 11 de setembro (os 10% liberados agora)
- Lote 2 – aprovados entre 2 de setembro e 16 de setembro: recebem até 26 de setembro
- Lote 3 – aprovados entre 17 de setembro e 1º de outubro: recebem até 11 de outubro
- Lote 4 – aprovados entre 2 de outubro e 16 de outubro: recebem até 26 de outubro.
Ou sejam além da burocracia, os prazos para que o recurso seja liberado pelo governo federal permitem que apesar de regulamentada, em julho, os trabalhadores só passem a receber em novembro.
MAÍRA CAMPOS