
Gestão Tarcísio abriu mão do material enviado pelo PNLD aos alunos do ensino fundamental 2 (6º ao 9º ano) e diz que alunos terão acesso apenas a material digital. Para a UMES, medida é excludente e amplia abismo na Educação
“A aula é uma grande TV, que passa os slides em Power Point, alunos com papel e caneta, anotando e fazendo exercícios. O livro tradicional, ele sai”, disse o secretário da Educação paulista, Renato Feder, ao justificar porque o governo de São Paulo decidiu abrir mão de 10 milhões de exemplares de livros didáticos do programa nacional gerido pelo Ministério da Educação (MEC), que compra obras para todo o País há décadas.
A gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) optou por abrir mão do material enviado pelo governo federal aos alunos do ensino fundamental 2 (6º ao 9º ano) a partir do ano que vem para usar apenas material digital. O ensino médio também deixará de ter livros impressos.
De acordo com ele, o governo estadual também identificou que o material que seria distribuído pelo PNLD em 2024 estava “mais raso, mais superficial” e “tenta cobrir um currículo muito extenso de maneira superficial”.
O PNLD existe – nem sempre com esse nome – há mais de 80 anos no País. Foi reestruturado no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) quando passou a estabelecer critérios rígidos de avaliação. Por meio do programa, o MEC compra livros didáticos para todas as escolas públicas do País, em um negócio que movimenta R$ 1 bilhão e 150 milhões de obras por ano.
As editoras precisam submeter seus livros a uma equipe de especialistas, que pode aprovar ou não as obras, conforme exigências dos editais. Erros conceituais, desatualização, preconceito são motivos de exclusão imediata. Vale destacar que o material próprio da Secretaria Estadual só é aprovado por ela própria.
A resolução de 2008 que dispõe sobre o PNLD afirma que o livro didático é “um direito constitucional do educando”. Atesta, ainda, “a importância da participação do professor no processo de escolha dos livros, em função do conhecimento da realidade do aluno e da escola”.
Portanto, a decisão do governo Tarcísio é uma estratégia que atenta contra direitos dos estudantes e a liberdade de cátedra dos professores.
A decisão não é bem vista por professores, estudantes, dirigentes de ensino e parlamentares.
“A decisão de Tarcísio é absurdamente excludente e promete aumentar ainda mais o abismo entre a educação pública e privada em São Paulo. A exclusão digital e a falta de acesso a equipamentos é a realidade da maioria dos estudantes paulistas e a pandemia comprovou isso”, afirmou a União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo (UMES-SP).
“Atualmente vemos as escolas com problemas para oferecer o mínimo de estrutura para os alunos e, com essa mudança, só irá dificultar cada vez mais o acesso à educação, aumentando a precarização e o sucateamento do ensino público. Não podemos deixar isso acontecer! Precisamos lutar por um ensino inclusivo e que com garantia de acesso a todos”, ressaltou a UMES-SP.
A entidade ainda convocou os estudantes para um protesto contra a medida. “No dia 11 de agosto, voltaremos às ruas. Vamos mostrar toda a indignação dos estudantes com o descaso com a Educação”.
A senadora Teresa Leitão (PT-PE), contestou a exclusão dos livros físicos e afirma que a decisão significa uma subtração ao direito dos estudantes. “A educação deve se utilizar de recursos digitais sempre que esta ferramenta se constituir em ampliação dos horizontes dos estudantes. Excluir os livros em seu formato físico é muito limitante para a educação e retira uma experiência insubstituível para crianças e jovens”.
FALTA DE ACESSIBILIDADE
Para o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Araújo, a decisão é absurda. “Em um país desigual como o nosso é um absurdo tomarmos conhecimento de propostas como esta”.
Ele relembra um levantamento realizado pelo Tribunal de Contas de SP em 08/11/2022, que constatou problemas socioemocionais, falta de acessibilidade a tablets, falta de docência e outras dificuldades em escolas do município de São Paulo.
“Foi constatado que 98% dessas escolas têm problemas socioemocionais, em 20% dessas escolas faltam professores tanto titulares quanto substitutos, 35% não têm nenhum equipamento digital e 65% possuem equipamentos que não funcionam ou funcionam parcialmente. Pelo menos 83% dos alunos não tinham tablet na sala de aula”, ressalta.
O presidente do CNTE afirma ainda que a desigualdade é um fato nacional e reflete na capital mais rica do país. “É uma desigualdade bruta e o governo de SP está fora da própria realidade. É um absurdo essa decisão e é preciso que toda a sociedade brasileira combata esse tipo de proposta”.
O deputado federal Jilmar Tatto (PT/-SP) afirma que a decisão do governo paulista é “puro suco da ignorância bolsonarista e pedagogicamente excludente”. “Essa proposta é um retrocesso absurdo. Além da questão de acessibilidade, pois nem todos têm acesso à tecnologia, também é errada do ponto de vista pedagógico”, disse o parlamentar.
A Associação Brasileira de Livros e Conteúdos Educacionais (Abrelivros), entidade que reúne as editoras de livros escolares, recebeu “com espanto” a decisão da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.
A Secretaria de Educação afirmou que “todas as ações pedagógicas lançadas pela Pasta são definidas com base no material próprio” e que continua no PNLD Literário. A Secretaria também menciona “coerência pedagógica”.
A Abrelivros rebateu: “Não há qualquer prejuízo à coerência pedagógica do sistema de ensino ao se disponibilizar mais material educativo de qualidade para alunos e professores. E isso sem qualquer investimento financeiro por parte do Estado de São Paulo”.
Já o FNDE informou que “o registro de exclusão realizado pela rede estadual de São Paulo para o recebimento das obras didáticas do PNLD está embasado na legislação do programa, que prevê que os entes federados têm autonomia para decidir pela participação ou não no PNLD”.
“O atendimento em 2023 dos estudantes e professores das escolas estaduais de São Paulo para a educação infantil, fundamental e ensino médio totalizou mais de cinco mil escolas, com 5,5 milhões de exemplares físicos. O investimento para aquisição desses livros foi de R$ 78 milhões. Esses valores se baseiam nos dados do Censo Escolar”, diz ainda a nota do FNDE.
De acordo com a Abrelivros, “toda a comunidade foi surpreendida com a decisão”. Ainda nesta terça-feira (1º), o MEC informou que “em breve ocorrerá a escolha do PNLD 2024 – Objeto 1 destinada a selecionar obras didáticas para os anos finais do ensino fundamental (6° ao 9° ano)”.
A Abrelivros também viu com preocupação a informação de que o Estado vai utilizar material didático apenas em formato digital. “Isto vai na contramão do que está sendo visto em países desenvolvidos, como a Suécia, que identificaram a menor retenção de aprendizado utilizando apenas livros digitais, passando a reconhecer a importância do livro físico como essencial para o processo educativo”, diz o comunicado.
REDE PRIVADA QUER OS LIVROS DIDÁTICOS
Muitos dos livros didáticos rejeitados pelo governo de São Paulo para a rede estadual são usados por escolas particulares de ponta na capital paulista.
Os livros oferecidos no PNLD são os mesmos vendidos no mercado privado, com pequenas adaptações de formato exigidos nos editais públicos. Os conteúdos, autores e propostas pedagógicas são iguais. Especialistas acreditam que as exigências do PNLD ao longo das décadas impulsionaram a qualidade do mercado editorial de livros didáticos no Brasil.
O Colégio Miguel de Cervantes, na zona sul da capital, usa para alunos do 6º ao 9º ano a coleção Araribá Conecta, de Matemática (Editora Moderna), que também faz parte do PNLD 2024. O Colégio Bandeirantes, cujos alunos utilizam tablets na sala de aula, pede a versão digital do livro Expedições Geográficas, de Geografia, (Editora Moderna).
A Escola Nossa Senhora das Graças, o Gracinha, na zona sul, adota várias coleções que fazem parte do catálogo do MEC recusado pelo Estado: Geração Alfa, de Língua Portuguesa, Geografia e Ciências (Editora SM), Araribá Conecta, de História, (Editora Moderna) e Telaris, de Matemática (Editora Ática). Esse último também é o escolhido pelo Colégio Oswald de Andrade, zona oeste, para Matemática em todas as séries do fundamental 2.
No Pentágono, zona oeste, é adotado o Matemática e Realidade (Editora Saraiva), também no PNLD 2024. Já o Colégio Equipe, na região central, usa no fundamental 2 o livro A Conquista Matemática (Editora FTD).