Medida beneficia ruralistas nas vésperas da votação de denúncias contra Temer
As vésperas da análise de nova denúncia contra Temer na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, o governo publicou uma portaria (Portaria nº 1.129/2017) para atender as exigências da bancada ruralista no Congresso: a medida restringe a fiscalização do trabalho escravo com novas exigências para se concretizar flagrante, altera as definições de trabalho análogo à escravidão, e determina que a divulgação dos nomes dos empresários criminosos seja feita apenas por decisão “expressa” do ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira.
A ação do governo para agradar os ruralistas, frear o combate ao trabalho escravo e blindar os empresários escravocratas, impedindo a divulgação dos nomes na “Lista suja do trabalho escravo” – lista onde são divulgadas as empresas que submetem indivíduos a essa situação – ficou clara já na semana passada quando o ministro demitiu o chefe da divisão de combate ao trabalho escravo, André Esposito Roston, que vinha denunciando a falta de verbas na área. Com os cortes no investimento e menos fiscalização, o número de pessoas resgatadas caiu 34% em 2016 (766 pessoas) em relação a 2015 (1.010 pessoas).
Para completar o pacote, o governo editou a portaria que libera o trabalho escravo no país, piorando ainda mais as condições a que milhares de trabalhadores são submetidos tanto em áreas rurais como urbanas.
A decisão agradou os deputados do setor que aceitaram a moeda de troca: “é uma portaria bem clara que facilita o dia a dia do empregador. O setor produtivo estava solicitando há muito tempo”, disse o deputado Mauro Pereira (PMDB-RS).
Já o Ministério Público do Trabalho (MPT) condenou a portaria e anunciou que recomendará a sua revogação: “Essa portaria evidencia que o governo está de mãos dadas com quem escraviza. Na verdade, todo o conteúdo dessa portaria já é uma demanda antiga da bancada ruralista, que tem uma representação no Congresso Nacional, e todos esses parlamentares que se aproximaram do governo federal recentemente, se aproveitaram dessa aproximação, e agora todas as suas demandas estão contempladas nessa portaria editada pelo governo federal”, disse Tiago Cavalcanti, coordenador de Erradicação do Trabalho Escravo do MPT.
DEFINIÇÃO DE TRABALHO ESCRAVO
De acordo com as regras publicadas, ficam definidas quatro situações em que o trabalhador deve ser encontrado para se caracterizar trabalho análogo à escravidão:
“a) a submissão do trabalhador a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntária;
b) o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, caracterizando isolamento geográfico;
c) a manutenção de segurança armada com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto;
d) a retenção de documentação pessoal do trabalhador, com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho.”
Dessa forma, denuncia Antonio Carlos de Mello, coordenador do programa de combate ao trabalho forçado da OIT no Brasil, a portaria anula “condições degradantes” como um dos elementos que configuram trabalho análogo ao de escravo ao afirmar que essa situação só existe com cerceamento da liberdade. Quer dizer, empregadores que submetem trabalhadores a locais insalubres, que não fornecem água potável, alimentação adequada, acesso à higiene, antes podiam ser acusados de submeter pessoas a condição degradante, o que muda com a nova regra. Agora, só será considerado trabalho escravo quando houver “cerceamento da liberdade de ir e vir”.
“A portaria traz a ideia reducionista de que escravo é a pessoa amarrada sem possibilidade de fugir. Essa é a ideia falsa utilizada no imaginário para tentar convencer que a legislação atual é exagerada,” diz Xavier Plassat, coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra.
Para Rafael Garcia Rodrigues, procurador do trabalho e ex-coordenador nacional de erradicação ao trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho, o objetivo dessa medida também é aniquilar o conceito de servidão por dívida, um dos que podem caracterizar o crime. “Só seria escravidão análoga se também tiver exceção no direito de ir e vir por pessoas armadas. É um retrocesso inacreditável.”, afirma.
Outro ponto que trata a portaria é que só será caracterizado trabalho escravo quando não houver consentimento do trabalhador, o que vai de encontro com as leis do trabalho atuais. Mesmo que um trabalhador “aceite” trabalhar 14, 16, 18 horas diárias, não é permitido por lei. “Vincular o trabalho escravo ao consentimento do trabalhador é um retrocesso de no mínimo 50 anos”, diz Magno Riga, auditor fiscal do trabalho e membro do grupo especial de fiscalização móvel, responsável por checar denúncias e resgatar trabalhadores.
Para o auditor ainda que o trabalhador aceite trabalhar em um determinado local não significa que ele acatou previamente as condições de trabalho em que ele se encontra. Dessa forma, a ação estatal para retirá-lo daquele trabalho é necessária porque é pouco provável que ela saia da situação por si mesmo, afirma.
Além de exigir essas condições para a caracterização do trabalho escravo, a medida estabelece ainda uma série de exigências para que determinada situação seja autuada como crime, devendo constar “obrigatoriamente”:
“I – Menção expressa a esta Portaria e à PI MTPS/MMIRDH nº 4, de 11.05.2016;
II- cópias de todos os documentos que demonstrem e comprovem a convicção da ocorrência do trabalho forçado; da jornada exaustiva; da condição degradante ou do trabalho em condições análogas à de escravo;
III – fotos que evidenciem cada situação irregular encontrada, diversa do descumprimento das normas trabalhistas, nos moldes da Portaria MTE 1.153, de 14 de outubro de 2003;
IV – descrição detalhada da situação encontrada.”
Esta última ainda deve ser acompanhada de comprovação de “existência de segurança armada diversa da proteção ao imóvel; impedimento de deslocamento do trabalhador; servidão por dívida; e existência de trabalho forçado e involuntário pelo trabalhador”.
Ou seja, querem exigir que uma denúncia por trabalho ilegal, subumano, humilhante, flagrado por auditores fiscais, só seja válida se esse “trabalho” ocorrer de forma bem organizada pelo empregador. Em que situação poderá se exigir do empregado ou do empregador documentos que comprovem trabalho forçado ou jornada excessiva?? Nenhuma. Tudo se trata apenas de dificultar cada vez mais as denúncias.
A medida exige também a obrigatoriedade de “Boletim de Ocorrência lavrado pela autoridade policial que participou da fiscalização”, exigindo a presença de um policial, o que gerou críticas dos auditores fiscais do trabalho: “O texto tenta retirar a atribuição dos Auditores-Fiscais do Trabalho para configurar o trabalho escravo, ao estabelecer a obrigatoriedade de ocorrência policial”, afirma o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (SINAIT).
“Os autos de infração relacionados a flagrante de trabalho escravo só terão validade se juntado um boletim de ocorrência lavrado por autoridade policial que tenha participado da fiscalização, condicionando assim a constatação de trabalho escravo, atualmente competência exclusiva dos fiscais do trabalho, à anuência de policiais”, diz a Comissão Pastoral da Terra.
Para o Sindicato dos Auditores Fiscais, além de agradar a bancada ruralista, essa medida tem como objetivo mascarar os dados do trabalho escravo no Brasil: “O governo quer tornar muito difícil para os Auditores-Fiscais caracterizar o trabalho escravo. Sob as regras da Portaria nº 1.129/2017, em pouco tempo haveria a falsa impressão de que a escravidão acabou no país, mascarando a realidade. Com essa portaria, em pouco tempo haveria redução de mais de 90% dos resgates de trabalhadores. É o caso de tentar mudar a lei para alterar uma realidade, só que, nesse caso, para pior”, afirma o presidente do Sinait, Carlos Silva.
“A portaria condiciona a caracterização do trabalho escravo ao consentimento ou não do trabalhador e à privação do direito de ir e vir, o que nem sempre ocorre. Muitas vezes o trabalhador não vai embora por falta de opção, ou por vergonha, porque acha que tem que saldar a dívida com o patrão, o que não significa que seu trabalho seja digno. Há muitos outros elementos presentes para comprovar a escravidão. O Ministério quer que voltemos ao conceito do Século XIX, de grilhões e correntes. Não vamos aceitar”, completou o presidente.
JÚLIA CRUZ