O governo francês em crise anunciou que o mais recente primeiro-ministro, Sebastien Lecornu, pediu renúncia na manhã desta segunda-feira (6) ao presidente Emmanuel Macron, apenas 14 horas depois de supostamente ter formado seu gabinete.
“Sr. Sébastien Lecornu submeteu a demissão do seu governo ao presidente da república que aceitou,” comunicou o Palácio do Eliseu.
Já é o quinto primeiro-ministro a cair em menos de 2 anos, seu antecessor, François Bayrou, caiu no começo de setembro, depois que foi derrotado no voto de confiança do parlamento francês. O plano orçamentário para 2026 de Bayrou previa cortes de 44 bilhões de euros, uma medida tão impopular que acabou custando seu cargo.
Lecornu durou apenas 27 dias na função de primeiro-ministro – o mandato mais curto da história moderna da França – e tinha como missão dar continuidade à austeridade e arrocho de seu antecessor.
Quanto ao próprio Macron, sua aprovação está beirando o fundo do poço com 17%, enquanto 80% dos franceses não confiam no presidente.
Em consequência da renúncia de Lecornu, a França continua sem orçamento. A líder dos ecologistas, Marine Tondelier, chamou a declaração do mais breve primeiro-ministro da história de “últimas mensagens de um mundo político que está entrando em colapso e se agarrando como um mexilhão à rocha”.
DISSOLUÇÃO DO PARLAMENTO OU RENÚNCIA
O colapso de Lecornu levou a pedidos para a dissolução do parlamento, realização de novas eleições e renúncia de Macron. O líder do partido França Insubmissa (FI), Jean-Luc Mélenchon, pediu a consideração imediata da moção de destituição apresentada por 104 deputados.
Os socialistas apontaram como saída a que foi espezinhada por Macron após as eleições de julho do ano passado: a coabitação com um governo da Nova Frente Popular, que venceu as eleições, mas “Júpiter” tirou da cartola um premiê, contando com a abstenção da extrema-direita.
Agora, sentindo que sua hora pode chegar, a líder da extrema-direita, Marine Le Pen, do Reagrupamento Nacional (RN), defendeu a dissolução do parlamento para realizar novas eleições e pediu a renúncia de Macron.
Ex-banqueiro, Macron tentou uma última cartada: apelou a Lecourn – que aceitou – reunir nesta terça-feira a coligação que sustenta seu governo, que inclui os macronistas e os deputados do Les Républicains, a direita tradicional, para buscar uma derradeira “plataforma comum”.
Assim, o transformista Macron se vê diante de uma crise sem precedentes: “continuar, dissolver ou sair”. Situação que um comentarista da cena política francesa ironizou: “governo francês se evapora antes do café da manhã”.
A CNN registrou que a França “parece ter virado a página do macronismo”.
COABITAÇÃO
O Partido Comunista Francês pediu a coabitação – embora não tenha usado esse termo – com um “governo de esquerda”, numa referência em algum grau à retomada da Nova Frente Popular. “Coabitação” é quando o governo é da direita, por exemplo, mas na eleição intermediária a esquerda ganha e nomeia o primeiro-ministro.
Segundo o PCF, a crise foi “precipitada pela recusa do governo em ouvir as demandas expressas pelo povo francês por uma mudança profunda de direção política.”
“Desde o início de setembro, milhões de trabalhadores se mobilizam por salários, aposentadorias, emprego, indústria e serviços públicos”, e precisam ser ouvidos.
O PCF apresentou uma plataforma mínima para esse governo de esquerda: “Mais 100 euros imediatamente para empregados e aposentados; revogação da reforma da previdência; tributação dos rendimentos elevados e dos rendimentos do capital; critérios sociais e ambientais para os 211 bilhões de euros de ajudas públicas às empresas; um fundo de 100 bilhões de euros para investimento, emprego e formação na indústria e nos serviços públicos”.
O PCF advertiu, ainda, que o Reagrupamento Nacional, ausente das mobilizações sociais e em oposição a essas medidas de justiça, “não é de forma alguma uma alternativa e agravaria a crise ao agravar as fraturas do país com seu projeto xenófobo e racista”.
CGT: MAIS DE DOIS MILHÕES NAS RUAS
A principal central sindical francesa, a CGT, assinalou que Lecornu é o quinto primeiro-ministro em 2 anos a ser forçado a renunciar devido “à violência social de suas políticas” e lembrou que mais de dois milhões de trabalhadores, desempregados e jovens aposentados já se mobilizaram nos dias 10, 18 de setembro e 2 de outubro como parte de uma histórica campanha social de volta às aulas.
A CGT colocou no centro da crise do governo Macron sua decisão de impor a reforma da previdência, contra a qual milhões trabalhadores, jovens e aposentados “vêm construindo uma mobilização histórica há dois anos e meio”. Macron impôs a reforma usando o artigo 49.3, sem votar na Assembleia Nacional. “Por isso, foi punido nas urnas e perdeu a maioria após sua decisão de dissolver a Assembleia Nacional. Trabalhadores e o público precisam ser ouvidos. A negação da democracia e a imposição de reformas devem cessar.”
Para a CGT, mais uma vez, em vez de mudar de política, o Presidente da República optou pelo caos institucional. “Ele corre o risco de transformar uma crise social e democrática em uma crise de regime. Esta decisão é ainda mais grave num contexto de grandes tensões geopolíticas, quando a extrema direita representa um perigo central para as democracias, as liberdades e os direitos sociais na França e no mundo todo.”
30 DIAS DE CAI-CAI
Bayrou caiu poucos dias antes da greve geral do mês passado; Lecornu, após as manifestações multidinárias convocadas pelas centrais sindicais e pelo movimento “Bloqueemos Tudo” – além da avalanche nas ruas em apoio à Palestina.
O que um deputado comunista dissera sobre o orçamento de Bayrou, de ser uma “declaração de guerra social” – congelamento de salários e pensões, enésima reforma do seguro desemprego, eliminação de milhares de cargos públicos e cortes na saúde -, pode ser dito sobre o orçamento que Lecornu sequer chegou a enunciar.
Enquanto isso, Macron é um dos maiores entusiastas de atiçar a guerra na Europa, contra a Rússia, se oferecendo para enviar tropas de socorro aos neonazis de Kiev.
“HEMORRAGIA SILENCIOSA”
Um serviço, pelo menos, Bayrou prestou, o de revelar que a dívida pública francesa se tornou uma “hemorragia silenciosa”. Já ultrapassou os 3,35 trilhões de euros, o que corresponde a cerca de 114% do PIB e poderá chegar, segundo especialistas, até 2030 a mais de 125%. Atualmente, apenas Grécia e Itália têm dívidas públicas maiores.
Ele dimensou a escalada do serviço da dívida. “Em 2020, tivemos que pagar aproximadamente 30 bilhões por ano. Em 2024, foram 60 bilhões. Este ano, 67 bilhões. No próximo ano, em 2026, 75 bilhões. No ano seguinte, 85 bilhões. E no final da década, diz o Tribunal de Contas, serão 107 bilhões”.
Só se esqueceu de nomear quem foram os favorecidos, e certamente não foi o zé-povinho francês. A “advertência” é ainda mais cínica, quando, na vizinha Alemanha, o premiê Friedrich Merz, diz que não há mais como bancar o Estado de Bem Estar Social, e ao mesmo tempo chama seu país a se rearmar até os dentes, desviando para mísseis e canhões dinheiro que deveria ir para a saúde e o bem estar, e chamando a Europa à guerra com a Rússia.
Questão à qual Macron também tem se dedicado intensamente, inclusive fazendo apologia de enviar tropas para a Ucrânia.
É óbvio que o projeto em vigor na União Européia de se rearmar, comprando armas norte-americanas para entregar aos neonazis ucranianos e sustentar a expansão da Otan, num quadro de estagnação na Europa e desindustrialização em favor dos EUA, irá recair sobre os trabalhadores e a classe média.
Afinal, de onde viria o dinheiro para aumentar para 5% do PIB os gastos militares, como ordenado por Trump na última cúpula da Otan? Dos ricos? Dos especuladores?
E sob a diretriz do monumental rearmamento, é de prever que esse endividamento, e o serviço da dívida, irão se agravar.
Na verdade, o objetivo é liberar € 100 bilhões por ano para o rearmamento, ao mesmo tempo em que arrocha o orçamento para garantir aos bancos que a dívida pública francesa pode ser paga. Desde a crise de Wall Street em 2008, a dívida francesa disparou de 68% para 115% do PIB.
Desse aumento de 47 pontos percentuais do PIB, dois terços ocorreram porque a França financiou apenas dois dos muitos resgates bancários da zona do euro: em 2009, após a crise de Wall Street, e em 2020, para conter o pânico financeiro causado pelo início da pandemia de Covid-19. Os países da zona do euro tomaram dinheiro emprestado do Banco Central Europeu e o repassaram aos seus bancos para sustentar os mercados de ações e dívida e inflar a riqueza da oligarquia.
Desde 2009, a indústria e os padrões de vida estagnaram. Mas a riqueza dos 500 franceses mais ricos explodiu após cada resgate bancário, aumentando mais de seis vezes desde 2009, de € 194 bilhões para € 1,228 trilhão, conforme a revista Challenges. Como disse a CGT, “basta de sacrifícios para o mundo do trabalho”.