O dirigente da União Sindical de Trabalhadores da Guatemala (Unsitragua), Julio Coj, denuncia que “a lei-mordaça que o presidente Alejandro Giammatei está tentando impor é voltada a quem luta contra a corrupção, a pobreza e a impunidade” em seu país. Nesta entrevista, o sindicalista cita o exemplo de lideranças dos movimentos sociais e de direitos humanos que foram condenados a três anos de prisão por denunciarem a contaminação da costa atlântica por uma empresa de níquel ou os abusos de uma hidrelétrica. Mais recentemente, citou o caso do advogado Juan Francisco Solorzano Foppa, ex-chefe da Superintendência de Administração Tributária (SAT) da Guatemala, detido por ter imposto multas milionárias a transnacionais.
Boa leitura
LEONARDO WEXELL SEVERO
O movimento sindical e popular de Guatemala manifestou seu repúdio ao decreto-lei do governo de Alejandro Giammattei para calar as entidades e ONGs. Na sua opinião, o que pretende o governo com a medida?
A União Sindical de Trabalhadores da Guatemala (Unsitragua), como parte do movimento sindical e popular autônomo estamos enfrentando uma situação bastante complicada desde 2015, quando começaram as grandes lutas contra a corrupção, a pobreza e a impunidade. Neste período, após fortes manifestações, o povo conseguiu a renúncia do presidente Otto Pérez Molina e da vice-presidente Roxana Baldett. O afastamento de Molina foi também resultado de um amplo trabalho feito com a Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala (Cicig).
Posteriormente, o governo de Jimmy Morales começou uma luta contra as organizações populares, sindicais e estudantis e também contra a Cicig, até que conseguiu retirá-la do país. Baniu a Comissão que veio investigar os crimes dos grupos paralelos de corrupção, como os de comunicação, que se enriquecem cada vez mais para dar sustentação às políticas neoliberais e durante os processos eleitorais com manipulações, enganando a população na hora de votar. A Cicig investigou grandes empresas que davam assistência e respaldo a alguns partidos.
Dessa forma, chegamos em janeiro de 2020 ao governo de Alejandro Giammattei, que apresentou reformas à lei de Organizações Não Governamentais (ONGs), com base no decreto 4-2020 no qual as organizações populares e as ONGS podem ser silenciadas. Por meio dela, o governo não apenas limita a liberdade de organização e de associação, vai além. A Presidência, a partir do Ministério de Governo, a seu bel critério, pode solicitar o cancelamento de uma fundação, de qualquer entidade defensora de direitos humanos e até de um sindicato. É uma lei da mordaça da qual ninguém escapa. Com ela, praticamente o governo tira do caminho qualquer entidade que questione a corrupção, a impunidade e suas medidas antipopulares.
Além disso, atinge organizações camponesas e indígenas que têm o apoio solidário da União Europeia ou de outros países para fomentar a segurança alimentar. Todas elas também ficariam impedidas de receber apoio.
“Armaram a imposição de novos magistrados para fazer com que, uma vez sequestradas as instituições, todos esses poderes paralelos, toda essa estrutura de corrupção e impunidade fique à frente do Estado”
Este é um golpe muito duro na liberdade de associação e de organização do povo guatemalteco, que se viria atingido pelo governo por meio da “Justiça” e do Congresso da República. Armaram a imposição de novos magistrados para fazer com que, uma vez sequestradas as instituições, todos esses poderes paralelos, toda essa estrutura de corrupção e impunidade fique à frente do Estado.
Medidas tão absurdas só foram permitidas, obviamente, porque passaram a agir sem freios com a saída da Cicig.
Agora, querem eliminar o procurador de Direitos Humanos, Augusto Jordán Rodas, por ter se pronunciado contra a corrupção e medidas desastrosas que aprofundam a miséria e a desigualdade. Querem tirar Rodas do caminho por agir contra os golpistas, por defender o sistema democrático e a Justiça que estava sendo construído desde os Acordos de Paz [assinado pelo governo com a Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG) em dezembro de 1996].
Diante deste quadro, qual o papel do sindicalismo?
Bom, é preciso ampliar a mobilização e a resistência, porque o governo tem suas razões para tentar fechar os Sindicatos e as demais entidades. Porque os magistrados do Tribunal Constitucional que foram colocados de lado atuavam legalmente, respeitando a Justiça e garantindo direitos.
Agora, ao contrário, querem impor uma lei de trabalho temporário que reduz violentamente a remuneração dos trabalhadores. Aqui o salário mínimo mensal é de três mil quetzales mensais (US$ 388) e o governo quer reduzir para mil e quinhentos quetzales (US$ 194). Em alguns casos até menos, como em fazendas de café e de cana-de-açúcar que estão pagando 35 a 40 quetzales diários (US$ 4,5 a US$ 5,18), o que é terrível.
Os magistrados anteriores haviam suspenso provisoriamente esse regulamento de trabalho por tempo parcial e também haviam impedido a atividade abusiva de algumas mineradoras, hidrelétricas e monocultivos por não terem consultado os povos originários, conforme estabelecido pela Convenção 169 sobre povos indígenas da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Toda essa exploração foi liberada, escancarada pelo governo, por meio desses novos magistrados, o que representa um duro golpe nos nossos direitos associativos. É uma política repressiva e antidemocrática de Giammattei, que agora tem cooptadas e sequestradas todas as instituições. Não há nenhuma independência de poderes: o Executivo manda no Legislativo e o Legislativo manda no Judiciário. O que está ocorrendo no nosso país é um grave exemplo para toda a América Latina, um grave retrocesso, é algo similar ao que está ocorrendo na Colômbia, em Honduras e no Brasil. Mais do que governos de direita, são governos do grande capital, que protege seus privilégios às custas da negação de direitos, da destruição do meio ambiente e da própria vida dos seres humanos.
Como caracterizaria esta política para os guatemaltecos?
É uma política que aprofunda a semiescravidão. Impõe relações de trabalho de superexploração que beneficiam as empresas guatemaltecas associadas às transnacionais. Temos engenhos de açúcar que integram uma cadeia a nível mundial, da mesma forma que empresas bananeiras ou de palma africana, que vão se enriquecendo com a carta branca dada pelo governo. Em contraposição, nossas entidades têm lutado para que respeitem os direitos dos trabalhadores e, por isso, somos perseguidos, atacam a liberdade sindical e todas as legislações e convenções sobre negociação coletiva.
Há uma enxurrada de denúncias sobre abusos, transgressões e até mesmo assassinatos de lideranças sindicais. Qual tem sido a postura da mídia frente a isso?
Há em nosso país uma mídia corporativa, que é praticamente uma extensão dos interesses dessas grandes empresas, porta-voz de suas vontades. Desta forma, tais meios de comunicação invisibilizam a luta contra quem se levanta em oposição à lógica de quem estão subordinados. Assim, presenteia essas empresas com belas matérias quando elas pintam uma escola, fornecem mochilas ou cadernos, mas omitem inteiramente as denúncias quando estão destruindo bosques, contaminando rios, acabando com o meio ambiente ou desalojando famílias do seu território. E invisibilizam ainda mais aos que lutam e reclamam.
“Temos camponeses presos há mais de três anos por ‘difamarem’ uma empresa de níquel que contamina a costa atlântica; Bernardo Caal, líder indígena e defensor de direitos humanos, por denunciar abusos de uma hidrelétrica, e o advogado Foppa por ter imposto multas milionárias a transnacionais”
Temos camponeses presos há mais de três anos acusados de “difamarem” uma empresa de níquel que contamina a costa atlântica. Da mesma forma, está preso Bernardo Caal, líder indígena do povo maia e defensor de direitos humanos, por denunciar os abusos de uma hidrelétrica. Mais recentemente, foi encarcerado o advogado Juan Francisco Solorzano Foppa, ex-chefe do órgão de arrecadação de impostos, a Superintendência de Administração Tributária (SAT). A perseguição a Foppa é o reconhecimento do seu trabalho, quando fiscalizou e impôs multas milionárias a transnacionais como a Aceros de Guatemala, fazendo uma arrecadação histórica para os cofres do país.
Sua trajetória é coerente e honra o histórico da família. Sua avó materna, Alaíde, foi desaparecida; seu avô materno, “acidentado”; e os irmãos de sua mãe Silvia Solorzano Foppa, Mario e Juan Pablo foram assassinados. Como disse o poeta Julio Roberto Figueroa Toba: “Ser honesto, eficiente e inimigo da corrupção/ é delito em nossa Pátria, onde o crime é o patrão/ e hoje que está passando por momentos críticos/ ninguém duvida que é um preso político”.
O problema é que, como temos as instituições do governo sequestradas pela lógica neoliberal, a promotora do Ministério Público diz que observa as empresas denunciadas. Mas, na verdade, não atua para investigar e impor sanções aos que cometem delitos e violam a lei. Há uma longa lista de empresários e políticos flagrados em crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, reconhecidos inclusive pelo governo dos Estados Unidos, mas não há julgamento. Já contra indígenas e setores populares é tudo ao contrário, prosperam ações que o Ministério Público não investiga.
Nós, como Sintragua, somos parte de uma aliança, de uma unidade de ação para fazer avançar esta luta, junto com a Confederação da Unidade Sindical, Central Geral de Trabalhadores, Movimento de Trabalhadores de São Marcos e o Movimento Sindical e Popular Autônomo Guatemalteco. Enquanto entidade, somos ainda membros da Assembleia Social e Popular, integrada por mulheres, indígenas, estudantes e povos originários.
Como temos afirmado, a investida de grupos políticos, econômicos e criminosos que controlam as instituições do Estado não nos amedronta. Nossa ação tem sido a de mobilizar os guatemaltecos contra a política regressiva, repressiva e antidemocrática do governo Giammattei. Caminhando juntos, seguiremos em frente exigindo Justiça para salvar a democracia