O recuo do governo em relação às regras adotadas desde 1º de janeiro (Instrução Normativa 2.219/2024) com o declarado objetivo de ampliar o controle sobre operações financeiras realizadas via Pix, cartões, Ted, saques e depósitos, dominou o noticiário político e econômico do país nas últimas 24 horas.
Pela proposta da Secretaria da Receita Federal, órgão do Ministério da Fazenda, a partir da nova sistemática, transações que somem R$ 5 mil mensais para pessoas físicas ou R$ 15 mil para pessoas jurídicas passariam a ser monitoradas com mais rigor.
Embora o Fisco tenha esclarecido que a fiscalização das transações via Pix não teriam o objetivo de monitorar a atuação dos trabalhadores informais ou pequenos empresários, nem rastrear o montante movimentado por suas transações cotidianas, pois o imposto incide sobre a renda e não sobre a movimentação financeira, não faltaram ‘especialistas’ para disseminar a falsa informação de que essas operações seriam taxadas pelo Fisco, inclusive as movimentações das pessoas físicas, utilizando, até mesmo, de forma criminosa, a logomarca da Receita Federal.
A nova normativa, portanto, não representaria um problema para esses trabalhadores autônomos (informais) ou micro e pequenos empreendedores, mas, então, porque tamanha repercussão da medida?, a ponto de elevar a notoriedade de figuras como o bolsonarista Nikolas Ferreira, conhecido por sua capacidade de navegar e se monetizar nas águas turvas e sombrias dos oceanos digitais, para ficar apenas nesse exemplo.
O fato é que a mudança proposta obrigava as instituições financeiras a reportar à Receita não apenas uma única transação de R$ 5 mil, mas sim o somatório mensal de todas as movimentações financeiras, dando ao órgão fiscalizador informações sobre rendas que estariam sendo obtidas por esses trabalhadores autônomos e informais sem a devida contrapartida tributária.
A partir daí ficou difícil justificar as novas regras, que amplificavam o raio de ação do Fisco, apenas e tão-somente pela lógica do controle financeiro, mas, também, pela possibilidade de caracterização como renda movimentações financeiras obtidas pelos trabalhadores informais, pois os formais e os servidores públicos, por exemplo, já são tributados na fonte.
Somou-se à clamorosa – e criminosa – desinformação sobre a taxação das movimentações via Pix das pessoas físicas, açulada pelos bolsonaristas, a ameaça que representaria a esse grande universo de trabalhadores que estão fora da CLT, cuja renda média é bem inferior à dos com carteira assinada. Embora a mudança não tenha significado a criação de um novo imposto, trabalhadores autônomos rebelaram-se também com a decisão da Receita.
Dados de 2024 mostram que o rendimento médio dos trabalhadores informais foi de R$ 2.182,00, ou seja, pouco mais que 1 salário mínimo. Muitos, no entanto, conseguem uma renda superior a essa, sendo objeto de imposto se ultrapassar, no ano, R$ 30.639,90, ou seja, menos de R$ 3 mil mensais, valor inferior a 2 mínimos.
Quem são esses trabalhadores?
Hoje, a taxa de informalidade, no Brasil, já atinge quase 40% dos trabalhadores que se encontram no mercado de trabalho. No início dos anos 2000, representavam 28%. São milhões de pessoas que buscam sobreviver através de pequenos negócios e serviços, destituídos da rede de proteção social dos trabalhadores formais – aposentadoria, férias, FGTS, etc.
Trata-se do perverso e, aparentemente, irrefreável processo de uberização, de pejotização da economia nacional, pela ausência de uma política desenvolvimentista capaz de gerar empregos seguros e decentes, especialmente na indústria, amparados pela CLT, que os neo e ultraliberais insistem em continuar retalhando para suprimir direitos (vide a contrarreforma trabalhista de Temer de 2017).
As fake news sobre as transações via Pix para todas as transações das pessoas jurídicas foram turbinadas e amplificadas por essa situação econômica que vem se agravando pela ausência de uma condução desenvolvimentista na economia, diante da obsessão do ministro Fernando Haddad de, sob o manto do novo arcabouço fiscal, atingir o déficit zero, primário, obviamente, pois o nominal, as despesas com os juros da dívida, que já chegam a quase R$ 1 trilhão, no acumulado de 12 meses, é, como diria o filósofo Magri, imexível, para deleite da banca e dos rentistas em geral.
Não é preciso ser um especialista em economia para concluir que tal desiderato buscado por Haddad só será possível pela via do corte de gastos e investimentos, objeto do último pacote do governo que reprimiu o salário-mínimo e outros benefícios sociais, ou pelo caminho do aumento da arrecadação. As novas regras instituídas pela Receita indicavam tacitamente a tendência arrecadacionista temida por milhões de brasileiros que tentam sobreviver todos os dias com as migalhas que são oferecidas pela informalidade. Enquanto isso, a tributação de grandes dividendos e fortunas ou de muitos produtos de exportação, que enriquecem parcela diminuta da população brasileira, continuam presentes apenas nos discursos e ausentes de medidas concretas, que poderiam melhorar a condição do Tesouro e torná-lo, mesmo na lógica atual, menos refém da política de arrocho fiscal que afeta a condição de vida da maioria do povo.
O professor em Direito Tributuário André Felix Ricotta de Oliveira esclarece que a legislação brasileira já garante ao Fisco o monitoramento das transações financeiras. “Temos a lei complementar 105 de 2001 que dá fundamento legal para a Receita Federal ter acesso a essas informações. Temos ainda o decreto 489 de 2002 que regulamenta como as instituições financeiras devem prestar esclarecimentos sobre essas informações”, explica o especialista.
Então, qual a necessidade das novas regras, utilizadas pelos bolsonaristas inescrupulosos de sempre para desgastar o governo? Gerenciamentos de riscos pela Receita Federal, alegaram, sem cobrança de tributos, em absoluto respeito às normas legais dos sigilos bancário e fiscal.
Pois bem, mesmo diante desses desmentidos e esclarecimentos sobre a taxação do Pix ou a instituição de novos impostos, criou-se, com as novas medidas, em boa parte da sociedade, especialmente nos mais vulneráveis – e nos demais, também, desprovidos de direitos e de qualquer rede de proteção social, o sentimento de que o governo quer resolver seus problemas subtraindo ainda mais dos que vivem hoje numa situação muito difícil, diante da contenção da renda e da escalada da inadimplência, terreno fértil para o fascismo nadar de braçada, utilizando, como sempre, a disseminação da mentira e do ódio, através das ferramentas oferecidas pelas grandes redes sociais que teimam em não ser regulamentadas.
Resumo da ópera: as novas regras adotadas pela Receita e, em última instância, endossadas pelo ministro Haddad, abriram as portas para as fake news, levando o presidente Lula a adotar a única medida razoável para frear a onda extremista: a revogação daquela Instrução Normativa e a edição de uma Medida Provisória realçando a gratuidade do Pix, entre outras medidas de coação às práticas criminosas.
Nesse cenário, não há comunicação de governo capaz de resolver crises como essa, principalmente em um ambiente, ainda, de desregulamentação das big techs, usado e abusado pelos extremistas de direta. O recém-empossado e competente ministro Sidônio Palmeira sabe disso. A comunicação pode melhorar, mas não faz milagre.
O episódio deve servir para uma séria e nova reflexão sobre os rumos da economia brasileira, especialmente, sobre a advertência feita por inúmeros consagrados economistas quanto às atuais e, principalmente, futuras consequências dessa política de déficit zero promovida por Haddad, agravada pela escandolosa e irrefreável taxa de juros (real) praticada pelo Banco Central, em um país em que a ameaça inflacionária vem do descontrole cambial, da preservação, ainda que mais suave, da política de Preço de Paridade de Importação (PPI) da Petrobras, da ausência de estoques reguladores de alimentos e do enfraquecimento de mecanismos compensatórios, como o poder de compra do Bolsa Família corroído e uma valorização do salário mínimo insuficiente para conter a insatisfação popular – um quadro que tende a se agravar nos próximos anos com as novas regras aprovadas no final de 2024, como bem demonstrou em seu artigo, reproduzido recentemente pelo HP, o economista David Deccache (leia aqui).
Ainda há tempo de corrigir o prumo e levar o Brasil a porto seguro em 2026, livre da recorrente ameaça fascista à democracia, alimentada, como sempre, pela frustração do povo com a preservação – e indução – de políticas de caráter neoliberal em um governo que foi eleito com outra plataforma e que representa o campo progressista no País.
MARCO CAMPANELLA