SIDNEI SCHNEIDER
O “Romance de 30” surgiu das contradições da realidade nordestina e brasileira, das perspectivas progressistas abertas pela Revolução de 1930 e da ânsia de renovação literária correspondente, não enquanto consequência direta do Modernismo de 1922.1 Afirmar tal coisa hoje, sobre esse período de auge da literatura nacional, pode ser motivo de muita controvérsia, mas não foi sempre assim. Caberia perguntar por que passamos a ensinar às novas gerações o contrário do balanço que fizeram os escritores da época, omitindo inclusive a severa autocrítica dos próprios modernistas. Natural seria que o acirrado debate entre os autores dos decênios de 1920 e 30 tendesse ao arrefecimento com o correr do tempo e a lenta definição das obras mais importantes, entre as quais se destacaram indubitavelmente as do segundo movimento. No entanto, o artificialismo interessado inverteu documentadas circunstâncias, engolfou matreiramente setores de boa contribuição crítica, até gerar enorme discrepância entre a realidade da história literária e sua análise.
Essa inversão não se deu num zás, mas através de lenta desorientação ante fatos históricos, econômico-sociais e literários, para a qual contribuiu a instalação da ditadura em 1964, ao ampliar certa facilidade à propagação de conceitos pouco ou nada propícios à elaboração do que é o Brasil, a cultura e a literatura nacionais e de qual o melhor caminho para o desenvolvimento e a efetiva independência, transplantados de matriz externa sem crítica ou ajuste. Nada disso teria prosperado, conforme veremos, sem a ação de um núcleo midiático-acadêmico, cujas ideias remontam às da aristocracia rural da República Velha, de feição submissa ao imperialismo inglês, então apeada do poder.
Graciliano Ramos, para iniciarmos com o principal escritor do período, em entrevista a Homero Senna, para a prestigiosa Revista do Globo, em 1948, portanto estando publicados São Bernardo (1934) e Vidas Secas (1938), monumentos da nossa literatura, declara com sua verve característica o que pensa:
“Que impressão lhe ficou do modernismo?
“Muito ruim. Sempre achei aquilo uma tapeação desonesta. Salvo raríssimas exceções, os modernistas brasileiros eram uns cabotinos. Enquanto outros procuravam estudar alguma coisa, ver, sentir, eles importavam Marinetti.
“Não exclui ninguém dessa condenação?
“Já disse: salvo raríssimas exceções. Está visto que excluo Bandeira, por exemplo, que aliás não é propriamente modernista. (…) Por dever de ofício, pois estou organizando uma antologia de contos brasileiros, antologia que rola há mais de três anos, tive de reler toda a obra de um dos próceres do modernismo. Achei dois contos de cinco ou seis páginas cada um. E pergunto: isso justifica uma glória literária?
“Franze a testa, detém-se um instante, mas logo prossegue:
“Os modernistas brasileiros, confundindo o ambiente literário do país com a Academia, traçaram linhas divisórias rígidas (mas arbitrárias) entre o bom e o mau. E querendo destruir tudo que ficara para trás, condenaram, por ignorância ou safadeza, muita coisa que merecia ser salva. Vendo em Coelho Neto a encarnação da literatura brasileira – o que era um erro – fingiram esquecer tudo quanto havia antes, e nessa condenação maciça cometeram injustiças tremendas. Nas leituras que tenho feito, para a organização da antologia a que me referi, encontrei vários contos, de autores propositadamente esquecidos pelos modernistas e que seriam grandes em qualquer literatura. (…) Só posso atribuir isso, como já disse, à desonestidade. Porque se os compararmos aos produtos dos líderes modernistas, estes se achatam completamente.
“Quer dizer que não se considera modernista?
“Que ideia! Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão.”2
Para que os leitores presentifiquem não só a firmeza, mas também a afabilidade, a simpatia, o humor e a modéstia de Graciliano, ao contrário do que querem fixar tortuosos e sofisticados detratores, pois eles existem, recuperemos a atitude do autor. É verdade que ele provocava, desestabilizava as ideias estereotipadas, às vezes inclusive as do entrevistador, para só então envolvê-lo com sua cordialidade. Embora aqui queiramos destacar a contundência do debate, para que não restem dúvidas acerca da impossibilidade de se exigir uma descendência inteiramente direta entre um movimento literário e outro, sirva de exemplo da atitude de Graciliano a entrevista dada a José Guilherme Mendes, para a Revista Manchete, em 1952. Como este último se revelou demasiado generalista e tacanho nas perguntas iniciais, não levou agrados nas respostas. Porém, a certa altura, o repórter expõe no corpo da matéria a sua enorme surpresa com a doçura do entrevistado e a mudança do clima na sala da casa do escritor: “Desapareceu a voz cortante. Desapareceram as palavras frias e hostis. (…) Vi que tinha cabeça, tronco, membros e coração.” A pedido de Graciliano, a filha Luiza passa a ler um capítulo do inédito Viagem (1954) para José Guilherme, aquela que ele havia feito com a esposa à União Soviética e à Tchecoslováquia entre maio e setembro daquele ano de 1952, antecipando-se a um desejo que José Guilherme ainda não tivera ocasião de revelar: “E de nossa conversa, aquele dia, ficou uma importante entrevista. Tomei notas, para não esquecer. E, assim, posso apresentar a opinião de um dos poucos escritores realmente grandes deste país a respeito de coisas e pessoas ligadas ao ofício a que se dedicou e deu nobreza.”3
Em outra entrevista, para Osório Nunes do semanário Dom Casmurro, de 1942, Graciliano declara: “O modernismo morreu em 1930. Aliás, não se pode fixar, rigorosamente, esse ano como o do seu perecimento. O que se observa é que, pelo menos nas cercanias de 30, o modernismo surgido com a Semana de Arte Moderna desapareceu.” E arremata, “O modernismo fracassou, (…) nenhum dos seus poetas faz mais, a rigor, poesia modernista. Nem mesmo Manuel Bandeira, que, por sinal, escreveu Os sapos em 1918. O próprio Mário de Andrade está escrevendo direitinho, bem comportado. Só de longe em longe, surgem umas expressões que lhe são típicas. Oswald de Andrade modificou-se. Menciono apenas a camada superior da gente de São Paulo. E o grupo secundário? [pergunta o entrevistador]. Nesse nem se fala…” Considera que houve “libertação das cadeias do espírito”, contudo “na prosa nada conseguiram realizar. Mário de Andrade e Oswald tentaram o romance. Sem êxito. Enquanto a poesia adquiria expressão, o romance modernista não tinha conteúdo”. Perguntado como poderia explicar, então, “as versões que o classificam entre as expressões consequentes à Semana [de 22]”, Graciliano, segundo o jornalista, esboça um sorriso e diz: “O modernismo presta-se, admiravelmente, a todas as confusões…”4
Em 1951, para Otto Maria Carpeaux, na Folha da Manhã, Graciliano reafirma, “com firmeza e orgulho” segundo informa a matéria, que “Sempre fui anti-modernista”, sem nunca ter escrito “preposições em final de período”.5
Nas entrevistas e na crítica para jornais, Graciliano também respondia a ataques de escritores conservadores, menos importantes aos olhos de hoje, mas com expressão nos jornais. Em 1937, o carioca Octávio de Faria, de fortes predileções intimistas acerca do drama da burguesia, em O jornal, rebaixa a explosão literária nordestina à mera “tapeação ou propaganda de ideias sociais”, o que rende polêmica. Mais tarde, ao criticar en passant a obra de dois autores, um deles o em questão, para A Noite Ilustrada, em 1952, Graciliano conclui, misterioso: “Prefiro o Octávio Faria!”. “Por que, mestre Graça?”, quer saber o repórter: “Esse, pelo menos, ninguém lê.”6
Para Castro Sorromenho, do Diário Popular de Lisboa, em 1949, após desancar a literatura à qual o Modernismo pôs termo, “fabricada numa língua estranha, com ideias importadas, falsa e medíocre”, feita por sujeitos “amarrados a um academismo estéril, de todo alheado dos fatos nacionais, sem arte nem vida”, Graciliano considera alguma contribuição: “devemos muito aos modernistas, que, embora nada tivessem construído, souberam empunhar e meter fundo a picareta, espalhar o terror e abrir caminho. Abrir caminho foi tudo, e muito, o que eles fizeram. Em 1930 o terreno estava mais ou menos desobstruído”.7
Para que ninguém descontextualize a profundidade das afirmações de Graciliano, examinemos as avaliações dos seus pares e a autocrítica dos modernistas.
ROMANCISTAS DE 30
Jorge Amado recorda um depoimento da cearense Rachel de Queiroz: “Ela dizia que o que foi decisivo para nós [os escritores] foi a Revolução de 30, que representava um interesse pela realidade brasileira que o modernismo não tinha, e um conhecimento do povo que nós tínhamos, e que os escritores do modernismo absolutamente não tinham”.8 Quase o mesmo, diz o paraibano José Lins do Rego ao relatar a enfática opinião do amigo Gilberto Freyre: “O Brasil não precisava do dinamismo de Graça Aranha, e nem da gritaria dos rapazes do Sul; o Brasil precisava era de se olhar, de se apalpar, de ir às suas fontes de vida, às profundidades de sua consciência”.9
Como ver relação direta de consequência entre 1922 e 1930, se os protagonistas rechaçavam qualquer vinculação desde os anos vinte?
José Lins do Rego, num texto para o Jornal de Alagoas, de 15 de dezembro de 1927, em que faz o elogio de O mundo do menino impossível, do poeta Jorge de Lima, diz que a arte brasileira “não virá dos discursos às estrelas do Sr. Plínio Salgado, nem tampouco dos saltinhos à Piolim do muito talentoso Oswald de Andrade”, pois “nessa gente opera-se uma modernização de superfície”, mas virá sim, como se dizia à época, “do caráter puramente regionalista”. Ou seja, do caráter popular e realista, que logo conduziria a literatura brasileira a reafirmar o seu caráter nacional. José Lins nega, como se veneno fosse, o que os “rapazes de São Paulo oferecem com insistências de anúncios de remédio”. Quanto ao livro que examina, para ele Jorge de Lima rompeu com o passado [o parnasianismo] sem precisar aderir à “convenção modernista”: “Aos seus poemas ele deixou que vivessem à vontade. Fugiu de os ajustar aos seus preconceitos de antigamente ou de os compor assim para não ficar atrás, como certos sujeitos, sempre preocupados em tomarem à hora certa os trens que levam à notoriedade e à voga”.10
Em momento distinto, Jorge de Lima concorda: “Abandonamos os velhos moldes porque também em Maceió, como em todo o Nordeste, àquele tempo, amadureceu e tomou forma, no espírito dos escritores, o desejo de fazer alguma coisa nova e diferente do que então se perpetrava por esse Brasil afora, na poesia, no romance, no ensaio, etc”.11 E o pioneiro José Américo de Almeida, escrevendo igualmente sobre Jorge de Lima, no jornal União, de João Pessoa, em 1928, trata de um Zeitgeist, o espírito do tempo, ávido de renovação e encontro no povo: “Antes de se falar em Modernismo no Brasil já todo mundo estava enjoado dos requintes dos parnasianos uniformes. Havia sede de poesia como é de verdade em tempo de seca. (…) Daí o êxito da musa matuta, a procura dos trovadores analfabetos”.12
Quando, em 1942, o Brasil está fazendo o balanço do movimento, José Lins do Rego retorna ao tema: “Eu mesmo (…) me pus no lado oposto, (…) para verificar na agitação modernista uma velharia, um desfrute que o gênio de Oswald de Andrade inventara para divertir os seus ócios de milionário. (…) A língua de Mário de Andrade nos pareceu tão arrevesada quanto a dos sonetos de Alberto de Oliveira. A língua que Mário de Andrade quis introduzir com o seu livro é uma língua de fabricação; mais um arranjo de filólogo erudito do que um instrumento de comunicação oral ou escrito”.13
OSWALD E MÁRIO DE ANDRADE
O próprio Mário de Andrade, após ponderar que “O modernismo, no Brasil, foi uma ruptura” admite que “as modas que revestiram esse espírito foram, de início, diretamente importadas da Europa”.14 No final de uma conferência-balanço de 1942, publicada no jornal O Estado de S. Paulo, não tergiversa nem sofisma, como atualmente se pretende fazer em seu nome: “o movimento modernista era nitidamente aristocrático”, entre outras razões, “pela sua gratuidade antipopular, pelo seu dogmatismo prepotente, era uma aristocracia do espírito”. E conclui que o Modernismo não foi um início: “Si tudo mudávamos em nós, uma coisa nos esquecemos de mudar: a atitude interessada diante da vida contemporânea. (…) Nós éramos os filhos finais de uma civilização que se acabou, e é sabido que o cultivo delirante do prazer individual represa as forças do homem sempre que uma idade morre”.15 O que findava, evidentemente, era a República Velha. Se hoje alguém sustentar tais afirmações em certas esferas, ocultando a autoria, é capaz de gerar síncopes e fulminar miocárdios.
Oswald de Andrade, em uma de suas inúmeras fases-faces, chama o Modernismo de “literatura nova-rica da semi-colônia” e cunha a categoria do “sarampão antropofágico” no Prefácio a Serafim Ponte Grande. O que talvez não queira dizer muito, em se tratando de Oswald, mas reflete o clima anterior à atual supervalorização: “O movimento modernista, culminado no sarampão antropofágico, parecia indicar um fenômeno avançado. São Paulo possuía um poderoso parque industrial. Quem sabe se a alta do café não ia colocar a literatura nova-rica da semicolônia ao lado dos custosos surrealismos imperialistas? Eis porém que o parque industrial de São Paulo era um parque de transformação. Com matéria-prima importada. Às vezes originária do próprio solo nosso. Macunaíma. A valorização do café foi uma operação imperialista. A poesia Pau-Brasil também. Isso tinha que ruir com as cometas da crise. Como ruiu quase toda a literatura brasileira ‘de vanguarda’, provinciana e suspeita, quando não extremamente esgotada e reacionária. Ficou da minha este livro.”16
O “Romance de 30”, justamente aclamado pela crítica e academia, sobretudo pelos inúmeros leitores das sucessivas edições, é mais do que “Romance Nordestino”, extrapola a designação de “Romance Rural” e não pode ser reduzido sem falsidade a mero “Regionalismo”, constituindo-se em expressão literária nacional e, quando em tradução, internacional. Se, como vimos, José Lins usou o termo regionalismo em 1927, é porque ainda não havia “Romance de 30”, nem como avaliar o seu desdobramento, visto que A bagaceira, de José Américo de Almeida, tido como o romance inaugural, viria a público somente em 1928. No entanto, as referidas expressões, encontráveis em alguns textos alusivos à centridade modernista, pretendem substituir a expressão mais utilizada no debate literário, conforme a sua gradação de horror à importância de algum dos escritores ou do movimento como um todo.
ALFREDO BOSI E OS ESTADOS
Como curiosidade, para se ter uma ideia da pequena repercussão do Modernismo no território brasileiro, bastaria ler o subtítulo Grupos modernistas nos Estados, do afamado História Concisa da Literatura Brasileira, que é concisa mas tem quase seiscentas páginas, de Alfredo Bosi. O autor cita Belo Horizonte, Cataguases, Porto Alegre e uma palestra do paulista Guilherme de Almeida no Recife. Talvez por isso, logo admite que “Isso não quer dizer que tenha havido ‘derivações’ como pode sugerir uma crítica simplória”, porque o que ele ainda chamava de “Modernismo do Nordeste, foi uma realidade poderosa com o facies próprio da região e deu o tom ao melhor do romance dos anos de 30 e de 40”.17
ERICO, DYONÉLIO E CYRO
Na literatura do Rio Grande do Sul, sede da importante Editora Globo, que publicaria novos escritores brasileiros, “o movimento de 22 não teve repercussão imediata” e ecoaria em poucos nomes, atesta a decana Regina Zilberman, escudada em Guilhermino Cesar.18 Antes, surgira inovadoramente Simões Lopes Neto, autor de Contos Gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913). Na década de 30, o romance rio-grandense buscava renovação semelhante a que acontecia no Nordeste, o que não é de surpreender, pois se a realidade local trazia peculiaridades, o momento de virada para tirar o país do atraso era o mesmo e galvanizou os escritores igualmente, ao desenvolverem obras pertinentes à realidade social com linguagem própria, através de heróis desvalidos em busca de sobrevivência e redenção.
Dyonélio Machado, no romance Os ratos (1935), abordou pioneiramente em âmbito nacional as graves contradições do meio urbano, no caso, o da capital gaúcha, e Cyro Martins, com a trilogia do “gaúcho a pé”, nos romances Sem rumo (1937), Porteira fechada (1944) e Estrada nova (1954), as do meio rural latifundiário, enquanto Erico Verissimo produzia o que chamou de “um corte transversal da sociedade” a partir de 1933, com o deslizamento das famílias do campo para a cidade, tendo publicado no final da década seguinte a primeira das três partes da sua obra maior, O tempo e o vento (1949), usufruindo e ampliando literariamente as percepções e inovações do “Romance de 30”. Esses escritores não surgem como consequência unívoca do Modernismo dos anos vinte, embora sempre se encontre quem considere um tremendo e irreparável atraso não terem os gaúchos seguido o modelo aristocratizante, para lembrar a nítida expressão marioandradina.
Já o mineiro Luiz Ruffato, escritor da atualidade a quem devemos a compilação das citações de José Lins do Rego e Jorge de Lima, identifica que os romancistas surgidos na década de 1930, engendradores de uma das maiores renovações literárias da nossa história, “eram modernos, sim, mas não modernistas…”.19
FASES PARA CENTRALIZAR 1922
Outro aspecto de supervalorização, apontado pelo crítico Luís Augusto Fischer com certo humor no texto Pré-modernismo é a mãe, vem da insistência em qualificar escritores tão diversos como Euclides da Cunha, Augusto dos Anjos, Simões Lopes Neto, Lima Barreto, Monteiro Lobato e, lembraríamos nós, a poeta Gilka Machado, como expoentes de um “Pré-Modernismo”. Como assim?! Para garantir a supremacia do Modernismo de 1922 na história literária, adota-se expressão calcada numa ideia absurdamente linear, a de que os importantes escritores que vieram antes, sem nada a ter com o Modernismo, visto que este nem existia, estavam apenas servindo de tapete para aqueles adentrarem soberbamente na mansão modernista?
Examinemos o trecho acerca da posição inaugural de certos historiadores e comentadores literários: “se o Modernismo é o novo centro, vejamos o que veio antes, para marcar o ponto de ruptura. Estava claro que o ano de 1922 era o marco, com a Semana de Arte Moderna. Então a coisa seria assim: a Verdade Moderna foi revelada por São Mário e São Oswald de Andrade, e antes deles só havia o Deserto Inominável, a Burrice, o Atraso. Mas se deram conta de que alguns autores anteriores a 22 tinham lá algum valor (…). Então inventaram a categoria Pré-Modernismo, para enquadrar os autores que, segundo os paulistas, anunciaram os novos tempos, isto é, anunciaram a chegada dos Messias Mário e Oswald. Aos anteriores, só restava o papel de joões batistas. (…) como se eles fossem apenas os precursores, cuja obra, portanto, teria valor apenas como prenúncio, não como realização. O que me irrita é a gente continuar a repetir essa pequena mas significativa tolice, assim no mais, acriticamente. Se já não ficou claro, eu repito: não existe Pré-Modernismo em nenhum lugar. E pior: o termo não faz jus aos autores que pretende designar”.20
Assim, parece até que tudo o que houve em termos de literatura do final do século dezanove até o presente existiu para redundar ou ser consequência do Modernismo dos anos vinte: Pré-Modernismo, 2ª fase do Modernismo, 3ª fase do Modernismo, e, quando referência local, Pós-Modernismo, Pós-pós-Modernismo…
O texto de Fischer integra o capítulo Contra São Paulo, e mais não precisamos dizer. No entanto, a questão, ao que nos parece, não seria exatamente paulista, mera contradição entre o Estado mais industrializado do país e os demais, pois há outros interesses em jogo, que definem a principal contradição existente no nosso país, aquela que opõe a Nação e a brutal dominação externa, que suga o produto do trabalho dos brasileiros e suas riquezas através dos mais diversos expedientes, com destaque para a apropriação das verbas públicas federais via juros da dívida. E, se é certo que a aristocracia entreguista vinculada ao imperialismo inglês, apeada do poder pela revolução de 1930, tomou como suas as aspirações do capital financeiro norte-americano, aliando-se política e ideologicamente a ele a partir de um núcleo midiático-acadêmico, intelectualmente chicago-boy e afrancesado, capaz de lhe dar alguma sustentação, isso não faz dela o centro do mundo nem a torna dona do campinho eternamente. Trocando apenas de amo, atualizou-se até chegar às formulações do american way of thinking, usualmente expressas através dos requintes de um falsamente erudito intelectualismo francês, muito mais labiríntico do que aquele e, portanto, menos repugnante para setores que pretendem ser vistos como progressistas, apesar das muitas evidências em contrário. Se as últimas décadas de sucessivo desmantelamento do Estado nacional para o bem do capital financeiro não favoreceram nem favorecem a disseminação de ideias e propósitos genuínos no âmbito institucional, as contraposições a tal campo têm mantido o debate e a luta política aquecidos.
LEITURA DAS OBRAS
Se a discussão no século anterior implica alguma contundência, na qual incidem inclusive os textos autocríticos dos modernistas, estamos longe de pretender jogar fora um período da nossa literatura, menos ainda de execrar de antemão e negativar totalmente autores e obras. Não tratamos aqui de fazer o balanço integral do Modernismo, mais ocupados em evidenciar as agudas contradições entre os dois movimentos. As obras obviamente precisam ser lidas, sopesadas e avaliadas com acuidade em cada gênero, pois o debate relatado tende a se deslocar para o romance. Necessário se faz, também, prestar reverência à contribuição de Manuel Bandeira, que extrapola em muito a ebulição modernista.
Visto que Mário de Andrade fracassou na pretensão de adaptar a língua escrita à pronúncia, a qual obviamente se altera de lugar para lugar e até de pessoa para pessoa, ao não perceber que a norma culta, a que se aprende na escola, precisa ser unificadora; e Oswald de Andrade acertou ao evidenciar a forte tendência à próclise na evolução do português-brasileiro em comparação à ênclise e à mesóclise do português europeu, no sintético e sempre citado poema Pronominais (Dê-me um cigarro/ Diz a gramática/ Do professor e do aluno/ E do mulato sabido// Mas o bom negro e o bom branco/ Da Nação Brasileira/ Dizem todos os dias/ Deixa disso camarada/ Me dá um cigarro21), procedimento que se incorporou à língua padrão e inclusive a parte da escrita, sendo que inexiste norma oficial para a língua falada, apenas escolha do falante quanto à adequação do seu uso mais ou menos formal de acordo com a situação ou o ambiente; Mário é personalidade de contribuições.
Recordemos seu papel no registro da genuína música popular, as cartas a inúmeros escritores e artistas, especialmente as endereçadas a um iniciante Carlos Drummond de Andrade, as quais há muito destacamos nestas páginas.22 E, igualmente, a incorporação de Mário de Andrade, junto a Cândido Portinari, Manuel Bandeira, Heitor Villa-Lobos, Cecília Meireles, Lúcio Costa, Vinícius de Morais, Rodrigo Melo Franco de Andrade, tendo à frente o chefe de gabinete Carlos Drummond de Andrade, à tarefa de promover a arte e a cultura brasileira, durante o período de Gustavo Capanema no Ministério da Educação e Saúde, entre 1934 e 1945.23
O que está torto, o que impede a visão limpa do passado e do horizonte, desqualificando ou diminuindo a importância de autores e obras, é a supervalorização do que precisa ser visto em sua contingência, em seu real peso e tamanho, de acordo com a sua efetiva contribuição ao fazer literário e à cultura do país.
Também não tratamos de fazer o balanço integral do “Romance de 30”, que naturalmente comporta obras desiguais, embora as definitivas sejam praticamente de consenso. Graciliano Ramos, na hora quente da leitura e do debate, foi um dos maiores críticos do próprio movimento, bastava aparecer uma obra sem a plena construção literária ou abordando paisagens exóticas sobre as quais o autor nada conhecia.
A literatura de uma Nação não é feita por uma ou duas pessoas, nem por meia-dúzia de escritores, mas por um conjunto que age no todo da consciência e sensibilidade nacionais, primando por dar o seu melhor. Evidentemente, com a sedimentação das leituras, vão permanecer as obras mais destacadas e seus respectivos autores. O Brasil tem a alegria de poder contar, entre as de primeira grandeza, com as de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Erico Verissimo e muitas outras.
(2015)
NOTAS
1 Optamos por respeitar as grafias “modernismo” e “Modernismo” de acordo com a citação colhida. Em geral, entre modernistas e romancistas de 30, a palavra aparece em minúscula. Ao usá-la nós mesmos, grafamos o nome do movimento em maiúscula.
2 Graciliano Ramos, Revisão do Modernismo, in: Homero Senna, República das Letras, entrevistas com 20 grandes escritores brasileiros, 3a. ed., revista e ampliada, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, pp. 197-210. A publicação da entrevista neste livro, originalmente dada à Revista do Globo em 18 de dezembro de 1948, trouxe diagramação mais ágil, pequenas correções quanto a clareza do que formula o entrevistador e suprimiu uma introdução deste último pouco adstrita a Graciliano Ramos e sua obra. Mais recentemente, a entrevista foi republicada de acordo com a Revista do Globo, em Graciliano Ramos,Conversas, (Org.) Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla, Rio de Janeiro: Record, 2014, pp. 188-206.
3 Graciliano Ramos, 2014, op. cit., pp. 245-254.
4 Ibidem, pp. 131-136.
5 Ibidem, pp. 224-233.
6 Ibidem, pp. 354-356.
7 Ibidem, pp. 214-218.
8 Alice Raillard, Conversando com Jorge Amado, Rio de Janeiro: Record, 1991, p. 53; Sidnei Schneider, Uma palavrinha sobre Getúlio e Graciliano, Hora do Povo, São Paulo, 10 mar. 2006, p. 8.
9 José Lins do Rego, Gilberto Freyre, in: O cravo de Mozart é eterno, crônicas e ensaios, Rio de Janeiro: José Olympio, 2004, p. 52.
10 José Lins do Rego, Nota, in: Jorge de Lima, Poesias completas, Rio de Janeiro/Brasília: José Aguilar/MEC, 1974, pp. 139-144.
11 Jorge de Lima, O mistério poético, in: Homero Senna, República das Letras, entrevistas com 20 grandes escritores brasileiros, 3ª. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, pp. 129-130.
12 José Américo de Almeida, Nota, in: Jorge de Lima, Poesias completas, Rio de Janeiro/Brasília: José Aguilar/MEC, 1974, p. 70.
13 José Lins do Rego, Espécie de história literária, in: O cravo de Mozart é eterno, crônicas e ensaios, Rio de Janeiro: José Olympio, 2004, p. 43.
14 Mário de Andrade, Aspectos da cultura brasileira, apud Nelson Werneck Sodré, História da literatura brasileira, Rio de Janeiro: Bertrand, 1988, pp. 530-531.
15 Mário de Andrade, O movimento modernista, Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1942, pp. 28-29 e 72-77.
16 Oswald de Andrade, Memórias sentimentais de João Miramar. Serafim Ponte Grande,Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1971, p. 119.
17 Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, 3a. ed., 17a. tir., São Paulo: Cultrix, 1993, p. 390.
18 Regina Zilberman, A literatura no Rio Grande do Sul, 3ª ed., Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992, p. 63.
19 Luiz Ruffato, Maceió, 1930 (1) e Maceió, 1930 (2), Curitiba, Rascunho, respectivamente jul. 2008, p. 14 e ago. 2008, p. 18.
20 Luís Augusto Fischer, Para fazer diferença, Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998, pp. 174-176.
21 Oswald de Andrade, Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias reunidas), São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 122.
22 Mário de Andrade, A lição do amigo, 2ª ed. revista, Rio de Janeiro: Record, 1988; Sidnei Schneider, Mário de Andrade do Brasil, Hora do Povo, São Paulo, 05 out. 1996, p. 8.
23 A propósito, no último governo Vargas, foi chefe de gabinete do Ministro das Relações Exteriores o mineiro Guimarães Rosa, outro de obra consequente à disposição dos romancistas dos anos 1930 de ir ao encontro da realidade e do povo brasileiro.