
MPF apontou três principais inconstitucionalidades no texto aprovado na terça-feira pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro
O Ministério Público Federal (MPF) enviou, nesta quarta-feira (24), um ofício ao governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), apontando inconstitucionalidades no projeto de lei aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), que prevê gratificações para policiais civis que “neutralizarem” supostos criminosos durante confrontos.
Apelidada de “Gratificação Faroeste”, a proposta garante um bônus que varia de 10% a 150% sobre o salário dos agentes envolvidos em ações que resultem na prisão ou morte de suspeitos durante confrontos armados. A premiação também será concedida mediante a apreensão de armas de grande calibre ou de uso restrito, segundo o projeto, que integra o plano de reestruturação da Polícia Civil fluminense.
O MPF apontou três principais inconstitucionalidades no texto aprovado na terça-feira (23): vício de iniciativa, pois o projeto deveria partir do Executivo; descumprimento de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), por contrariar a ADPF 635, que trata da letalidade policial no Rio; e violação ao direito à segurança pública, ao prever bônus por mortes – o que, segundo o MPF, incentiva o uso excessivo da força, sem evidências de que a medida contribua para a redução da violência.
“Há um evidente favorecimento do incremento da letalidade policial, contrariando a alegação do Estado do Rio de Janeiro no STF de que havia cessado o ‘estado de coisas inconstitucional’ na segurança pública”, escreveu o procurador Júlio José Araújo Júnior, da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC).
A bancada do PSOL na Alerj, que votou contra a proposta, também criticou a falta de investimentos em inteligência e investigação. “É claro que precisamos de investimentos, mas esse investimento não pode se transformar numa disputa por recompensas ao estilo faroeste, como se estivéssemos premiando quem mata mais”, afirmou a deputada Renata Souza.
Segundo a parlamentar, o orçamento da segurança pública no Rio de Janeiro gira em torno de R$ 13 bilhões, mas menos de 1% é destinado a áreas como inteligência, informação e perícia. “Todos queremos melhorias. Em especial, queremos avanços na área da perícia, e que a investigação se torne algo concreto e efetivo. Hoje, no estado do Rio de Janeiro, praticamente não há investigação”, completou Renata, que integra a Comissão Especial das Favelas e Periferias da Casa.
O deputado Flávio Serafini (PSOL) alertou que a proposta pode estimular o uso excessivo da força e resultar em execuções extrajudiciais. “O problema é que você não tem clareza sobre como cada morte será investigada”, afirmou. Para ele, a promessa de gratificação pode influenciar diretamente a decisão de uso da força letal, mesmo quando não for necessária. “A polícia vai ser estimulada a matar nessas situações ou a agir segundo a lei?”, questionou. “Isso é ilegal”, concluiu.
Também membro da legenda, o deputado federal Henrique Vieira criticou a repetição de uma política que, segundo ele, já se mostrou desastrosa no passado. “Essa política já existiu, lamentavelmente, no Rio de Janeiro, entre 1995 e 1998, no governo de Marcello Alencar. O resultado foi mais tiroteios, mais homicídios, mais violência, mais medo, mais execuções extrajudiciais. Houve muitos relatos de tiros na nuca, tiros no ouvido – execuções, de fato. Basicamente, é uma política que pode financiar execuções sumárias.”
Vieira defendeu que o combate ao crime deve se basear em estratégia, e não em violência. “Recentemente, o Governo Federal, em articulação com órgãos de inteligência e o Ministério Público, realizou a maior operação contra o crime organizado no Brasil. Recuperaram bilhões, sem dar um tiro sequer, com base em planejamento, coordenação e inteligência”, exemplificou. Ele ainda criticou a seletividade racial e territorial das operações policiais no Rio: “Imagina o efeito disso sobre a vida dos pobres, dos negros, da periferia, da favela.”
A criminalista Maria Fernandes, da FGV Direito-Rio, também condenou a proposta, classificando-a como um grave retrocesso na política de segurança pública. “Ao invés de avançarmos com iniciativas que possam efetivamente reduzir a criminalidade e investir em aspectos preventivos, damos passos para trás, com uma política que não resolve o problema e ainda estimula mais homicídios e mais letalidade policial”, analisou.
A ideia da gratificação, contudo, não é inédita no Rio. Ela remonta ao período entre 1995 e 1999, durante o governo de Marcello Alencar, quando o general reformado Nilton de Albuquerque Cerqueira, então secretário de Segurança Pública, instituiu uma política semelhante. À época, a chamada “Gratificação Faroeste” provocou um salto na média mensal de mortes em ações policiais no município do Rio, que passou de 16 para 32.
O deputado Carlos Minc (PSB) relembrou os resultados de uma pesquisa feita com peritos durante esse período. “Eles provaram que 64% dos mortos em combate – na época chamados de ‘autos de resistência’ – apresentavam tiros na nuca e no ouvido. Ou seja, eram execuções.” Segundo Minc, ele próprio apresentou um projeto de lei para pôr fim à medida. “Aprovamos e o governador sancionou a lei, encerrando uma política que aumentava a mortandade sem melhorar a qualidade técnica da polícia.”
Nilton Cerqueira foi um dos principais nomes da repressão durante a ditadura militar no Brasil. Em 1971, à frente do DOI-Codi de Salvador, comandou a Operação Pajussara, que resultou na morte de vários militantes, entre eles o ex-capitão Carlos Lamarca, líder do MR-8. Anos depois, teve papel central na repressão à Guerrilha do Araguaia (1972–1975), comandando a operação que exterminou parte da cúpula do PCdoB. Por sua atuação, foi condecorado com diversas medalhas militares, como a Medalha do Pacificador com Palma.
Sua trajetória ficou marcada pela repressão violenta aos opositores do regime e pela participação direta em operações de extermínio. Cerqueira morreu em 1º de janeiro de 2022, praticamente ignorado pela grande imprensa. A única manifestação pública relevante foi do então vice-presidente da República, general Braga Netto – posteriormente condenado e preso por envolvimento em tentativa de golpe de Estado –, que lamentou o falecimento em nota oficial: “É com profundo sentimento de tristeza e pesar que a Defesa e as Forças Armadas manifestam pêsames pelo falecimento do General de Brigada R1 Nilton de Albuquerque.”