CARLOS LOPES
“… desprezo ter que distinguir entre cultura e civilização” (Sigmund Freud)
Ter musicado – e cantado – um dos poemas de Gregório de Matos não é um dos menores méritos culturais de Caetano Veloso.
À cidade da Bahia
Triste Bahia! Ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.
A ti trocou-te a máquina mercante
Que em tua larga barra tem entrado
A mim foi-me trocando, e tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.
Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.
Oh se quisera Deus, que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!
“Brichote” significava, no português baiano do século XVII, “estrangeiro”.
A “cidade da Bahia”, claro, é Salvador, onde,
A cada canto um grande conselheiro
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha
E podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um bem frequente olheiro
Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha
Para o levar à praça e ao terreiro.
Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia,
Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.
Na época, a cidade era a capital da colônia. Como diz o padre Fernão Cardim, que lá chegou em março de 1583, como secretário da missão que os superiores dos jesuítas enviaram ao Brasil para supervisionar as atividades coloniais da Companhia de Jesus:
“A Bahia é cidade d’El Rei, e a corte do Brasil, nela residem os Sr. bispo, governador, ouvidor geral, com outros oficiais, e justiças de Sua Majestade; dista da equinocial treze graus; não está muito bem situada, mas por ser sobre o mar é de vista aprazível para a terra, e para o mar; a barra tem quase três léguas de boca, e uma enseada com algumas ilhas pelo meio, que terá em circuito quase 40 léguas, é terra farta de mantimentos, carnes de vaca, porco, galinhas, ovelhas, e outras criações; tem 36 engenhos, neles se faz o melhor açúcar de toda a costa, tem muitas madeiras de paus de cheiro, de várias cores, de grandes preços; terá a cidade com seu termo passante de três mil vizinhos portugueses, oito mil índios cristãos, e três ou quatro mil escravos da Guiné; tem seu cabido de cônegos, vigário geral provisor, etc. com dez ou doze freguesias por fora, não falando em muitas igrejas , e capelas que alguns senhores ricos têm em suas fazendas.
(…)
Tornando aos engenhos cada um deles é uma máquina e fábrica incrível, uns são de água rasteiros, outros de água copeiros, os quais movem mais e com menos gasto, outros não são d’água, mas movem com bois, e chamam-se trapiches; estes têm muito maior fábrica e gasto, ainda que moem menos, moem todo o tempo do ano, o que não tem os d’água , porque às vezes lhe falta.
“Em cada um deles, de ordinário há seis, oito e mais fogos de brancos, e ao menos sessenta escravos, que se requerem para o serviço ordinário; mas os mais deles têm cento, e duzentos escravos de Guiné e da terra.
(…)
“O serviço é insofrível, sempre os serventes andam correndo, e por isso morrem muitos escravos, que é o que os endivida, sobretudo este gasto; tem necessidade cada engenho de feitor, carpinteiro, ferreiro, mestre de açúcar com outros oficiais que servem de o purificar; os mestres de açúcares são os senhores de engenhos, porque em sua mão está o rendimento e ter o engenho fama, pelo que são tratados com muitos mimos, e os senhores lhes dão mesa, e cem mil réis, e outros mais, cada ano.
“Ainda que estes gastos são mui grandes, os rendimentos não são menores, antes mui avantajados, porque um engenho lavra no ano quatro ou cinco mil arrobas, que pelo menos valem em Pernambuco cinco mil cruzados, e postas no Reino por conta dos mesmos senhores dos engenhos (que não pagam direitos por dez anos do açúcar que mandam por sua conta, e estes dez acabados não pagam mais que meios direitos) valem três em dobro.
“Os encargos de consciência são muitos, os pecados que se cometem neles não tem conto; quase todos andam amancebados por causa das muitas ocasiões; bem cheio de pecados vai esse doce, porque tanto fazem; grande é a paciência de Deus, que tanto sofre” (cf. Fernão Cardim, Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica pela Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro, S. Vicente (São Paulo), etc. desde o ano de 1583 ao de 1590, indo por visitador o P. Cristóvão de Gouveia, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1847, pp. 10-56, grifos nossos; v., também, Fernão Cardim, Tratados da Terra e Gente do Brasil, ed. J. Leite & Cia., Rio, 1925, pp. 287-321).
O SEISCENTISTA
Durante bastante tempo, predominou na crítica, sobre Gregório de Matos, a posição de José Veríssimo:
“O que, portanto, havia no Brasil [no século XVII, o segundo século da então colônia de Portugal] era o seiscentismo, a escola gongórica ou espanhola, aqui amesquinhada pela imitação, e por ser, na poesia e na prosa, a balbuciante expressão de uma sociedade embrionária, sem feição nem caráter, inculta e grossa. Que o era, o mais perfunctório exame, a leitura ainda por alto dos versejadores e prosistas dessa época o mostrará irrecusavelmente. Não há descobrir-lhe diferença que os releve na inspiração, composição, forma ou estilo das obras. Sob o aspecto literário são todos genuinamente portugueses, por via de regra inferiores aos reinóis.
“A única exceção apresentada, a de Gregório de Matos, é impertinente. Da sua obra a só porção distinta, e estimável por outras qualidades que as propriamente literárias, é a satírica ou antes burlesca. A inspiração e feitio desta não destoa, porém, quando se tem presumido da musa gaiata portuguesa do tempo, ilustrada ou deslustrada por D. Tomás de Noronha, Cristóvão de Morais, Serrão de Castro, João Sucarelo, Diogo Camacho e quejandos, todos mais ou menos discípulos e imitadores, como o nosso patrício, do espanhol Quevedo, mas todos a ele inferiores.
“Como aos comuns motivos de satirizar de seus êmulos portugueses juntasse Gregório de Matos o estímulo do seu descontentamento de colonial gorado nas suas ambições e malogrado na sua vaidade, é talvez o seu estro satírico mais rico e, para nós, muito mais interessante que o daqueles.
“Não é, porém, nem mais original, nem mais subido. (…) A parte séria das composições de Gregório de Matos é genuinamente do pior seiscentismo, como pela língua, estilo e outras feições o é também a sua porção satírica” (cf. José Veríssimo, História da Literatura Brasileira, 1916, grifos nossos).
Depois de citar o trecho do padre Cardim sobre os pecados que abundavam na colônia do Brasil (“quase todos andam amancebados”, etc.), Veríssimo prossegue:
“E a obra satírica, como a mesma vida de Gregório de Matos, confirma essa descompostura de costumes. A essa população mistura incongruente de fidalguia e de ralé portuguesa, de negros e mulatos, e índios e mamelucos, de numerosa soldadesca e não menos copiosa clerezia, ocupavam-na também as devoções festivais nas sessenta e tantas igrejas da cidade e seus subúrbios” (idem).
Veríssimo, como observou Jamil Almansur Haddad, teve melhor julgamento contemporâneo – ou seja, melhor juízo sobre as obras de sua própria época – do que seu grande adversário na crítica e na historiografia literárias, Sílvio Romero. Daí seu prestígio por décadas – e até hoje.
O exemplo mais citado é a avaliação do crítico paraense (Veríssimo foi, também, autor de alguns dos primeiros trabalhos sobre a economia da Amazônia) a respeito de Machado de Assis, quando comparada à avaliação do colega – e oponente – sergipano.
Abordamos essa questão em outro trabalho (v. Machado de Assis e a luta pelo fim da escravatura) e voltaremos a ela proximamente, mas existe mais de uma coisa, nessa apreciação da obra de Gregório de Matos, que deveria nos colocar em guarda.
A primeira: o que é a “parte séria” da obra de Gregório de Matos?
Por exemplo:
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.
Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.
Seria este soneto um dos poemas da “parte séria” da obra de Gregório de Matos?
Ou, então, o seguinte, um dos “sonetos à Dª Ângela”:
Não vira em minha vida a formosura.
Ouvia falar nela cada dia,
E ouvida me incitava, e me movia
A querer ver tão bela arquitetura;
Ontem a vi por minha desventura
Na cara, no bom ar, na galhardia
De uma mulher, que em Anjo se mentia;
De um Sol que se trajava em criatura;
Matem-me, disse eu, vendo abrasar-me,
Se esta a cousa não é, que encarecer-me
Sabia o mundo, e tanto exagerar-me;
Olhos meus, disse então por defender-me.
Se a beleza heis de ver para matar-me,
Antes olhos cegueis, do que eu perder-me.
Este soneto seria parte da “parte séria” da obra de Gregório de Matos?
Não há como não sê-lo, sob pena de extirparmos Petrarca e Camões da literatura universal.
Mas, então, como dizer que “a parte séria das composições de Gregório de Matos é genuinamente do pior seiscentismo”?
É verdade que José Veríssimo também acha a mesma coisa da parte supostamente “não séria” da obra de Gregório de Matos (“como pela língua, estilo e outras feições o é também a sua porção satírica”).
Aliás, por que a parte satírica da obra de Gregório de Matos não integraria a “parte séria” de sua obra?
Por que aquele poema escrito quando o Rei de Portugal substituiu Antônio Luís Gonçalves por D. João d’Alencastre [João de Lencastre] como governador geral do Brasil, não faz parte da parte séria da obra de Gregório de Matos?
A D. João d’Alencastre
Quando Deus redimiu da tirania
Da mão de Faraó endurecido
O Povo Hebreu amado e esclarecido,
Páscoa ficou da redenção o dia.
Páscoa de flores, dia de alegria,
Àquele Povo foi, tão afligido,
O dia em que por Deus foi redimido;
Ergo sois vós, Senhor, Deus da Baía.
Pois mandado pela alta Majestade
Nos remiu de tão triste cativeiro,
Nos livrou de tão vil calamidade.
Quem pode ser senão um verdadeiro
Deus, que veio extirpar desta cidade
O Faraó do Povo Brasileiro.
Quando escreveu este poema, em 1694, o poeta já alcançara 71 anos. Morreria dois anos depois, em Recife, para onde voltara de Angola, onde fora exilado.
Porém, além de não pertencer à literatura brasileira, a obra de Gregório de Matos, para José Veríssimo, não existe ou é de uma mediocridade atroz.
O DOGMA CONTRA GÓNGORA
Como o crítico José Veríssimo chegou a essa conclusão?
Simplesmente, incluindo Gregório de Matos no gongorismo (“seiscentismo” é usado, acima, como sinônimo de gongorismo; algo, aliás, altamente impróprio, pois Gregório não tinha como deixar de ser “seiscentista”, já que viveu no século XVII; assim como Luiz de Camões não tinha como deixar de ser “quinhentista”, já que viveu no século XVI).
Mas, aqui, há uma premissa não demonstrada, isto é, um dogma: a de que o gongorismo é sinônimo de mau gosto em literatura.
Então, o que é gongorismo?
O velho Caldas Aulete – um dos dois dicionários essenciais da nossa língua, segundo Antenor Nascentes – definiu assim o gongorismo:
“exageração de ornatos que se introduziu na literatura espanhola como imitação do estilo de Góngora (poeta espanhol, 1561-1627), e que consiste em trocadilhos, metáforas e pensamentos demasiadamente afetados”
Em sua edição mais recente (o “Novíssimo Dicionário Caldas Aulete”), o verbete “gongorismo” foi atualizado:
“1. Estilo literário de grande luxo verbal e uso excessivo de recursos retóricos, que na literatura espanhola é preferencial ao termo ‘barroco’ por influência do poeta espanhol Luis de Góngora y Argote (1561-1627). Tem como característica principal o uso indiscriminado de trocadilhos, metáforas, antíteses, inversões e pensamentos demasiadamente afetados.
“2. Corrente literária seguidora desse estilo.
“[F.: Do antr. Luis de Góngora y Argote + -ismo.]”
Em suma, gongorismo (ou, na palavra usada por José Veríssimo, “seiscentismo”) seria um sinônimo de preciosismo, não qualquer preciosismo, mas aquele derivado do barroco espanhol, diferente de outro “seiscentismo”, aquele dos salões literários da França, na mesma época, que era chamado, realmente, de “preciosismo”.
A diferença entre uma definição e outra, no Aulete, é devido a que, em 1926, um dos maiores poetas da Espanha, Garcia Lorca, estabeleceu, definitivamente, que Luis de Góngora jamais fora um um gongórico…
O interessante (e importante), aqui, é que muito do que Lorca disse de Góngora também é válido para Gregório de Matos.
Federico Garcia Lorca foi assassinado pelos fascistas em agosto de 1936, um mês após a tentativa de golpe de Estado de Francisco Franco, que deu início à Guerra Civil Espanhola (“Se le vio, caminando entre fusiles,/ por una calle larga,/ salir al campo frío,/ aún con estrellas de la madrugada./ Mataron a Federico/ cuando la luz asomaba./ El pelotón de verdugos/ no osó mirarle la cara./ Todos cerraron los ojos;/ rezaron: ¡ni Dios te salva!/ Muerto cayó Federico/ — sangre en la frente y plomo en las entrañas —/ … Que fue en Granada el crimen/ sabed — pobre Granada! —, en su Granada”, escreveu o decano dos grandes poetas de Espanha, Antonio Machado).
Lorca tinha, esteticamente, uma grande afinidade com Luís de Góngora, que também era andaluz (Góngora, de Córdoba; Lorca, de Granada). Essa afinidade residia no problema da metáfora (em sua conferência sobre Góngora, Garcia Lorca cita Marcel Proust: “Somente a metáfora pode dar ao estilo uma espécie de eternidade”).
“Para que uma metáfora tenha vida”, diz Lorca em 1926, “ela precisa de duas condições essenciais: forma e raio de ação. Seu núcleo central e uma perspectiva redonda em torno dele. O núcleo se abre como uma flor, que nos surpreende por desconhecida, mas no raio de luz que o cerca, encontramos o nome da flor e conhecemos seu perfume.
“A metáfora é sempre governada pela vista (às vezes por uma vista sublimada), mas é a vista que a torna limitada e lhe dá sua realidade.
“Até os mais evanescentes poetas ingleses, como Keats, têm necessidade de desenhar e limitar suas metáforas e figuras [de linguagem], e Keats se salva, por sua admirável plasticidade, do perigoso mundo poético das visões. Depois, ele há de exclamar, naturalmente: Somente a poesia pode contar seus sonhos’. A vista não deixa que a sombra desvaneça o contorno da imagem que foi desenhada diante dela.
(…)
“A metáfora une dois mundos antagônicos por meio de um salto equestre da imaginação. O cineasta Jean Epstein diz que ‘é um teorema em que se salta sem intermediário desde a hipótese até a conclusão’. Exatamente.
“A originalidade de Dom Luis de Góngora, fora a puramente gramatical, está em seu método de caçar imagens, que ele estudou utilizando seus dramáticos antagônicos por meio de um salto equestre que dá o mito, estuda as belas concepções dos povos clássicos e, fugindo das montanhas e de suas visões lumínicas, se senta à beira do mar, onde corre o vento. No leito azul de águas marinhas, cortinas turquesas.
“Ali, ele amarra sua imaginação e coloca rédeas nela, como se fosse um escultor, para começar seu poema.
“E ele tem tanto desejo de dominá-lo e arredondá-lo, que ama inconscientemente as ilhas, porque pensa, e com muita razão, que um homem pode governar e possuir, melhor do que qualquer outra terra, a esfera definida e visível da redonda Terra, limitada pelas águas. Sua mecânica imaginativa é perfeita. Cada imagem, a vez, é um mito criado.”
IDADE MÉDIA E RENASCIMENTO
Mas esse problema estético tem uma história, diz Garcia Lorca, em sua conferência de 1926:
“Para situar Góngora, é necessário ressaltar os dois grupos de poetas que lutam na História da Lírica de Espanha. Os poetas chamados populares e impropriamente nacionais, e os poetas chamados propriamente cultos ou cortesãos.
(…)
“Uma guerra franca se declarou entre os dois grupos. Cristóbal de Castillejo y Gregorio Silvestre tomaram a bandeira castelhanista com o amor à tradição popular. Garcilaso, seguido pelo grupo mais numeroso, afirmou sua adesão ao que se chamou gosto italiano.
“Mas quero registrar que não acredito na eficácia dessa luta nem acredito na coisa do poeta italianizante e do poeta castelhano. Em todos eles há, em minha opinião, um profundo sentimento nacional. A inegável influência estrangeira não pesa sobre seus espíritos. Classificá-los depende de uma questão de foco histórico. Mas Garcilaso é tão nacional quanto Castillejo.
“Castillejo está imbuído da Idade Média. Ele é um poeta arcaizante do gosto recém terminado.
“Garcilaso, renascentista, desenterra nas margens do Tejo antigas mitologias equivocadas pelo tempo, com uma galanteria genuinamente nacional, descoberta então, e um verbo de eternidade espanhola.
“Lope [de Vega] recolhe os arcaísmos líricos dos finais da Idade Média e cria um teatro profundamente romântico, filho de seu tempo. Os grandes descobrimentos marítimos, relativamente recentes, (romanticismo puro), batem na sua cara. Seu teatro de amor, aventura e luto o afirma como um homem de tradição nacional.
“Mas tão nacional quanto ele é Góngora. Góngora foge, em seu trabalho característico e definitivo, da tradição cavalheiresca e medieval, para procurar, não superficialmente como Garcilaso, mas de maneira profunda, a gloriosa e antiga tradição latina. Busca sozinho no ar de Córdoba as vozes de Sêneca e Lucano. E modelando versos castelhanos à luz fria da lâmpada romana, ele traz à sua altura mais alta um tipo de arte exclusivamente espanhola: o barroco.
“Foi uma luta intensa de medievalistas e latinistas. Poetas que amam o pitoresco e o local, e poetas da corte. Poetas embuçados e poetas que procuram o nu. Mas o ar ordenado e sensual que o Renascimento italiano tenta impor, não toca seus corações. Porque eles são românticos, como Lope e Herrera, ou são católicos e barrocos em um sentido diferente. Como Góngora e Calderón. A geografia e o céu triunfam sobre a biblioteca.
(…)
“O Góngora cultista foi considerado na Espanha, e continua sendo assim por um extenso núcleo de opinião, como um monstro de vícios gramaticais, cuja poesia carece de todos os elementos fundamentais para ser bela. As Soledades foram consideradas pelos gramáticos e retóricos mais eminentes como um flagelo a ser erradicado, e vozes escuras e torpes foram levantadas, vozes sem luz ou espírito para anatematizar o que chamam de escuro e vazio.
“Eles conseguiram encurralar Góngora e jogar terra nos olhos novos que o entenderam, durante dois longos séculos, nos quais nos repetem… ‘não aproximar-se, porque é incompreensível…’
“E Góngora tem estado só, como um leproso cheio de chagas de fria luz de prata, com o ramo novíssimo nas mãos, esperando que as novas gerações recolham sua herança objetiva e seu sentido da metáfora” (v. Federico Garcia Lorca, La imagen poética de Luis de Góngora, Obras Completas VI, Akal, Madrid, 2008).
O SÉCULO XVII NO BRASIL
Evidentemente, comparar um poeta que nasceu e viveu em uma colônia portuguesa com um poeta que viveu no centro do Império colonial espanhol, só é possível dentro de certos limites.
Esses limites são, exatamente, os da época, e, sobretudo, aqueles do gosto da época.
Mas é interessante, por isso mesmo, que a reação contra Góngora se pareça com a reação contra Gregório de Matos.
Porém, evidentemente, do ponto de vista deste trabalho, são mais importantes as peculiaridades de Gregório de Matos do que sua identidade com os demais poetas da sua época.
Aqui, temos um guia seguro: Sílvio Romero, o adversário de José Veríssimo. Nesta questão, Romero mostra porque é um autor indispensável, mesmo apesar de seus erros (evidentemente, o que o torna indispensável são os seus acertos, e não os seus erros).
Escreveu ele, em 1905, numa obra publicada em Recife, cidade onde, na volta do degredo em Angola, morreu Gregório de Matos, em 1696:
“… a poesia, como tudo que é humano, é uma filha da terra, por mais que a façamos fugir para o céu de nossos devaneios, para o azulado infinito de nossas aspirações; e, como filha da terra, tem de lutar e sofrer a nosso lado, tem que gemer as nossas dores e carpir as nossas mágoas.
“E posto nestas páginas tenhamos mais que ver a poesia do que os poetas, a arte como alguma cousa de funcional de que os poetas são apenas órgãos ocasionais, não poderemos passar sem reparo o referver de paixões, ódios e cóleras de que GREGORIO DE MATOS foi, na época que vimos passando, a expressão mais nítida.
“Para bem termos a ideia do que era a Bahia na segunda metade do século XVII, devemos lembrar já fazer mais de século que se havia erigido ali o governo geral do Brasil; ter Portugal já perdido de todo as esperanças na Índia, e feito convergir seu esforço e interesse exclusivamente para suas conquistas da América; haverem-se já grandemente desenvolvido o comércio, a lavoura e a riqueza. A sociedade, estimulada por governadores gananciosos, por padres e magistrados cobertos de pretensões, sedentos de riquezas, ostentava já muitas das máculas que então carcomiam a velha metrópole.
“O século XVII, apogeu do régio absolutismo, foi no mundo ocidental um período notavelmente viciado. A capital brasileira, valhacoito de aventureiros de toda a casta, ostentava tantas mazelas quantas Lisboa.
“Quase sempre, porém, os períodos de violentas paixões são também épocas de notável lavor espiritual.
“A Bahia achava-se neste estado. E basta dizer que raramente algum período de nossa história contou num centro qualquer homens como Eusébio de Matos, seu irmão Gregório, Antônio Vieira, seu irmão Bernardo, Rocha Pitta, Botelho de Oliveira e trinta outros de quase igual merecimento.
“Não é só: deve-se até afirmar que nunca mais se deu igual fenômeno, porquanto na vida espiritual luso-americana não existem dois Antonios Vieiras e nem dois Gregorios de Matos. Esta singular e terrível figura, já por nós duas vezes estudada com esmero, não pode aqui ter mais que uma rapida, porém significativa menção. Foi o gênio satírico mais poderoso de nossa língua até hoje; foi o retrato de sua época, por ele profligada desapiedadamente; é, acima de tudo, um documento por onde se pode reconstruir o quadro dos costumes do tempo.
“Grandes e pequenos, bispos, governadores, conegos, magistrados, nobres e plebeus, todos sofreram as pancadas de seu látego implacável.
“E tinha graça o iracundo censor. (l) Em meia dúzia de versos pintava uma situação cômica, digna de sofrer o fouet da sátira.
“Eis como a musa faceta baiana já em pleno século XVII debicava com as párvoas desaventuras de um pernóstico cantador de modinhas:
Uma grave entoação
Te cantaram, Braz Luiz,
Segundo se conta e diz
Foi solfa de fá bordão.
Pelo compasso da mão
Em que a valia se apura,
Parecia solfa escura;
Pois a mão nunca parava !…
Nem no ar, nem no chão dava
Sempre em cima da figura!…
“A poesia lírica neste divergente mostra os evidentes sinais que a prendem à de seus contemporâneos” (cf. Silvio Romero, Evolução do Lyrismo Brasileiro, J.B . Edelbrock Editor, Recife, 1905, pp. 15-18).
O DESPONTAR DA CULTURA BRASILEIRA
Mas é na sua História da Literatura Brasileira, publicada em 1888, que Sílvio Romero faz sua mais importante – e, quanto aos fundamentos, definitiva – análise da obra de Gregório de Matos.
“No primeiro século da conquista e da colonização notam-se já fortes protestos contra a escravidão. Tais protestos, que se referiam exclusivamente à raça indígena, repetiram-se no século seguinte ainda tendo por alvo o selvagem tupi.
“Mas já então a raça negra lavrava o seu primeiro e eloquentíssimo brado de libertação. Este protesto foi duplo: de um lado ensinava ao branco a resistir ao holandês invasor, e de outro lado, nessa famosa república dos Palmares, mostrava ao branco que seria livre quando definitivamente quisesse.
“Estes últimos fatos passaram-se no século XVII na antiga capitania de Pernambuco. Então fez-se ouvir o decano dos poetas e abolicionistas brasileiros — Gregório de Matos, o grande satírico.
“Na luta contra os estrangeiros acrisola-se o sentimento nacional. Em todos estes fatos as três raças aparecem quase no mesmo pé de igualdade. O entrelaçamento é perfeito, o brasileiro é já uma realidade. E’ o tempo de Vital de Negreiros, de Calabar, de Amador Bueno, dos Palmares e de Gregório de Matos…
(…)
“O interesse dramático desse tempo está, porém, na luta de duas forças antagônicas, que sem combaterem-se diretamente uma a outra, trabalhando em esferas opostas, podem ser consideradas como diametralmente inimigas, ainda que se julgassem aliadas.
“Quero falar do padre Antônio Vieira e do poeta Gregório de Matos. Aquele é um português que viveu no Brasil, o outro um brasileiro que residiu em Portugal; um simboliza o gênio português com toda a sua arrogância na ação e vacuidade nas ideias, com todos os seus pesadelos jurísticos e teológicos; o outro é a mais perfeita encarnação do espírito brasileiro, com sua facécia fácil e pronta, seu desprendimento de fórmulas, seu desapego aos grandes, seu riso irônico, sua superficialidade maleável, seu gênio não capaz de produzir novas doutrinas, mas apto para desconfiar das arrogâncias e do pedantismo europeu.
“Vieira é o jesuíta, o produto de uma sociedade e de uma religião gastas. Gregório é o discípulo de padres que começa por debicá-los, escarnecê-los e duvidar de sua santidade e sabedoria. Vieira é uma espécie de tribuno de roupeta [batina], que se ilude com as próprias frases, Matos é um garoto, um precursor dos boêmios, amante de mulatas, desbragado, inconveniente, que tem a coragem de atacar bispos e governadores…
“Todo o movimento literário do Brasil no século XVII deve girar em torno do nome de GREGÓRIO DE MATOS GUERRA.
“O do século anterior deve circular em torno de José de Anchieta. Resta saber qual destes dois ilustres mortos, foi o criador da literatura brasileira.
“Para responder a esta questão, cumpre, antes de tudo, indicar o que se deva entender por literatura nacional. Se por ela se professa a simples descrição da natureza do país, então o seu fundador foi Pero Vaz de Caminha, o piloto, o primeiro, que escreveu sobre o Brasil. Se vem a ser a descrição dos selvagens e de seus costumes, então foram muitos, Thevet, Lery, Gandavo, Gabriel Soares, Cardim e alguns mais. Se são os cantos rudes dos índios, neste caso foram eles, os selvagens, os fundadores dela. Se é a descrição dos costumes dos negros, os seus cantos, suas lendas, nesta hipótese, os seus fundadores foram os primeiros pretos que desembarcaram d’África. Se é a persistência do elemento português, nestas circunstâncias, deverão ser contados, como fundadores da literatura brasileira, todos os colonos emperrados, todos os governadores e todos os reis da metrópole, que mais se esforçaram por comprimir a colônia, sufocando-lhe os impulsos autonômicos e originais, e nesta carreira, deverão ser considerados os mais notáveis fundadores da literatura pátria, o carrasco que precipitou da forca a Tiradentes e o soldado que atirou certeiro ao coração do Padre Roma…
“Mas tudo isto é falso, falsíssimo.
“A literatura brasileira, como todas as literaturas do mundo, deve ser a expressão positiva do estado emocional, dos sentimentos de um povo. Ora, nosso povo não é o índio, não é o negro, não é o português; é antes a soma de todas estas parcelas atiradas ao cadinho do Novo Mundo.
“São as gerações crioulas, que, deixadas de parte as nostalgias dos progenitores, esqueceram-se delas para amar este país e trabalhar na formação de uma pátria nova.
“Esta pátria nova não é a oca do índio perdida no deserto, a palhoça do negro esquecida nos areias da África, ou o casal do português que ficou pelas encostas do Alentejo…
“A nova pátria é o Brasil, quero dizer, a terra e a sociedade de um povo livre e progressivo. Com esta luz, bem se compreende que Anchieta não podia ser o fundador de nossa literatura.
“Ele não tinha a loucura da terra, com que se fundam as obras neste mundo; tinha a mania do céu; ele não viveu bastante, ou não viveu em tempo, em que pudesse ver que os seus queridos índios não eram tudo; em que pudesse ver que os seus portugueses não eram também tudo; em que pudesse apreciar o advento do elemento novo, do genuíno brasileiro – o mestiço, o filho do país.
“Quando falo no mestiço não quero me referir somente ao mestiço fisiológico – o mulato; refiro-me a todos os filhos da colônia, todos os crioulos, que o eram num sentido lato; porquanto, ainda que nascessem de raças puras, o eram no sentido moral.
“Eu me explico.
“Tomemos uma fazenda, um engenho do primeiro século, e apreciemos as circunstâncias desta espécie de mestiçagem moral.
“Estamos no recôncavo da Bahia, no ano de 1570, num engenho de açúcar. O proprietário é um português rico; tem seus prejuízos [preconceitos] de raça, quer ter uma descendência limpa, e por isso contraiu matrimônio com a filha de um mercante abastado da praça, português como ele.
“Vai-lhe saindo a prole alourada, mostrando ao través da cútis macia os fios distintos do sangue azul. Mas o nosso homem é rico, e sê-lo no Brasil, máxime naqueles bons tempos, era possuir algumas dúzias de escravos, e ele os tinha, não só da terra, como de Guiné. Como era natural, estes últimos também procriavam!
“Ora, o meio tem suas exigências atrozes; o resultado vinha a ser que os filhos do senhor de engenho eram de certo limpos de tez; mas, gostando muito de ir às senzalas a conversar e brincar com os moleques, as pretas e as caboclas velhas, saíam no fim de contas uns portuguesitos, é verdade, mas uns tais, que distavam dos pais, como a água do vinho, pela intuição e pela face moral. Sabiam as lendas do Caipora, do Saci Pererê, da Iara, do Zumbi, do Manjaléo, e uma multidão de outras cousas, que sorrateiramente e sem o quererem, as pretas e índias lhes iam inoculando nos tenros espíritos.
“Por outro lado, os filhos dos escravos, os filhos dos pretos e os dos índios, perdiam também o uso de sua língua nativa e falavam a língua da casa grande, a língua do senhor; eram cristianizados e aprendiam umas tantas cousas, que só os brancos sabiam.
“Eis aí o que eu chamo um caso de mestiçagem moral.
“Não falemos já na mestiçagem física. Imaginemos centenas e milhares de mancebos portugueses nos dois primeiros séculos da conquista, rapazes que não tinham ainda constituído família, fortes e sadios, atirados no harém brasileiro de belas pretas e caboclas fáceis, e compreender-se-á que a fusão das raças era inevitável.
“Se a litteratura brasileira fosse uma tal ou qual descripção do selvagem, Anchieta a teria fundado; ela, porém, é mais do que isto, e só um filho do Brasil, e em século mais avançado, a poderia fundar.
“Anchieta deve, por certo, ser contemplado em nossa historia litteraria como um precursor, como o disse desde os preliminares deste livro; não como um fundador, um crêador. Uma litteratura, além de tudo, nunca tem um fundador; tem órgãos de manifestação, mais ou menos aperfeiçoados, e não passa disto. Uma escola é que pode ter um chefe, um crêador. Uma litteratura tem uma base, tem elementos e tem órgãos.
A base da nossa é o sentimento do brasileiro, como nação à parte, como producto ethnico determinado; os elementos são as tradições das trez raças sem predomínio de uma sobre as outras; os órgãos são os nossos mais notáveis talentos, todos aquelles que sentiram como brazileiros.
“Anchieta, repito, é um simples precursor. Se a alguém no Brasil se pudesse conferir o titulo de fundador da nossa literatura, esse deveria ser Gregório de Matos Guerra. Foi filho do país; teve mais talento poético do que Anchieta; foi mais do povo; foi mais desabusado; mais mundano, produziu mais e num sentido mais nacional.
“O que me prende no estudo desta individualidade, é a ausência de artifício literário; o poeta não vai por um caminho e o homem por outro; a vida do indivíduo ajusta-se à obra do poeta.
Estava, além disto, em perfeita harmonia com o seu meio”.
A CRISE COLONIAL
Romero acrescenta algumas histórias, com o objetivo de mostrar o caráter já brasileiro de Gregório de Matos.
Porém, paremos por aqui, com uma observação: o sistema colonial, na época de Gregório de Matos, já está em crise.
Foi salvo, em 1693, por mais um século, com a descoberta do ouro em Minas Gerais – mas isso, à custa de piorar a situação da Bahia, que perdeu, inclusive, a sua condição de capital do Brasil, e a de Pernambuco.
Em 1624, os holandeses ocuparam Salvador. Foram expulsos da cidade no ano seguinte. Voltaram-se, então, contra Pernambuco.
Esta era a capitania mais opulenta do país. Na descrição do padre Cardim, que a conheceu antes da invasão dos holandeses:
“Tem passante de dois mil vizinhos entre vila e termo, com muita escravaria de Guiné, que serão perto de dois mil escravos: os índios da terra são já poucos.
“A terra é toda muito chã; o serviço das fazendas é por terra e em carros; a fertilidade dos canaviais não se pode contar; tem sessenta e seis engenhos, que cada um é uma boa povoação; lavram-se alguns anos duzentos mil arrobas de açúcar, e os engenhos não podem esgotar a cana, porque em um ano se faz de vez para moer, e por essa causa a podem vencer, pelo que mói cana de três, quatro anos; e com virem cada ano quarenta navios ou mais a Pernambuco, não podem levar todo o açúcar: é terra de muitas criações de vacas, porcos, galinhas, etc.
“A gente da terra é honrada: há homens muito grossos de quarenta, cinquenta, e oitenta mil cruzados de seu: alguns devem muito pelas grandes perdas que têm com escravaria de Guiné, que lhes morrem muito, e pelas demasias e gastos grandes que têm em seu tratamento.
“Vestem-se, e as mulheres e filhos, de toda a sorte de veludos, damascos e outras sedas, e nisso têm grandes excessos. As mulheres são muito senhoras, e não muito devotas, nem frequentam as missas, pregações, confissões, etc.: os homens são tão briosos que compram ginetes de duzentos e trezentos cruzados, e alguns têm três, quatro cavalos de preço. São mui dados a festas. Casando uma moça honrada com um vianês, que são os principais da terra, os parentes e amigos se vestiram uns de veludo carmesim, outros de verde, e outros de damasco e outras sedas de várias cores, e os guidões e selas dos cavalos eram das mesmas sedas de que iam vestidos.
“Aquele dia correram touros, jogaram canas, pato, argolinha, e vieram dar vista ao colégio para os ver o padre visitador; e por esta festa se pode julgar o que farão nas mais, que são comuns e ordinárias. São sobretudo dados a banquetes, em que de ordinário andam comendo um dia dez ou doze senhores de engenhos juntos, e revezando-se dessa maneira gastam quanto têm, e de ordinário bebem cada ano cinquenta mil cruzados de vinhos de Portugal; e alguns anos beberam oitenta mil cruzados dados em rol.
“Enfim em Pernambuco se acha mais vaidade que em Lisboa. Os vianeses são senhores de Pernambuco, e quando se faz algum ruído contra algum vianês dizem em lugar de ai que d’El-Rei, ai que de Viana, etc.” cf. Fernão Cardim, Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica pela Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro, S. Vicente (São Paulo), etc. desde o ano de 1583 ao de 1590, indo por visitador o P. Cristóvão de Gouveia, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1847, pp. 73-75).
Portugal, desde 1580, perdera a independência para a Espanha – esse foi o significado prático da unificação das duas coroas (a “União Ibérica”), com o rei da Espanha proclamado rei de Portugal, após o desaparecimento de Sebastião I, de Portugal, na batalha de Alcácer-Quibir, no norte da África.
Em Alcácer-Quibir, Portugal perdeu não apenas um rei: perdeu todo o seu poderio militar e toda a elite da nobreza. Um rei que se achava sempre certo, sem que tivesse travado uma única batalha na vida, reuniu 750 navios, um exército de 24 mil homens, e lançou-os no fogo, em território estrangeiro desconhecido para ele mesmo (cf. Luís Costa e Sousa, A Batalha de Alcácer Quibir 1578. Visão ou Delírio de um Rei?, Pedro de Avilez Editor, Lisboa, 2009; e Maria Augusta Lima Cruz, D. Sebastião, Círculo de Leitores e Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, Rio de Mouro, 2009; v., também, Oliveira Martins, História de Portugal, Tomo II, 4ª ed., Bertrand, Lisboa, 1887, pp. 46-69).
O resultado é que o próprio país desapareceu como nação independente – um país de um milhão de habitantes, mas com um império colonial que ia do Brasil até à África, Índia, Indonésia, Sudeste da Ásia, China e Japão.
Em 1640, sessenta anos depois, Portugal recuperou a independência. Em 1645, depois que ficou claro que a nova dinastia de Lisboa não iria nem mesmo ajudar a população da colônia do Brasil a expulsar os holandeses, os brasileiros empreenderam, com seus próprios recursos, a guerra contra os invasores. Derrotados, os holandeses se renderam em janeiro de 1654 e se retiraram.
O problema é que, ao mesmo tempo em que derrotávamos os holandeses – contra a nova Coroa portuguesa, que já se amancebara, politicamente, com os batavos -, os senhores de engenho de Pernambuco e da Bahia perderam o monopólio da tecnologia de produção (e, portanto, o monopólio da própria produção) do açúcar, mercadoria que criou o mercado mundial.
Os holandeses absorveram essa tecnologia – bastante complexa na época – durante a ocupação no Nordeste. Derrotados, saíram do Brasil e levaram-na para as Antilhas.
Pode-se dizer que era uma questão de tempo. Assim, os ganhos espetaculares a que se referiu o padre Cardim no final do século XVI (v. acima), chegaram ao fim, juntamente com a ocupação holandesa, no século XVII, e o crescimento do que se chamou nativismo.
A obra de Gregório de Matos é, precisamente, a expressão mais radical, em literatura, do nativismo do século XVII.
O LÍRICO
Sílvio Romero faz uma avaliação da obra de Gregório:
“A faculte maitresse em Gregório de Matos é a da sátira, mas também é ele um bom lirista. O momento predominante em sua evolução é o da estada na Bahia depois da volta de Lisboa.
“O lirismo do poeta baiano é um lirismo simples, espontâneo no fundo, um pouco alterado pelo cultismo amaneirado da época.
“O elemento subjetivista é pouco acentuado.
“A critica mesquinha de nossos retóricos tem sempre considerado o nosso Guerra como um insolente, um filho do despeito, vomitando impropérios sobre todos.
“Este juízo é errôneo.
“O poeta era um homem impressionável pelas belezas do mundo e da sociedade; tinha em si o gérmen das efusões amenas, doces, virginais.
“Ele teve notas verdadeiramente líricas: o Retrato de D. Brites, os Trabalhos da vida humana, a Morte de uma senhora, Declarações de amor, e outras, são belos exemplos do gênero.”
Vejamos os exemplos citados por Romero.
Do “Retrato de D. Brites” – uma dama mulata:
Ver o aljôfar nevado que desata
A aurora sobre a gala do rosal,
Ver em rasgos de nácar tecer prata,
E pérolas em conchas de coral,
Ver diamantes em golpes de escarlata.
Em pingos de rubim puro cristal,
E ver os vossos dentes de marfim
Por entre os belos lábios de carmim.
Dos “Trabalhos da vida humana”:
Enquanto presa vos vistes
No botão onde morastes.
Bem que a vida não lograstes,
De esperança vos vestistes:
Mas depois que, flor, abristes,
Tão depressa fenecestes,
Que quase a presumir destes,
(se se pode presumir),
Que para a morte sentir,
Somente viver quisestes!
Fazendo da pompa alarde
Abre a rosa mais louçã;
E o que é gala na manhã,
Em luto se torna à tarde;
Pois se a dita mais cobarde,
Se a mais frágil duração
Renascestes, porque não
Terei de crer fundamento,
Que foi vosso luzimento
Da vossa sombra ocasião.
Dos versos à “Morte de uma senhora”:
Morreste, Ninfa bela,
Na florescente idade;
Nasceste para flor,
Como flor acabaste!
Viu-te a alva no berço,
A véspera no jaspe,
Mimo foste da Aurora,
E lástima da tarde.
O nácar, e os alvores
Da tua mocidade
Foram, se não mantilhas,
mortalha a teus donaires.
Além desses:
Na confusão do mais horrendo dia,
Painel da noite em tempestade brava,
O fogo com o ar se embaraçava
Da terra e água o ser se confundia.
Bramava o mar, o vento embravecia
Em noite o dia enfim se equivocava,
E com estrondo horrível, que assombrava,
A terra se abalava e estremecia.
Lá desde o alto aos côncavos rochedos,
Cá desde o centro aos altos obeliscos
Houve temor nas nuvens, e penedos.
Pois dava o Céu ameaçando riscos
Com assombros, com pasmos, e com medos
Relâmpagos, trovões, raios, coriscos
Comenta Sílvio Romero:
“Todos estes tópicos são amostras de belo lirismo; nem há outro poeta que se equipare, por esta face no século XVII, dentre todos os da língua portuguesa, a Gregório de Matos.
“Mas é pelo lado humorístico e satírico que o baiano foi um fator nacional.
“Aí dá ele entrada a certos termos puramente brasileiros e emprega um torneio de linguagem inteiramente popular.
“Apreciam-se, lendo as suas sátiras escritas no Brasil, quatro fatos característicos: – diferenciação já crescente da maneira brasileira de manejar a língua; a tendência de ridicularizarem-se entre si, que pronunciadamente animava as três raças formadoras de nossa população; nesta a consciência já clara de ser ela alguma cousa de novo, que não deveria ser sempre a anima vilis das explorações portuguesas, e, finalmente, o descontentamento que lavrava já contra os governos pesados e ásperos da colônia”.
VERSOS PARA UMA ANTOLOGIA
Acrescentamos, por fim, uma brevíssima antologia, que permitirá, talvez, uma confirmação do que foi dito – ou exposto – até aqui. Na melhor das nossas expectativas, talvez desperte, em leitores que ainda não conhecem a poesia de Gregório de Matos, a curiosidade e o estímulo para ler o nosso primeiro grande poeta.
Tristão de Alencar Araripe Júnior, outro grande crítico brasileiro do século XIX e começo do século XX, em seu livro de 1894, escreve algo que é perfeitamente verdadeiro:
“… não há entre as poesias do autor do Marinicolas um só verso que de longe ao menos traduza o bucolismo da vida brasileira daqueles miraculosos tempos.
(…)
“O ambiente brasileiro, pois, devia colhê-lo por meios indiretos, e o veículo dessa captação foi a mestiça, a mulata da Bahia. Ele, porém, não se entregou a essa influência obnubilante de todas as ideias e gostos antigos e manias eróticas contraídas nas margens do Mondego, sem que primeiro atravessasse uma fase de guerra crua e desapiedada contra tudo quanto na colônia lhe lembrava a vida de Lisboa” (T.A. Araripe Júnior, Gregório de Matos, ed. Fundação Darcy Ribeiro/Biblioteca Nacional/UNB, Rio, 2013, pp. 38-39).
O cearense Araripe Júnior cita este trecho de “À gente da Bahia”, despedida de Gregório, preso e a caminho do degredo em Angola:
As mulatas me desprezaram,
A quem com veneração
Darei meu beliscão
Pelo amoroso.
Geralmente é mui custoso
O conchego das mulatas,
Que se foram mais baratas,
Não há mais Flandres.
Não há no Brasil mulata
Que valha um recado só,
Mas Joana Pacaró
O Brasil todo.
Se em gostos não me acomodo,
Ao mais não haja disputa,
Cada um gabe a sua truta,
E haja sossego.
Porém, sobretudo há este poema:
Duas moças pardas
Altercaram-se em questão
Thereza com Maraquita
Sobre qual é mais bonita,
Se Thereza, se Assumpção;
Eu tomo por conclusão
Nesta questão altercada,
Que Assumpção é mais rasgada.
E Thereza mais senhora,
E o galante que as namora
Verá a conclusão provada.
Se Thereza é mui bonita,
Mulata guapa e bizarra,
Com mui bom ar se desgarra
A mestiça Maraquita:
Ninguém a uma e outra quita
Serem lindíssimas cambas,
E o Cupido, que dentre ambas
Quis escolher a sua,
Escolha vendo-as na rua,
Que eu para mim venero ambas.
As damas desta cidade,
Ainda as que são mais belas,
Não são nada diante delas,
São bazófias da beldade:
São patarata em verdade,
Se há verdade em pataratas,
Porque brancas e mulatas,
Mestiças, cabras e angolas
São o azeviche em parolas,
E as duas são duas pratas.
Jamais amanhece o dia,
Porque sai a aurora bela,
Se não porque na janela
Se põem Thereza e Maria:
Uma manhã em que ardia
O sol em luzes divinas,
Pelas horas matutinas
Vi eu Thereza assistir,
Ensinando-a a luzir
Como mestra de meninas.
Na mesma categoria, merecem ser incluídos os “Sonetos à Dª Brites”, dama “parda” que rejeitou Gregório, mas…
Aos amores com Dª Brites
Ontem, a amar-vos me dispus; e logo
Senti dentro de mim tão grande chama,
Que vendo arder-me na amorosa flama,
Tocou Amor na vossa casa o fogo.
Dormindo vós com todo o desafogo,
Ao tom do repicar saltais da cama:
E vendo arder uma alma, que vos ama,
Movida da piedade, e não do rogo,
Fizestes aplicar ao fogo a neve
De uma mão branca; que livrar-se entende
Da chama, de quem foi desprezo breve.
Mas ai! que se na neve Amor se acende,
Como de si esquecida a mão se atreve
A apagar o que Amor na neve incende?
O mais vem em seguida:
Tornando o autor a renovar os amores com Dª Brites depois de ela se casar
Não me culpes, Filena, não, de ingrato,
Se notado hás em mim tanta esquivança;
Por que a força do Fado em tal mudança,
Ou inclina o desdém, ou move o trato.
Mas que importa, se quando esquecer trato
Teus amores, por lei que não alcança
De Amor a atenciosíssima lembrança,
Vive n’alma estampado o teu retrato?
Os afetos combatem na vontade
Amoroso desdém, zelosa pena,
Produzindo tão grande variedade.
Teu amor, que me obriga, te condena:
Que como não tens livre a liberdade,
Não me podes prender o amor, Filena.
O soneto seguinte já não é sobre uma “dama parda”; mas poderia ser.
Terceira impaciência dos desfavores de uma dama
Dama cruel, quem quer que vós sejais,
Que não quero, nem posso descobrir-vos,
Dai-me agora licença de arguir-vos,
Pois para amar-vos tanto me negais.
Por que razão de ingrata vos prezais,
Não pagando-me o zelo de servir-vos?
Sem dúvida deveis de persuadir-vos
Que a ingratidão a formosenta mais.
Não há cousa mais feia na verdade;
Se a ingratidão aos nobres envilece,
Que beleza fará uma fealdade?
Depois que sois ingrata, me parece
Torpeza hoje, o que ontem foi beldade
E flor a ingratidão, que em flor fenece.
O BRASILEIRO
Quem fala neste poema é a própria Bahia aos aproveitadores que vinham de Portugal, gente muito ingrata, que Gregório (ou o povo) chamava “Unhates”:
Ingratos, mal procedidos!
Se eu sou essa que dizeis,
Por que não largais meu sítio?
Por que habitais em tal terra,
Podendo em melhor abrigo?
Eu pego em vós, eu vos rogo?
Respondei: dizei malditos?
Mandei acaso chamar-vos?
Ou por carta, ou por aviso?
Não viestes para aqui
Por vosso livre alvedrio?
Meus males de quem procedem?
Não é de vós? claro é isso:
Que eu não faço mal a nada
Por ser terra e mato arisco.
Se me lançais má semente.
Como quereis fruto limpo?
Ou, sobre a pureza racial de certa elite:
Aos principais da Bahia chamados os caramurus
Há coisa como ver um Paiaiá
Mui prezado de ser Caramuru,
Descendente do sangue de tatu,
Cujo torpe idioma é Cobepá?
A linha feminina é Carimá’
Muqueca, pititinga, caruru,
Mingau de puba, vinho de caju
Pisado num pilão de Pirajá.
A masculina é um Aricobé,
Cuja filha Cobé, c’um branco Paí
Dormiu no promontório de Passé.
O branco é um Marau que veio aqui:
Ela é uma índia de Maré;
Cobepá, Aricobé, Cobé, Paí.
Em alguns autores, a poesia religiosa de Gregório de Matos é considerada uma fase de arrependimento em relação aos pecados de juventude. O poema citado como demonstratuivo da tese, em geral é:
Meu Deus, que estais pendente em um madeiro,
Em cuja Lei protesto de viver,
Em cuja Santa Lei hei-de morrer,
Animoso, constante, firme e inteiro;
Neste lance, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer,
É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um Pai, manso cordeiro.
Mui grande é vosso amor e meu delito;
Porém pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor, que é infinito.
Essa razão me obriga a confiar
Que por mais que pequei neste conflito,
Espero em vosso amor de me salvar.
A interpretação do arrependimento é falha – Gregório considera que o amor de Deus por seus filhos, sua capacidade de perdoar é infinita, portanto, muito maior do que seria o seu arrependimento. Outro exemplo:
Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido;
Porque, quanto mais tenho delinquido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida e já cobrada
Gloria tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra historia,
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
Entretanto, a fé de Gregório é verdadeira:
Buscando a Cristo
A vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos,
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.
A vós, divinos olhos, eclipsados
De tanto sangue e lágrimas abertos,
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados.
A vós, pregados pés, por não deixar-me,
A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, p’ra chamar-me.
A vós, lado patente, quero unir-me,
A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.
Para encerrar a sessão religiosa, este soneto apocalíptico:
Ao Dia do Juízo
O alegre do dia entristecido,
O silêncio da noite perturbado,
O resplandor do sol todo eclipsado,
E o luzente da lua desmentido.
Rompa todo o criado em um gemido.
Que é de ti, mundo? onde tens parado?
Se tudo neste instante está acabado,
Tanto importa o não ser, como haver sido.
Soa a trombeta da maior altura,
A que a vivos e mortos traz o aviso
Da desventura de uns, de outros ventura.
Acabe o mundo, porque é já preciso,
Erga-se o morto, deixe a sepultura,
Porque é chegado o dia do juízo.
TRABALHO POÉTICO
É bastante comum o tratamento de Gregório de Matos como um sujeito com facilidade para o verso (“um repentista”, diz um crítico) e apenas isso.
O fato de não ter publicado em vida – e as dificuldades para estabelecer textos definitivos, a partir de manuscritos – deram algum alento a essa tese.
No entanto, tudo parece indicar o oposto. Ainda que as pesquisas tenham de avançar para que se chegue a conclusões mais sólidas, o poema que dedicou à esposa, Maria dos Povos, demonstram um trabalho hercúleo – se assim podemos dizer – sobre a matéria poética.
Finalizamos, então, com duas versões desse mesmo soneto:
Discreta, e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora,
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos e boca o Sol, e o dia:
Enquanto com gentil descortesia
O ar, que fresco Adónis te namora,
Te espalha a rica trança voadora,
Quando vem passear-te pela fria:
Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trata a toda ligeireza,
E imprime em toda a flor sua pisada.
Oh não aguardes, que a madura idade,
Te converta essa flor, essa beleza,
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.
E a terceira versão deste mesmo poema:
Discreta, e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo claramente
Na vossa ardente vista o sol ardente,
E na rosada face a aurora fria:
Enquanto pois produz, enquanto cria
Essa esfera gentil, mina excelente
No cabelo o metal mais reluzente,
E na boca a mais fina pedraria:
Gozai, gozai da flor da formosura,
Antes que o frio da madura idade
Tronco deixe despido, o que é verdura.
Que passado o zenith da mocidade,
Sem a noite encontrar da sepultura,
É cada dia ocaso da beldade.
NOTA: Os textos dos poemas de Gregório de Matos, coletados para publicação impressa muito depois da sua morte, apresentam diferenças muito difíceis de ignorar, apesar de aparentemente pouco substanciais. Mas é uma exigência da poesia a exatidão das palavras.
Por exemplo, o verso “As mulatas me desprezaram“, de “À gente da Bahia”, aparece na edição organizada em 1882 por Vale Cabral como “As mulatas me esqueceram“.
Como a edição de Vale Cabral é básica – inclusive com a publicação, pela primeira vez, da “Vida de Gregório de Matos”, escrita no século XVIII por Manuel Pereira Rebelo – reproduzimos algumas considerações sobre as dificuldades que encontrou:
“Até que afinal vai correr mundo boa cópia das numerosas composições de Gregório de Matos, depois de terem decorrido quase dois séculos da morte deste nosso famoso satírico.
“Poucas produções do notável gênio brasileiro existiam até agora impressas e ao cônego Januário da Cunha Barbosa cabe a glória de ter sido o primeiro que nos deu em 1831, no seu Parnaso Brasileiro, meia dúzia de sátiras de Gregório de Matos, precedidas de um resumo da sua vida.
“O snr. comendador Joaquim Norberto de Sousa Silva inseriu depois, em 1843, alguns fragmentos de poesias no tomo 1 da Minerva Braziliense e em 1844, uma sátira e três sonetos seus no Mosaico poético. Em 1850, Varnhagen, depois visconde de Porto Seguro, imprimiu maior número de composições de Matos no tomo 1 do seu Florilégio da Poesia Brasileira; depois, em 1855, saíram algumas poesias e sonetos escolhidos do satírico nacional no Ensaio biographico critico dos melhores poetas portuguezes de José Maria da Costa e Silva. Francisco de Paula Brito também publicou uma produção de Matos na sua Marmota de 11 de Março de 1855. Eis tudo o que até hoje existia impresso do nosso poeta.
“Para a presente edição, além do que corria impresso, servi-me:
“I) de duas coleções [de manuscritos] pertencentes à biblioteca de S. M. o Imperador, as quais pertenceram a Inocencio Francisco da Silva e foram adquiridas do seu espolio.
“II) de outra coleção em dois volumes, que pertencem ao snr. Luiz de Carvalho, ambos de boa letra do XVIII século e sem títulos.
“III) finalmente de mais outra coleção [de manuscritos] também em dois volumes, pertencente ao snr. dr. João Antônio Alves de Carvalho, distinto bibliófilo fluminense. É’ cópia moderna feita pelo punho do grande amador de livros Manuel Ferreira Lagos.
Destas quatro coleções manuscritas que me serviram para fazer a edição que ora aparece pela primeira vez, visto se acharem algumas poesias repetidas, notam-se muitas variantes, umas devidas ao próprio poeta e outras que parecem defeitos dos copistas” (cf. Obras Poéticas de Gregório de Mattos Guerra precedidas pela Vida do poeta pelo licenciado Manuel Pereira Rebello, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1882, org. por Alfredo do Vale Cabral; sobre o último, v. Carlos Otávio Flexa, O descobridor encoberto da Biblioteca Nacional: Alfredo do Vale Cabral, FBN, 2010).
Assim, tivemos que usar várias edições diferentes para escrever este texto:
1) Alfredo do Vale Cabral, Obras Poéticas de Gregório de Mattos Guerra precedidas pela Vida do poeta pelo licenciado Manuel Pereira Rebello, Rio, Typ. Nacional, 1882.
2) Academia Brasileira de Letras, Obras de Gregório de Matos em seis volumes, Rio, 1923-1933;
3) Gregório de Matos, Obras Completas, Edições Cultura, 2ª ed., São Paulo, 1945.
4) James Amado, Obras Completas de Gregório de Matos, crônica do viver baiano seiscentista, 2ª ed., 2 vols., Record, Rio, 1990.
5) Walmir Ayala, Antologia Poética de Gregório de Matos, Ediouro, 1991.
6) Francisco Topa, Edição Crítica da Obra Poética de Gregório de Matos, Porto, 1999.
7) José Miguel Wisnik, Poemas Escolhidos de Gregório de Matos, Companhia de Letras, 2010.
Esta menção (e esta nota) é apenas para dizer que, quanto à versão dos poemas transcritos, a escolha (e, portanto, a responsabilidade) foi inteiramente nossa (C.L.).