“A Groenlândia não está à venda”, reagiu o primeiro-ministro Kim Kielsen, aos relatos de que o presidente dos EUA, Donald Trump, manifestou a disposição de comprar a maior ilha do planeta, com 2 milhões de quilômetros quadrados, 85% cobertos por gelo, e que é um território autônomo da Dinamarca.
Kielsen disse, ainda, que a Groenlândia está “aberta ao comércio e cooperação com outros países, incluindo os EUA”.
“Estamos abertos para negócios, não para venda”, reiterou em declaração o Ministério das Relações Exteriores da Groenlândia.
O balão de ensaio de Trump surgiu em meio aos preparativos para a visita dele em setembro à Dinamarca, em que a questão do Ártico estará na pauta.
Segundo o Wall Street Journal, Trump sugeriu a seus conselheiros que os EUA considerassem comprar a Groenlândia da Dinamarca.
De acordo com uma fonte ouvida pelo WSJ, Trump indagou a seus conselheiros “o que vocês pensam sobre isso? Vocês acham que isso funcionaria?”. Ele teria dito, ainda, ter sido informado de que a manutenção da Groenlândia é cara demais para a Dinamarca, que tem de distribuir grandes subsídios para manter sua economia à tona.
De acordo com o The New York Times, Trump teria mostrado interesse em comprar a Groenlândia no primeiro semestre do ano passado, em uma reunião no Salão Oval. A proposta voltou a ser repetida em outras ocasiões, levando seus conselheiros a investigar a viabilidade de tal operação.
Até o momento, não comentaram o assunto o primeiro-ministro dinamarquês, Mette Frederiksen, e o ministro das Relações Exteriores, Jeppe Kofod. O ex-embaixador norte-americano na Dinamarca, Rufus Gifford classificou a ideia de “completa e total catástrofe”.
TRUMAN OFERECEU US$ 100 MI
A última vez que um governo dos EUA pensou em adquirir a Groenlândia foi sob o presidente Harry Truman, quando Washington ofereceu US$ 100 milhões pela ilha, mas a Dinamarca recusou.
Em 1917, a Dinamarca vendeu aos EUA as então ilhas dinamarquesas das Índias Ocidentais por US$ 25 milhões, renomeadas como Ilhas Virgens.
Os EUA já mantêm, desde a II Guerra Mundial, forte presença militar na maior ilha ártica, com a base aérea de Thule abrigando bombardeiros estratégicos B-52 armados nuclearmente. Em 1968, um desses bombardeiros se acidentou e largou uma bomba termonuclear nas imediações da base.
Nos últimos anos, a China tem ampliado as relações com a Groenlândia, chegou a estudar a compra de três aeroportos e atualmente está pesquisando terras raras na ilha.
A Groenlândia foi colonizada pela Dinamarca no século XVIII, tem autonomia sobre os assuntos domésticos e o governo de Copenhague é responsável pela defesa e política externa. Dos seus 57 mil habitantes, a maioria é de inuítes (esquimós).
Do ponto de vista da história norte-americana, a expansão dos EUA via compra de terras colonizadas por outras potências foi uma das alternativas utilizadas – além da pilhagem direta de terras, como feito ao México, à moda do ditado ‘longe de Deus e perto demais dos EUA’. Como a aquisição da Luisiana (1803) à França e do Alasca (1867) à Rússia.
“1º DE ABRIL”
Os mais variados setores políticos dinamarqueses e groenlandeses rechaçaram a ideia. “Tem que ser uma piada de 1º de abril … mas totalmente fora de temporada”, disse o ex-primeiro-ministro Lars Lokke Rasmussen, do Partido Liberal Dinamarquês, no Twitter.
“Se ele realmente está contemplando isso, então esta é a prova final de que ele enlouqueceu”, disse Soren Espersen, porta-voz de relações internacionais do Partido do Povo Dinamarquês, à rede de tevê DR. Ele chamou de “completamente ridículo” pensar na Dinamarca “vendendo 50 mil cidadãos para os Estados Unidos”.
O parlamentar Michael Aastrup também compartilha essa posição. “Não, @realDonaldTrump, a Groenlândia não está à venda!”, postou no Twitter, observando que “os dias em que você poderia comprar territórios e pessoas passaram há muito tempo”.
“De todas as coisas que não vão acontecer, esta é a mais improvável”, retrucou pelo Twitter o deputado do Partido Conservador da Dinamarca, Rasmus Yarlov.
Martin Lidegard, representante do Partido Radical, considerou a intenção de Trump “uma idéia terrível, que ameaça o risco de militarização da Groenlândia e menos independência para os groenlandeses”. “Sem mencionar que seria uma grande perda para a Dinamarca”, acrescentou.
NAÇÃO ESQUIMÓ
Por sua vez, Aya Cheminitz Larsen, parlamentar do segundo maior partido da Groenlândia, o Innuit Ataqatigiit (IA), rejeitou categoricamente a possibilidade de vender a autonomia.
“Minha resposta é obrigada, não! Não creio que isso contribua para o desenvolvimento da Groenlândia”, ela afirmou em entrevista à TB2. “A Groenlândia não é uma mercadoria que pode ser vendida. A Dinamarca não pode fazer isso”, acrescentou.
A deputada também enfatizou que os valores americanos podem prejudicar a população indígena da ilha, os inuítes, esquimós. “Eu também penso sobre os valores sociais que existem na Groenlândia. Por exemplo, temos o direito de educação gratuita. Tais coisas serão destruídas se os valores americanos começarem a dominar”, disse à agência russa RIA Novosti.
À Reuters, ela disse ter certeza de que “a maioria da Groenlândia acredita que é melhor ter uma relação com a Dinamarca do que com os Estados Unidos, a longo prazo”.
ÁRTICO
Na zombaria do WSJ, “o presidente Trump fez fama na ilha mais famosa do mundo. Agora ele quer comprar a maior do mundo”. Apesar da ironia com que o porta-voz oficioso de Wall Street tratou a questão, a corrida às riquezas do Ártico – em especial, petróleo e gás – vem se intensificando nos últimos anos, com muitos think tanks norte-americanos achando que a Rússia está “vencendo a disputa”.
O próprio WSJ admitiu que a ‘ideia’ surgiu no meio de uma discussão sobre o aumento da presença militar norte-americana no Ártico. Em fevereiro, o comandante da Marinha dos EUA na Europa, almirante James Foggo, asseverou que Washington “não permitirá” o domínio russo e chinês na região, e chiou que a Rússia vê o Ártico “como seu domínio”.
Segundo analistas, uma das consequências das mudanças climáticas seria tornar mais fácil a exploração das riquezas que até aqui estiveram escondidas sob toneladas de gelo e tenebrosas condições de sobrevivência.
Também a chamada “Rota do Norte” está prestes a se tornar uma via de tráfico marítimo constante, desde o Pacífico, até o Norte da Europa, costeando a Rússia, com o tempo de viagem da Coreia do Sul para a Alemanha, segundo o Washington Post, caindo em um terço em relação à rota tradicional do Suez.
Além da ameaça já citada da militarização num grau extremado da Groenlândia, dentro dessa perspectiva de “conter os russos” no Ártico, a vontade expressa por Trump significa um risco redobrado quanto ao aspecto ambiental, questão sobre a qual ele não tem o menor compromisso, já que a Groenlândia é vista como uma espécie de “canário na mina” em relação ao derretimento das geladeiras e outros fenômenos preocupantes.
ANTONIO PIMENTA