Os acontecimentos em Paraisópolis, na cidade de São Paulo, em que nove jovens morreram, em uma ação de extrema brutalidade da polícia, mereceram o repúdio geral – e exigem punição.
Mas isso não significa enfeitar o pavão e abandonar a objetividade ao tratar do evento que ali estava sendo realizado.
Até preferíamos esperar um pouco mais para tocar num assunto pouco glamouroso, mas que não pode ser varrido para debaixo do tapete, se quisermos, de fato, que tragédias como essa não voltem a se repetir.
Depois que um jornal publicou que se tratava de “uma manifestação da cultura tradicional da comunidade” e outro (na verdade, outros) se referiram a uma divertida “umbrella dance”, que seria uma das atrações marcantes dessa “festa”, já não dá para segurar.
“Pancadão” não é “baile funk”. Nos primeiros momentos após as mortes em Paraisópolis, quando a questão principal estava em denunciar a barbárie policial, para que a sociedade não permita que ela fique impune, era compreensível o pouco cuidado em distinguir bem as duas coisas.
“Pancadão” é uma orgia a céu aberto, no meio da rua, promovida e organizada por traficantes – no caso do Paraisópolis, pelo PCC – para atrair fregueses para a sua venda de drogas.
É o que explica o fato de que a maioria dos mortos não era morador de Paraisópolis – assim como quase todos os participantes do “Pancadão”.
Segundo a União dos Moradores e Comércio de Paraisópolis, 80% dos participantes vêm sempre de fora do bairro – e existem não poucos moradores que acreditam que a parcela de forasteiros é ainda maior (v. Tiago Dias, Entre turistas, regras e violência policial: o fluxo dentro do fluxo do DZ7, TAB 03/12/2019).
Chamar isso de “manifestação cultural” parece-nos um exagero semelhante ao daquele jornalista que publicou o obituário de um escritor que estava vivo e até com boa saúde.
Quanto à “umbrella” – que é apenas a tradução em inglês de guarda-chuva -, segundo disse um periódico co-irmão, “outra sensação é a dança do umbrella. Sim, a ideia é sacudir o guarda-chuva para cima e para baixo fazendo vento. Num grupo de cinco garotos, todos da Grande SP, cada um tinha o seu. Eles dizem que o objeto serve para ostentar e é infalível também na paquera” (v. “Uma semana após mortes, baile em Paraisópolis tem homenagem e clima tenso”, FSP 08/12/2019).
Infelizmente, a explicação para essa fixação em guarda-chuvas – um objeto que, exceto em caso de chuva, só serve para atrapalhar o seu portador – é mais prosaica.
Os guarda-chuvas abertos cumprem o papel de identificar, dentro da multidão que vai ao “Pancadão”, os vendedores de droga, aqueles garotos que a gíria antiga chamava de “vapor”.
A polícia, por sinal, não foi lá com a finalidade de reprimir o “Pancadão” – que, aliás, só existe onde ela permite. Em português bem claro isso quer dizer: quando ela aceita receber propina para permitir.
Quando ela não aceita, simplesmente chega antes e impede que o Pancadão se instale.
CARLOS LOPES