O ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou na sexta-feira (06), em evento sobre saneamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que a Eletrobrás “está condenada à morte”. “É só uma questão de tempo. Vai desaparecer ou vira uma corporação”, disse o ministro, que ajudou o ditador Augusto Pinochet, do Chile, a destruir a economia daquele país, e agora quer fazer o mesmo com o Brasil.
O que Guedes diz que está morta, ou seja, que ele pretende matar, entregando-a às multinacionais, é a maior empresa de energia elétrica do Brasil e da América Latina, sendo responsável por 31% da geração e 47% da transmissão de energia e 52% da água armazenada nos reservatórios brasileiros.
Atualmente a Eletrobrás é estruturada na forma jurídica de empresa de capital misto e dispõe de ações negociadas na bolsa de valores, tendo como acionista principal o Estado (detém 51% das ações ordinárias com direito a voto). A BNDESpar, subsidiária integral do BNDES, possui 12% das ações e o BNDES, propriamente, dispõe de cerca de 6%.
O pretexto do ministro de Bolsonaro para profetizar a destruição do sistema Eletrobrás seria uma suposta falta de recursos para investimentos. Segundo ele, a estatal possui capacidade máxima para investir de R$ 3,5 bilhões e precisa ao menos de R$ 16,5 bilhões “para manter a fatia de mercado”.
O professor Luis Pinguelli Rosa, da Coppe/UFRJ, e ex-diretor da Eletrobrás, contesta a afirmação de Guedes. “Isso é uma imbecilidade”, declarou, sobre as afirmações de que a privatização da Eletrobrás é justificada como uma necessidade para a eficiência econômica. “Se vocês pegarem a performance da Eletrobrás no presente, ela deu um resultado positivo, em 2018, na ordem de 16 bilhões de reais, aproximadamente. No primeiro trimestre de 2019 já alcança mais do que a metade disso, então, o resultado positivo tende a ser melhor”, afirmou.
O professor Ildo Sauer, do Instituto de Energia da USP e ex-diretor de Energia da Petrobrás, ressalta que “nenhum país do mundo, usando sistema hidráulico de usinas, as privatizou”. Na China, detentora da maior produção, o sistema é completamente estatal. “Nos Estados Unidos, a meca do capitalismo, são mantidas sob o controle público, por meio da Tennessee Valley Authority (uma corporação de propriedade federal)”, exemplifica. “Lá, com a quebra da Bolsa em 29, o investimento massivo em infraestrutura resgatou o sudeste norte-americano da miséria. No norte da Europa, Suécia, Noruega e Dinamarca administram o Consórcio Multinacional de Controle dos Rios”, informou.
“Esse modismo de que tudo que é privado é bom, e tudo que é estatal é ruim, é um grande equívoco que tem trazido consequências”, argumenta o ex-diretor da Petrobrás. Conforme a avaliação dele, a geração hidrelétrica da Eletrobras custa de R$ 8 a R$ 12 por megawatt hora. As novas usinas, que ainda não tiveram as despesas de sua infraestrutura saldadas, produzem a mesma ordem por cerca de R$ 20. Enquanto isso, as empresas privadas vendem a um preço de R$ 80 a R$ 100. Nas termelétricas, varia de R$ 200 a R$ 300. “Uma vez privatizadas essas usinas, se fará como se fez em todos os lugares. O preço aumentará”, prevê Sauer. Essa será uma das consequências da “destruição” da Eletrobrás por Guedes.
“As tarifas públicas de energia no Brasil poderiam ser as mais baratas do mundo e estão entre as mais caras”, reclama o professor. No setor, há poucos empreendedores atuantes em razão da alta demanda de investimento. Assim, o especialista aponta a formação de lobbies com o intuito deles se beneficiarem dos recursos públicos. “A Eletrobrás foi objeto de saqueio no governo de Dilma Rousseff, por meio da medida provisória 579 de 2012”, recorda. “As subsidiárias da estatal, Eletrosul, Eletronorte, Furnas, entre outras, foram obrigadas a vender energia por um preço abaixo do custo de operação e manutenção, mais impostos, acarretando prejuízo”, apontou. “O intuito era contrabalançar o elevado preço da energia comprada de maneira equivocada em leilões de energia térmica, que nem deveriam ter existido”, conta Sauer.
Para o professor, mesmo com todos os problemas e toda a sabotagem neoliberal ao fucionamento da Eletrobrás, ela hoje voltou a ser lucrativa e pode usar os lucros obtidos nas operações de geração e venda de energia para garantir os investimentos necessários, bem como abastecer fundos de investimentos sociais. “A produção de energia elétrica renderia em torno de 5,6,7 bilhões de dólares por ano. Esse dinheiro deveria ir para financiar a educação pública, nossa grande carência ao lado da saúde”, defendeu.
A perda do controle acionário do Estado, que é o caminho escolhido por Guedes e Bolsonaro para desnacionalizar a Eletrobrás, significará que todo esse recurso obtido com os lucros da Eletrobrás será transferido para as matrizes das empresas estrangeiras que se beneficiarem das privatizações do governo.
Reproduzimos aqui um pequeno histórico do significado do que Paulo Guedes e Jair Bolsonaro estão destruindo. Esse histórico foi feito pelo professor Ildo Sauer, em entrevista ao HP, em setembro deste ano, onde ele mostra o que representou e representa a Eletrobrás para o desenvolvimento do Brasil.
HISTÓRICO
“Desde as grandes mudanças na produção urbana e industrial, que se seguiu à era do carvão, houve uma bifurcação em duas grandes vertentes. Uma do petróleo e a outra da eletricidade. A eletricidade estava no centro das grandes mudanças no modo de produzir e organizar a vida. No Brasil isso foi objeto de uma luta encarniçada logo que isso foi revelado como algo interessante. Quando se viu que o capitalismo conseguia, de maneira extremamente veloz, propagar os ganhos de produtividade, com a eletricidade e o petróleo. As duas vertentes eram, uma da produção de energia elétrica para a indústria e a produção, e a outra, o aparato de consumo como automóveis, a linha branca, motores, etc. Note que grande parte do salto da produtividade pós século XIX se deu por conta disso.
CÓDIGO DE ÁGUAS
“Em 1906 Alfredo Valadão, que era um especialista brasileiro, andou pelo mundo e foi ver como esse debate se desenrolava em vários países, e trouxe para o Brasil uma proposta de um Código de Águas. Em 1889, a concessão já havia ocorrido para o grupo canadense Light no Distrito Federal (Rio) e São Paulo. A americana American and Foreign Power (AMFORP) foi para o Rio Grande do Sul e o interior de São Paulo. Então eles já estavam de olho. Se você olha os livros do Catulo Branco, o prefácio de seu livro, feito pelo Barbosa Lima Sobrinho, ‘O Capital Estrangeiro e Energia Elétrica no Brasil’, você vai ver que essa luta vem de longe.
“Não é de agora que há um embate muito forte em torno da apropriação dos benefícios econômicos que o controle sobre o monopólio da distribuição e transmissão e, de outro lado, a geração mais barata – porque as empresas eram integradas até os anos 70 porque não havia como separar – trazia de agilidade. Por isso havia monopólios de energia regionais.
“O projeto de lei de Alfredo Valadão foi obstruído por esses interesses. Miguel Reale, essa turma toda, que eram os grandes juristas, advogados da Light em São Paulo, entraram na briga. Tudo isso estava ancorado nessa luta, que agora tem novas caras, novos fardamentos e novos uniformes, mas a disputa continua igual.
“Quem se beneficia com o controle sobre os potenciais hidráulicos, quem controla os monopólios da transmissão e da distribuição elétrica para dela extrair excedente econômico? Esta é a luta. Mal ou bem há uma margem enorme entre o custo e o valor que a energia elétrica, assim como o petróleo, tem para a sociedade. Então tomar um naco disso está na base da disputa e o Congresso Nacional sempre foi muito instrumentalizado.
GETÚLIO VARGAS
“O projeto de lei de Alfredo Valadão, do Código de Águas, que foi apresentado em 1906 na Câmara, nunca foi votado. Entrou em vigor porque Getúlio Vargas fez um decreto-lei em 1934 implantando o Código de Águas, que foi um avanço extraordinário. Da mesma forma, quando a água passou a ter controle público, as multinacionais que já tinham se instalado no Brasil não queriam a Eletrobrás, porque ela ia ser, não só uma organizadora das usinas, como da cadeia produtiva inteira.
“A ideia é que a Eletrobrás produzisse turbinas, máquinas e equipamentos. O cartel da indústria elétrica mundial, criado formalmente em 1936, com a Westhinhouse, a Siemens, GE e outras – que dividiu o mundo – impediu o surgimento da Eletrobrás, que confrontava seus interesses. Ela não passou no pacote do segundo governo Vargas. A Petrobrás conseguiu ser aprovada nesta época, mas a Eletrobrás não. Ela só foi ser criada no governo Jango. Foi uma grande herança que o Goulart deixou para o país.
SISTEMA INTEGRADO
“Por essas lutas encarniçadas do passado é clara a relevância de um sistema integrado, um dos únicos do mundo, que integra as bacias hidrográficas. As linhas de transmissão fazem com que, de uma certa forma, a água fluísse de um lado para outro. O sistema elétrico brasileiro é interligado. Isso foi feito no governo Sarney, que ligou o Norte-Nordeste com o sistema Sul-Sudeste-Centro Oeste. Eu fiz isso nos gasodutos alguns anos depois, inspirado no mesmo modelo.
“Então, controlar o recurso hídrico, as usinas hidrelétricas, é fundamental. Desde o código de águas, ditado pelo decreto-lei de Vargas, criado por inspiração nos estudos de Alfredo Valadão, estava claro que a água era a base da construção, um dos pilares fundamentais para a construção de uma sociedade que viria a se urbanizar e se industrializar. A água tem um papel fundamental, não só para gerar energia mas, acima de tudo, para o abastecimento público, para a navegação, para a irrigação, enfim, a todo um conjunto de benefícios que, quando a água é gerida de maneira cooperativa, ela deixa, inclusive no sistema capitalista.
“Os EUA não privatizaram a TVA (Tennessee Valley Authority), criada no governo Roosevelt, para arrancar da miséria o sul afligido profundamente pela herança escravagista e pela discriminação. A Tenesse Vale continua federal. Ninguém questiona, não tem prazo de concessão. Ela é operada em benefício da economia e da sociedade para garantir navegação, garantir controle de cheias e secas, tanto lá como cá e geração de energia.
PRIVATIZAÇÃO
“Privatrizar a Eletrobrás por uma bagatela, com números que nem se sabe se vão obter – porque eles querem fazer aumento de capital – é um absurdo. Isto é, vão diluir as ações do governo, entregando tudo, com a promessa da tal da Golden Share, que existe na Embraer e que nunca serviu para muita coisa na prática. Porque, na hora H, os grandes interesses econômicos, que querem alterar a natureza, por exemplo da Embraer, prevalecem.
“Desde a década de 70, a Eletrobrás vem sofrendo os ataques dos grupos representados por ACM, Imbassay, etc. O sonho de FHC era privatizar, nós resistimos e não deixamos. A Dilma não privatizou o CNPJ, mas privatizou os benefícios que a energia podia gerar, fazendo uma mudança legislativa que obrigava as geradoras da Eletrobrás e suas subsidiárias, como a Eletronorte – esta última foi criada com inspiração na CVA, para ser uma agência de desenvolvimento da Amazônia – a vender abaixo do preço.
“Todas as empresas do sistema operavam de maneira cooperativa, integradas, junto com as grandes estaduais. Por que foi feito isso? Para ganhar escala, capacidade tecnológica e financeira, integrar. A Eletrobrás era isso, um consórcio. A Petrobrás era una para cumprir o seu papel nacional e internacional, a Eletrobrás era um sistema integrado, cooperativo das públicas estaduais. A Holding Eletrobrás era uma grande organizadora do planejamento, da operação. Porque, para você operar a água, manter os reservatórios, ter uma otimização de longo prazo para que o custo seja o menor possível, tem que haver cooperação. Afinal, este setor é um grande monopólio natural. Neste setor a cooperação é muito mais importante do que a competição. Na prática, onde se deu a competição nesse setor, na Colômbia e na Califórnia, por exemplo, o resultado foi desastroso”.