Em meio ao apagão que deixa a população da Venezuela sem acesso aos serviços básicos e à beira de uma crise alimentar das mais graves proporções, publicamos a íntegra deste artigo escrito pelo engenheiro venezuelano Rafael Ramirez Carreño que exerceu as funções de ministro de Energia e Petróleo, presidente da estatal Petróleos de Venezuela S.A. (PDVSA) e embaixador da Venezuela na ONU.
Em seu artigo-alerta, Ramirez analisa, ponto a ponto, os fatos que conduziram à suspensão do fornecimento de energia elétrica no país vizinho, desmonta a falácia de Maduro e seu grupo acerca de uma “guerra elétrica imperial” como causadora do desastre e ressalta o desafio colocado perante o povo venezuelano, que foi capaz de realizar a inspiradora Revolução Bolivariana, agora diante dos momentos mais graves de sua história.
N.B.
RAFAEL RAMÍREZ CARREÑO*
Blackout é um termo técnico operacional que descreve com maior precisão que o de “Apagão”, o que está acontecendo em nossa pátria.
Desde o dia 7 de março, o país ficou às escuras devido ao colapso total do setor elétrico nacional, que arrastou consigo todos os serviços básicos, trazendo angústia e mais deterioração às condições de vida da população, sem falar do que vai sendo afetado em temos do aparato produtivo, da defesa ou dos problemas de segurança.
O PAÍS FICOU PARALISADO E TRAUMATIZADO
No momento em que escrevo (domingo, 10 de março), a maioria do território nacional está às escuras por mais de 40 horas, com exceção de algumas zonas de Caracas e outras áreas urbanas, onde o serviço tem vindo a se reestabelecer de forma instável. Não sei se quando este artigo seja publicado seguirá o país na penumbra, isolado do mundo. É insólito e muito grave.
Um “blackout”, é quando colapsa a totalidade de uma instalação ou sistema operacional, de alta complexidade, seja porque sua confiabilidade é baixa, ou porque não existem contingências, nem proteções, nem os alarmes funcionam adequadamente, um sistema vulnerável que, ante uma falha em algum estágio chave do sistema gera uma sucessão de eventos, que se produzem tão rápida, ou violentamente que o sistema fica fora do controle do operador.
Já não se trata então de uma falha, mas de um evento qualitativamente distinto: falhas em cascata a uma velocidade tão alta que ultrapassam as possibilidades de resposta, e cujo resultado é o colapso total do sistema, sua completa paralisação.
Neste tipo de eventos, deve-se atuar de imediato, segundo procedimentos preestabelecidos, identificando e resolvendo a falha de origem e repondo todos os sistemas, um a um, com critério de emergência, já que o sistema deve ser reerguido em questão de horas.
Estou seguro de que os trabalhadores da Corpoelec (empresa estatal venezuelana de energia elétrica) têm estado ocupados em resolver este colapso operacional. Colapso que eles mesmos têm advertido inúmeras vezes e que, paradoxalmente, tem custado perseguição, demissão e prisão a muitos deles. Também estou seguro de que a direção do setor, não apenas carece de conhecimento e capacidade, como também estão perdidos e ultrapassados pelos eventos.
Os trabalhadores, engenheiros, técnicos e operários, sabem que não se trata de nenhuma sabotagem, nem da ação comandada por algum “general de tuiter”. Ainda que o setor tenha sempre apresentado problemas estruturais, foi durante a péssima gestão nestes anos de madurismo que o setor vem falhando de forma progressiva e frequente até o colapso total.
INDOLÊNCIA E INCOMPETÊNCIA
Um setor estratégico sob a direção incompetente e indolente de um dos grupos de poder do madurismo, dos “amigos”, onde se persegue os trabalhadores, se tomam decisões equivocadas ou não se toma nenhuma; tem levado de maneira permanente a regiões inteiras do país à calamidade dos cortes de luz, dos apagões, achacando-se com atribuições das falhas a, desde iguanas que causam curto-circuitos, até a sabotagens, passando por qualquer coisa que lhes ocorra dizer. Hoje falam de “uma guerra elétrica”, dizem isso sem nenhuma vergonha, creem que o povo é idiota.
Em todo caso, o setor eléctrico, por seu carácter estratégico, se preparou, durante o governo do presidente Chávez, para a contingência de um conflito ou ataque externo do sistema, tomando as providências de diversificar as fontes geradoras através da incorporação de mais de 4.000 MW de geração termoeléctrica, para criar capacidades suficientes nas distintas regiões e setores estratégicos do país e diminuir a dependência de Guri (a hidrelétrica que hoje fornece mais de 70% da energia do país e cuja pane deu início ao presente colapso).
Agora, não apenas entrou em colapso a geração hidrelétrica desde o sul e os sistemas de transmissão que atravessam o país, incluindo muitas subestações e os sistemas de distribuição, mas as grandes centrais termelétricas, que com tanto esforço instalamos e entregamos à Corpoelec para sua gestão, ou na PDVSA, ou nas Empresas Básicas. A maioria está fora de operação, seja por falta de manutenção, de reposições, seja pela canibalização de suas peças e deterioração de suas instalações ou porque não há combustível diesel, nem gás.
Este colapso sucede apesar de que a demanda elétrica nacional teve uma queda significativa, de um máximo de 18.600 MW em 2011 a menos de 13.600 MW atualmente, justamente pela retração da economia acumulada em mais 50% do PIB neste período, de tal forma que, se estes sistemas estivessem bem mantidos, deveriam ser suficientes para garantir ao menos esta demanda reduzida.
Ao contrário, o sistema elétrico entrou em colapso, não entraram em operação as centenas de unidades elétricas de geração distribuída, que foram instaladas de forma planificada em locais estratégicos do país. Como consequência não funcionam as estações de bombeamento de água, hospitais, centros de telecomunicações, aeroportos, distribuição de combustível. Nada está funcionando.
A DESCULPA DA ‘SABOTAGEM’
A tese da sabotagem surge como uma desculpa a mais, o discurso para mobilizar os companheiros, mas na realidade, em qualquer circunstância, há uma falha grave em todo o sistema, e não funcionaram os sistemas de contingência. Mas “a sabotagem” desculpa tudo e segue deitando por terra a realidade da incompetência do governo e a perigosa vulnerabilidade da Pátria.
Ninguém no governo informa o que está acontecendo realmente, nem atua em defesa da população. O cidadão não sabe a que se ater. Enquanto isso, não há água, não há telecomunicações, os doentes em terapia intensiva ou com graves crises de saúde morrem, as crianças recém-nascidos que precisam de assistência neonatal, também. Muitos hospitais não podem atender a emergências de pronto socoro; na maternidade de El Valle, o pessoal médico realiza atos heroicos para salvar a vida dos bebês porque os respiradores não funcionam, a população está procurando gelo para tentar preservar alimentos ou medicamentos.
As noites, sobretudo nas zonas populares das grandes cidades, transcorrem em angústia entre os disparos, gritos e impropérios e a ação de grupos armados de qualquer tipo, parecem zonas de guerra.
Ante esta situação de caos e emergência nacional o povo está só, distante do tuiter e da propaganda, o governo está paralisado. Atua mais como um partido político, que como um governo.
É sua responsabilidade acompanhar o povo nesta emergência, devia estar na rua, com sistemas portáteis nos hospitais, ajudando, patrulhando, dando segurança, oferecendo os profissionais, as capacidades logísticas do governo, as empresas do Estado e a Força Armada Bolivariana. Onde estão os dirigentes do governo? Onde estão os grupos de salvação, auxílio, apoio? Não basta declarar, é preciso atuar!
Maduro está escondido, tem medo de um atentado, se move e vive encapsulado, os ministros não dão as caras porque não têm a liderança, não podem estar nas ruas, mas apenas em ambientes controlados.
Onde está o PSUV (partido fundado por Chávez e que hoje governa sob o domínio madurista)? Deveria estar com o povo, ajudando, metendo as mãos, informando.
CHÁVEZ
Nós, no governo do presidente Chávez, sofremos a Sabotagem Petrolera, uma verdadeira, executada pela chamada “meritocracia petroleira”. Entre os meses de dezembro de 2002 e janeiro de 2003, a Sabotagem Petroleira paralisou o coração da pátria; tudo era um caos, não havia gasolina nem gás, as refinarias e a produção sabotadas, só produzíamos 23 mil barris/día de petróleo ao início de 2003; a oposição estava nas ruas, violenta, a paralisação patronal deixou o país sem alimentos e serviços.
Mas aí estava o presidente Chávez na rua, no combate e com ele nós todos, seus ministros, dando as caras, à frente das operações de recuperação da PDVSA, todos juntos, os gerentes e trabalhadores (muitos dos quais hoje são sequestrados políticos do governo), enfrentando a violência política, o caos da oposição golpista.
Com nossos oficiais e soldados patriotas, junto aos trabalhadores e o povo, fomos recuperando uma a uma as instalações, os serviços: Yagua, Puerto La Cruz, Jose, El Palito, CRP, Amuay-Cardón, Pilín León, toda nossa frota de transporte, nossos navios, a produção no Oriente, no Ocidente, o gás.
Fomos normalizando o país, informando, explicando a gravidade da situação mas, ao mesmo tempo, recuperando a normalidade, apesar dos ataques e da violência; nós estávamos comprometidos com o povo, com a Pátria, com Chávez, na defesa de todos os venezuelanos, fossem quem fossem, se tratava de nossa soberania e independência.
Que diferença da situação atual. E que não me venha nenhum madurista me dizer que “o preço estava a cem dólares o barril”, nem que tudo isso foi uma “fábula”, como gostaria de dizer Herodes. Não. Era a situação mais difícil possível, não somente a produção estava em 23 mil barris/dia de petróleo, e o preço estava em menos de 22 dólares o barril, como também que vínhamos de um golpe de Estado e havia a paralisação total convocada pela Fedecamaras (entidade patronal que aderiu ao golpismo no período de Chávez).
Mas nós tínhamos razões sagradas para lutar, havia ideias, paixão, valor, moral e ética diante do povo. Chávez nunca mentiu, nós nunca mentimos ao povo, nunca enganamos o país. Eram tempos de Revolução.
Agora não há governo que apareça. Não há um chefe. Os porta-vozes do madurismo só insistem em culpar a sabotagem, a “guerra elétrica”, em um setor que está completamente militarizado desde há tempo. Impõe-se a lógica do tuiter, manipula-se, oculta-se a verdade.
Os ministros do governo, seus porta-vozes, dirigentes do PSUV, repetem sem pensar a tese do “ataque imperial” ao setor elétrico, algo que, se fosse certo, deveriam demonstrar e explicar ao mundo, mas não. “Se saberá porque Deus está conosco”.
Com este argumento, cômodo para eles e que não dá espaço à discussão, seguem deixando que o governo faça o que lhe der vontade, improvisando, seguem impondo a absurda tese de “o que Maduro disser”, seguem de costas para o sentimento popular, cada vez mais distantes e indolentes com o povo.
Segue se aprofundando o sentimento de desesperança, desespero, frustração, o caldo de cultura para que cavalgue à vontade o ódio e a raiva. Os antissociais do tuiter e redes sociais, aproveitam esta indolência do governo, esta ausência da política, para avançar em sua prédica contra Chávez, que ao final, está pagando pelos pratos quebrados do desastre madurista.
Esta situação disfuncional do país, deixa a condução do povo aos setores extremistas que pedem revanche, “olho por olho”, invasão estrangeira, e prometem um amplo e indefinido algo mais, tão perigoso como danoso à sociedade e ao país.
Esta posição antinacional avança, cavalga sobre o desastre madurista e atinge por tabela aos chavistas, à oposição responsável e à Pátria.
São os setores que aplaudem uma injusta e aburda decisão de um tribunal arbitral contra o país e a favor da Conoco Phillips, que se aproveita justamente da debilidade do país para chutá-lo. Que pedem abertamente a entrega da Pátria, do petróleo às transnacionais, clamam por uma intervenção estrangeira, um ataque militar ou qualquer outra aventura que os possa levar ao poder, sem que lhes importe que depois tenhamos anos de guerra e desestabilização.
DANO
O pior dano feito por Maduro é que, destroçando o país e a obra do presidente Chávez, abriu as portas ao fascismo e a um sentimento antinacional, como nunca antes havia acontecido em nossa história.
Muito além do que se sucedeu no país, desde o dia 7 de março, com a Corpoelec e o apagão, o grave e preocupante é que este é um fato apenas de uma série de eventos em cascata, já fora de controle, que estão levando o país a um colapso total, a um “blackout” sumamente perigoso para nossa soberania e integridade territorial.
Não somente estamos diante do apagão de março que atingiu a Corpoelec, não, primeiro foi a perseguição e a destruição da PDVSA, o colapso da produção de petróleo; veio o pacotaço e a destruição da economia com a hiperinflação, a retração da produção, a megadesvalorização, a destruição da moeda e do valor do trabalho.
Logo veio o êxodo de mais de 3 milhões de venezuelanos; o desmantelamento das Missões Sociais, e o retrocesso a níveis absurdos de pobreza e pobreza extrema, o aumento da desigualdade e injustiça social; o colapso do transporte público, da distribuição de água, de bujões de gás e os racionamentos de gasolina; o colapso na produção e distribuição de alimentos e medicamentos; a insegurança e a proliferação dos milicianos, agora aliados do governo.
Não há apenas um ¨blackout¨ na área económica e operativa do país, dos serviços públicos e no âmbito social, houve também um colapso da política: a violação da Constituição, a imposição da Constituinte, que atravessou todas as linhas vermelhas possíveis, lobotomização do PSUV, a censura, o medo, a imposição de mecanismos de controle social.
O assalto e a destruição das instituições: da Procuradoria, do Poder Judicial; as centenas de mortos pela violência política nas ruas, os sequestrados políticos, os exiliados; os assassinatos políticos, como o recente caso do jovem militante chavista Alí Domínguez, os mortos sob custódia; os pactos, a cloaca da política, o perigoso baile à beira da fogueira da morte.
Acabaram com a política, com as ideias, com o debate, com a ética, nos levaram à beira do abismo.
O madurismo já não pode ocultar sua incapacidade para governar ou controlar o país. As ações tão danosas de sua nefasta administração, têm debilitado de tal forma as instituições, a economia, e empresas fundamentais, que tudo está disfuncional, o caos é a regra, o “blackout” do país.
Temos que deter esta loucura antes que seja demasiado tarde, antes de que não possamos sustentar o que resta de Pátria. Para Maduro acabou o tempo pois nos conduz ao fascismo à intervenção estrangeira.
Somente uma Junta Patriótica de Governo, que inclua a todos os setores nacionais, patriotas, que restabeleça a união cívico-militar, será capaz de mobilizar todo o povo venezuelano e por um ponto final a este desastre, que não é patriota, nem bolivariano, nem chavista, nem sequer é bom e muito menos revolucionário e que só fez derrotar tudo aquilo que cimenta a Pátria, debilitando-a como nunca antes, triste papel de traição ao país, dos que se aferram ao poder e negociam como podem antes que o diabo se dê conta de que já morreram.
* Ministro de Energia e Minas, presidente da estatal Petróleos de Venezuela S.A. (PDVSA) e embaixador da Venezuela na ONU durante o governo de Hugo Chávez