(HP 13/05/2015)
Há 127 anos o Brasil chegava, com a Abolição da escravatura, à vitória do maior movimento popular até então acontecido no país. Toda a luta política, econômica e cultural da segunda metade do século XIX foi em torno desta questão. O movimento pela Abolição, efetivamente, plasmou o Brasil da época – e seria a base para o fim do Império e o surgimento da República, como bem notaram os mais notáveis republicanos, e, inclusive, os mais inteligentes monarquistas.
Para marcar esta data, publicamos, hoje e na próxima edição, em versão condensada, “O Problema do Negro na Sociologia Brasileira”, de Alberto Guerreiro Ramos.
Guerreiro Ramos, mulato nascido na Bahia, foi assessor do presidente Getúlio Vargas em seu segundo governo, um dos fundadores do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e um dos ideólogos do trabalhismo – isto é, do nacional-desenvolvimentismo – durante os governos Juscelino e Jango. Dirigente nacional do PTB e deputado federal – considerado, desde a década de 50, como um dos maiores sociólogos do mundo – foi um dos primeiros cassados pela ditadura, logo após o golpe de 1964.
Hoje em dia, há uma trupe de alucinados reacionários que pretende alistar Guerreiro Ramos – falecido no exílio, em 1982 – entre os seus. Debalde. Uma tal fraude é tão descomunal que merece referência apenas em função do seu motivo: a polêmica de Guerreiro Ramos com o PCB, em seu livro “Mito e Verdade da Revolução Brasileira” (1963).
Porém, em muito, nessa polêmica, Guerreiro Ramos esteve mais próximo da verdade que o PCB daquela época. Naturalmente, há questões em que ele não tinha razão. Mas, levantar aquilo em que um autor não tem razão (difamando a sua obra ou elogiando-a) para ignorar o que há de correto em sua abordagem, é bem o método dos vigaristas supostamente intelectuais de todas as épocas. Como no provérbio russo que Lenin citou a propósito de Rosa Luxemburg, “muitas vezes uma águia poderá voar tão baixo quanto uma galinha, mas jamais uma galinha voará tão alto quanto uma águia”.
Voltaremos, em outra oportunidade, a esse tema. Por ora, acrescentamos que o fragmento de texto que publicamos faz parte da décima parte da “Cartilha Brasileira do Aprendiz de Sociólogo (prefácio a uma sociologia nacional)”, que o autor publicou em 1954 e depois incluiu em “Introdução Crítica à Sociologia Brasileira” (1957).
Depois de analisar a nossa tradição sociológica na abordagem do negro – principalmente as obras de Sylvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Oliveira Viana e Nina Rodrigues – o autor examina a situação contemporânea – que, aliás, ficaria mais nítida na segunda metade da década de 50, nos anos 60, e, sobretudo, sob a ditadura. Não pudemos, por razões de espaço, reproduzir aqui o exame dos sociólogos brasileiros (expressão que vai muito além da academia) do passado.
Mas é evidente, no texto, qual é o seu alvo (assim como em toda a “Introdução Crítica à Sociologia Brasileira”): a sociologia “enlatada” ou “transplantada”, que já grassava na USP e que depois – com Weffort, Ianni, e, claro, Fernando Henrique Cardoso – seria responsável por uma das maiores escroquerias intelectuais da história do país: a “teoria do populismo”, uma espécie de justificação ideológica da ditadura sob uma capa supostamente “de esquerda”.
Para Guerreiro Ramos, a questão do negro não existe separada da questão nacional – pelo contrário, a chamada questão do negro é a questão nacional. Era isso, exatamente, o que os “uspianos” mais notórios (havia exceções) não conseguiam alcançar – e se recusavam a pensar nesses termos devido à sua submissão ideológica às matrizes metropolitanas.
Mas, já escrevemos demais. Não faltará tempo e jornal para, depois, abordarmos mais extensamente algumas dessas questões. Agora, vamos ao texto de Alberto Guerreiro Ramos.
C.L.
O negro na sociologia brasileira (fragmento)
GUERREIRO RAMOS
Que é que, no domínio de nossas ciências sociais, faz do negro um problema, ou um assunto? A partir de que norma, de que padrão, de que valor, se define como problemático ou se considera tema o negro no Brasil? Na medida que se afirma a existência, no Brasil, do problema do negro, que se supõe devesse ser a sociedade nacional em que o dito problema estivesse erradicado?
Na minha opinião, responder a estas perguntas corresponde a conjurar uma das maiores ilusões da sociologia brasileira.
Determinada condição humana é erigida à categoria de problema quando, entre outras coisas, não se coaduna com um ideal, um valor ou uma norma. Que a rotula como problema, estima-a ou a avalia anormal. Ora, o negro no Brasil é objeto de estudo como problema na medida que discrepa de que norma ou valor?
Os primeiros estudos no campo trataram das formas de religiosidade do negro. Terá, porém, o negro, entre nós, religião especifica? Objetivamente, não. Desde a época colonial, grande massa de negros e mestiços tinha abraçado a religião predominante no Brasil – a católica. Mais ainda, já na época de Nina Rodrigues as sobrevivências religiosas [africanas], como ainda hoje, caracterizavam o comportamento das classes pobres, aí se incluindo tanto claros como escuros.
O fato é que o negro se comporta sempre essencialmente como brasileiro, embora, como o dos brancos, esse comportamento se diferencie segundo as contingências de região e estrato social.
O negro é tema, é assunto, é objeto de registro, no Brasil, em todas as situações. Um dos mais recentes livros sobre o negro na Bahia se detém precisamente registrando-o em posições de relevo na estrutura social e econômica. O livro em apreço exibe várias fotografias em que aparecem negros médicos, homens de negócio, universitários, pintores, compositores, de resto, situações verdadeiramente comuns no Estado da Bahia.
Nestas condições, o que parece justificar a insistência com que se considera como problemática a situação do negro no Brasil é o fato de que ele é portador de pele escura. A cor da pele do negro parece constituir o obstáculo, a anormalidade a sanar. Dir-se-ia que na cultura brasileira o branco é o ideal, a norma, o valor, por excelência.
E, de fato, a cultura brasileira tem conotação clara. Este aspecto só é insignificante aparentemente. Na verdade, merece apreço especial para o entendimento do que tem sido chamado, pelos sociólogos, de “problema do negro”.
Os padrões estéticos de uma cultura autêntica são estilizações elaboradas a partir da vida comunitária. Uma comunidade de indivíduos brancos terá de erigir à categoria de ideal de beleza humana o homem branco. O ideal de beleza no Japão, na China, na Índia, reflete realidades étnicas, típicas de cada um desses países. Por outro lado, o tipo de beleza para as sociedades tribais, que se mantêm ainda íntegras do ponto de vista cultural, se desprende sempre de condições étnicas particulares. As divindades das tribos africanas são negras. No século XIV, o geógrafo Ibn Batouta deplorava o desprezo pelos brancos que demonstravam os negros sudaneses. A mesma aversão se registra entre os índios pele-vermelha. Os Bantus “não civilizados”, informa S. W. Molema, têm profunda aversão a toda pele diferente da sua. Os nativos da Melanésia, segundo Malinowski, acham os europeus horríveis. O pastor Agbebi refere que, para muitos africanos, o homem branco exala um odor fétido, desagradável ao olfato. E Darwin, que viajou muito e visitou diversas partes do mundo, escreveu: “… a ideia do que é o belo não é nem inata nem inalterável. Constatamos isso no fato de que homens de diferentes raças admiram entre suas respectivas mulheres tipos de beleza absolutamente diferentes” (Cf. BURNS, Alan. Le Prejugé de race et de couleur. Paris: Payot, 1949).
As categorias da estética social nas culturas autênticas (16) são sempre locais e, em última análise, são estilizações de aspectos particulares de circunstância histórica determinada. Tais categorias são assimiladas pelo indivíduo na vida comunitária. Aprende-se a definir o belo e o feio por meio da convivência quotidiana, do processo social. Cada sociedade, na medida que se conserva dotada de autenticidade ou de integridade, inculca, em cada um de seus membros, pela aprendizagem, padrões de avaliação estética, os quais reforçam as suas particularidades.
[NOTA DO AUTOR: Entende-se aqui “cultura autêntica” no sentido delimitado por Edward Sapir. “A cultura autêntica não é necessariamente alta ou baixa, é apenas inerentemente harmoniosa, equilibrada, a si mesmo satisfatória. É a expressão de uma atitude ricamente variada e entretanto de certo modo unificada e consistente em face da vida, uma atitude que vê o significado de qualquer elemento de civilização em sua relação com todos os outros. É, falando de modo ideal, uma cultura em que nada deixa espiritualmente de ter sentido, em que nenhuma parte importante do funcionamento geral trás, em si, senso de frustração, de esforço mal dirigido ou hostil. Não é um híbrido espiritual de elementos contraditórios de compartimentos estanques de consciência que evitam participar de uma síntese harmoniosa.” Cf. PIERSON, Donald. (organizador) Estudos de Organização Social, Martins, 1949, p. 291]
ESFORÇO
Todavia, o processo de europeização do mundo tem abalado os alicerces das culturas que alcança. A superioridade prática e material da cultura ocidental face às culturas não europeias promove, nestas últimas, manifestações patológicas. Existe uma patologia cultural que consiste, precisamente, sobretudo no campo da estética social, na adoção pelos indivíduos de determinada sociedade, de padrão estético exógeno, não induzido diretamente da circunstância natural e historicamente vivida. É, por exemplo, este fenômeno patológico o responsável pela ambivalência de certos nativos na avaliação estética. O desejo de ser branco afeta, fortemente, os nativos governados por europeus. Entre negros, R. R. Moton registrou o emprego do termo “branco” como designativo de excelência e o hábito de dizer-se de um homem bom que tem um coração “branco”. Este “desvio existencial” tem sido observado tecnicamente nos Estados Unidos, no Brasil e em toda a parte em que populações negras estão sendo europeizadas. O negro europeizado, via de regra, detesta mesmo referências à sua condição racial. Ele tende a negar-se como negro, e um psicanalista descobriu nos sonhos de negros brasileiros forte tendência para mudar de pele. O que escreve estas linhas teve ocasião de verificar, quando realizava uma pesquisa, o vexame com que certas pessoas de cor respondiam a um questionário sobre preconceitos raciais. Situação esta análoga à que é narrada por Kenneth e Mamie Clark numa pesquisa sobre preconceitos entre crianças negras norte-americanas de 3 a 7 anos, que consistia em solicitar-lhes que escolhessem, a diversos propósitos, bonecas escuras ou claras. De modo geral os autores registraram entre as crianças a preferência pelo branco. Vale notar que, algumas, em face de certas perguntas em que se tematizava a cor preta, se perturbaram a ponto de prorromperem em soluços, não suportando enfrentar o tema.
Ora, o Brasil, como sociedade europeizada, não escapa, quanto à estética social, à patologia coletiva acima descrita. O brasileiro, em geral, e, especialmente, o letrado, adere psicologicamente a um padrão estético europeu e vê os acidentes étnicos do país e a si próprio, do ponto de vista deste. Isto é verdade, tanto com referência ao brasileiro de cor como ao claro. Este fato de nossa psicologia coletiva é, do ponto de vista da ciência social, de caráter patológico, exatamente porque traduz a adoção de critério artificial, estranho à vida, para a avaliação da beleza humana. Trata-se, aqui, de um caso de alienação que consiste em renunciar à indução de critérios locais ou regionais de julgamento do belo, por subserviência inconsciente a um prestígio exterior.
Esta alienação do padrão de nossa estética social é particularmente notória quando se considera que foram sociólogos e antropólogos do Estado da Bahia, por assim dizer, de uma terra de negros, de um Estado em que o contingente de brancos é, ainda hoje, minoritário, foram eles que se extremaram no estudo do chamado “problema do negro no Brasil”.
Pode-se dizer, no caso, que se está diante daquilo que Erich Fromm chama socially patterned defect, de um defeito socialmente padronizado, que o indivíduo reparte com os outros, o que lhe diminui o caráter de defeito e o transforma em verdadeira virtude.
Talvez a sociologia da linguagem nos ajude a melhor compreender esta alienação da ciência social no Brasil, no que diz respeito ao negro.
Na época helenística, as camadas letradas das cidades gregas deixaram de falar e desprezavam as línguas locais e se esmeraram no uso de uma língua geral, a Koiné, que desfrutava de relevante prestígio internacional. É significativo que isto aconteceu quando aquelas cidades perderam a independência política (Cf. MEILLET, A., Aperçu d’une histoire de la langue grecque, Paris, Hachette. 1930).
Na época de Luís XIV, graças ao prestígio e ao luxo da corte, a língua francesa tornou-se também em todo o Velho Continente uma espécie de língua geral das pessoas distinguidas.
Ora, a alienação estética anteriormente assinalada é da mesma espécie da alienação linguística. Ambas resultam de uma falta de suficiência da comunidade, do auto-desprezo, de um sentimento coletivo de inferioridade, da renúncia a critérios naturais de vida, em benefício de critérios artificiais, dogmáticos ou abstratos.
O que nos interessa aqui é focalizar a questão do ângulo psicológico, enquanto socialmente condicionado, é atingir a sociologia funcional e científica do negro, inteiramente por fazer até agora, desde que os estudos da questão que se rotulam de sociológicos e antropológicos não são mais do que documentos ilustrativos da ideologia da brancura ou da claridade.
É certo que os modernos sociólogos brasileiros não definem mais o problema em termos de raça como fazia Nina Rodrigues em 1890, não o consideram expressamente como o problema de diluir o contingente negro a fim de assegurar a liderança do país pelos brancos. O problema é, em nossos dias, colocado em termos de cultura. Estima-se como positivo o processo de aculturação. Mas, repito, a aculturação, no caso, a uma análise profunda, supõe ainda uma espécie de defesa da brancura de nossa herança cultural, supõe o conceito da superioridade intrínseca do padrão da estética social de origem europeia. Do contrário, que sentido teria notar, registrar o negro até mesmo participando da classe dominante no pais? Que sentido teria continuar a achar “curiosíssimos”, como se escreve num dos relatórios para a UNESCO, os comportamentos do negro ainda quando exprimindo-se no plano artístico e científico? O “problema do negro”, tal como colocado na sociologia brasileira, é, à luz de uma psicanálise sociológica, um ato de má-fé ou um equívoco, e este equívoco só poderá ser desfeito por meio da tomada de consciência pelo nosso branco ou pelo nosso negro, culturalmente embranquecido, de sua alienação, de sua enfermidade psicológica. Para tanto, os documentos de nossa socioantropologia do negro devem ser considerados como materiais clínicos.
Tais documentos são frutos de uma visão alienada ou consular do Brasil, de uma visão desde fora do país. Embora redigidos por brasileiros, eles se incluem na tradição dos antigos relatórios para o Reino… ainda que, hoje, o Reino se metamorfoseie na UNESCO, sediada em Paris.
2
Os epígonos de nossa socio-antropologia do negro, desde Nina Rodrigues, glosam, aqui, as atitudes (principalmente as atitudes) e as categorias dos estudiosos europeus e norte-americanos, em face do assunto. Inicialmente, com Nina Rodrigues e Oscar Freire, os modelos foram europeus e, a partir de Arthur Ramos, até esta data, passaram a ser preponderantemente inspirados em livros norte- americanos. Assim, em princípio, o contingente negro foi visto como raça inferior a ser erradicada do meio nacional. Desde 1934, porém, os estudiosos passaram a distinguir raça e cultura e se orientaram, predominantemente, conforme o sistema de referência adotado pelos sociólogos ianques neste campo, sistema de referência em que são capitais as noções de “aculturação”, “homem marginal”, o par conceitual “raça-classe” e, ultimamente, a categoria ecológica de “área”, a de “estrutura”, a de “função”.
Via de regra, é escassíssima a originalidade metodológica e conceitual dos autores de tais estudos. Há perfeita simetria entre as produções dos autores nacionais e as dos estrangeiros.
PONTO DE PARTIDA
A tarefa que se impõe como necessária para conjurar esta mistificação do assunto – o negro no Brasil – é a de promover a purgação daqueles clichês conceituais, é a de tentar examiná-lo pondo entre parênteses as conotações de nossa ciência oficial, é a de tentar o entendimento do tema, a partir de uma situação vital, estando o investigador, nesta situação, aberto à realidade fática e, também, aberto interiormente para a originalidade.
Qual será a situação vital a partir de que seria melhor propiciada para o estudioso a compreensão objetiva do tema em tela? Ao autor, parece aquela da qual o homem de pele escura seja, ele próprio, um ingrediente, contanto que este sujeito se afirme de modo autêntico como negro. Quero dizer, começa-se a melhor compreender o problema quando se parte da afirmação – niger sum [sou negro]. Esta experiência, do niger sum, inicialmente, é, pelo seu significado dialético, na conjuntura brasileira em que todos querem ser brancos, um procedimento de alta rentabilidade científica, pois introduz o investigador em perspectiva que o habilita a ver nuanças que, de outro modo, passariam despercebidas.
Sou negro, identifico como meu o corpo em que o meu eu está inserido, atribuo à sua cor a suscetibilidade de ser valorizada esteticamente e considero a minha condição étnica como um dos suportes do meu orgulho pessoal – eis aí toda uma propedêutica sociológica, todo um ponto de partida para a elaboração de uma hermenêutica da situação do negro no Brasil.
Pois bem, a partir daí se tornam perceptíveis, de repente, as falácias estéticas da sócio-antropologia do negro no Brasil. Então, em primeiro lugar, percebo a suficiência postiça do sócio-antropólogo brasileiro, quando trata do problema do negro no Brasil. Então, enxergo o que há de ultrajante na atitude de quem trata o negro como um ser que vale enquanto “aculturado”. Então, identifico o equívoco do etnocentrismo do “branco” brasileiro ao sublinhar a presença do negro mesmo quando perfeitamente identificado com ele pela cultura. Então, descortino a precariedade histórica da brancura como valor. Então, converto o “branco” brasileiro, sôfrego de identificação com o padrão estético europeu, num caso de patologia social. Então, passo a considerar o preto brasileiro, ávido de embranquecer se embaraçado com a sua própria pele, também como ser psicologicamente dividido. Então, descobre-se-me a legitimidade de elaborar uma estética social de que seja um ingrediente positivo a cor negra. Então, afigura-se-me possível uma sociologia científica das relações étnicas. Então, compreendo que a solução do que, na sociologia brasileira, se chama o “problema do negro”, seria uma sociedade em que todos fossem brancos. Então, capacito-me para negar validade a esta solução.
Desde que se define o negro como um ingrediente normal da população do país, como povo brasileiro, carece de significação falar de problema do negro puramente econômico, destacado do problema geral das classes desfavorecidas ou do pauperismo. O negro é povo, no Brasil. Não é um componente estranho de nossa demografia. Ao contrário, é a sua mais importante matriz demográfica. E este fato tem de ser erigido à categoria de valor, como o exige a nossa dignidade e o nosso orgulho de povo independente. O negro no Brasil não é anedota, é um parâmetro da realidade nacional. A condição do negro no Brasil só é sociologicamente problemática em decorrência da alienação estética do próprio negro e da hipercorreção estética do branco brasileiro, ávido de identificação com o europeu.
À luz da sociologia científica, a sociologia do negro no Brasil é, ela mesma, um problema, um engano a desfazer – o que só poderá ser conseguido por intermédio da crítica e da autocrítica. Sem crítica e autocrítica, aliás, não pode haver ciência. A nossa sociologia do negro é, em larga margem, uma pseudomorfose, isto é, uma visão carecente de suportes existenciais genuínos, que oprime e dificulta mesmo a emergência ou indução da teoria objetiva dos fatos da vida nacional. Precisam os sociólogos empreender esta descida aos infernos que consiste em arguir, em por em dúvidas aquilo que parecia consagrado. Quem não estiver disposto a esse compromisso, arrisca-se a petrificar-se em vida, ou a falar sozinho, ou a permanecer na condição de matéria bruta do acontecer, em vez de tornar-se, como deveria, consciência militante desse acontecer, pela apropriação do seu significado profundo.
A sociologia do negro tal como tem sido feita até agora, à luz da perspectiva em que me coloco, é uma forma sutil de agressão aos brasileiros de cor e, como tal, constitui-se num obstáculo para a formação de uma consciência da realidade étnica do país.
A sociologia no Brasil tem sido, em larga margem, uma espécie de patois ou dialeto da sociologia europeia ou norte-americana. Terá, hoje, de procurar tornar-se uma autoconsciência do nosso processo de amadurecimento.
No que diz respeito às relações de raça, a sociologia no Brasil, para ganhar em autenticidade, terá de libertar-se da postura alienada ou consular, que a tem marcado e partir, na análise dos fatos, da assunção do Brasil.
Na verdade, utilizando observação de Sartre, pode-se dizer que, no Brasil, o branco tem desfrutado do privilégio de ver o negro, sem por este último ser visto. Nossa sociologia do negro até agora tem sido uma ilustração desse privilégio.
É minha convicção que desta mudança de orientação resulte, não um conflito insolúvel entre brancos e escuros, mas uma liquidação de equívocos de parte a parte e, consequentemente, uma contribuição para que a sociedade brasileira se encaminhe para o rumo de sua verdadeira destinação histórica – a de tornar-se, do ponto de vista étnico, uma conjunctio oppositorum [união de opostos].
NOVA FASE
A nova corrente de ideias sobre a condição do negro no Brasil, que se corporifica no Teatro Experimental do Negro (TEN), representa o amadurecimento ou a eclosão de ideias que estavam mais implícitas do que explícitas na conduta de associações, grupos ou pessoas desde o princípio da formação da sociedade brasileira.
Entretanto, pode se dizer sumariamente que os marcos desta evolução foram os trabalhos do africano Chico Rei que, em Minas Gerais, no princípio do século XVIII, organizou um movimento para alforriar negros escravos; as confrarias, os fundos de emancipação, as caixas de empréstimos, irmandades e juntas, instituições que recolhiam contribuições de homens de cor destinadas à compra de cartas de alforrias, as insurreições de negros muçulmanos no Estado da Bahia; os chamados quilombos, aldeamentos de negros fugidos, como a famosa República dos Palmares, em Alagoas, verdadeiro Estado de negros; o movimento abolicionista em que sobressaíram Luiz Gama e José do Patrocínio, intelectuais negros, e outras iniciativas e associações como o Clube do Cupim, em Recife, as Frentes Negras, de São Paulo e da Bahia…
Salva-se, em todas elas, o esforço da camada pigmentada, sozinha ou aliada com patrícios claros, como foi o caso do abolicionismo, na busca de uma condição humana para o negro, em que ele pudesse ser sujeito de um ato de liberdade.
Os antecedentes teóricos mais próximos da nova posição podem ser identificados em duas figuras de intelectuais brasileiros, ambos, aliás, brancos. Trata-se de Joaquim Nabuco e Álvaro Bomilcar, este último um nome praticamente esquecido.
Joaquim Nabuco, um dos líderes do abolicionismo, concebeu, desde 1883, a fase dinâmica do tratamento de nossa questão negra, em termos que podem ser tidos como atuais ainda. Com efeito, este notável estadista escreveu em seu livro O Abolicionismo:
“Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância. O processo natural pelo qual a Escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo durou todo o período do crescimento, e enquanto a Nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade (o grifo é meu) cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos” (O Abolicionismo, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1938, pág. 5).
Álvaro Bomilcar pode ser considerado como um pioneiro da nova concepção das relações étnicas no Brasil. Em 1911, escreveu uma série de artigos, na imprensa da capital da República, depois reunidos no livro O Preconceito de Raça no Brasil (1916), em que põe à mostra o culto da brancura vigente nas classes dominantes do Brasil. Álvaro Bomilcar organizou mesmo um movimento social e político, em cujo programa se delimitava com clareza a tarefa de liquidar os constrangimentos entre os brasileiros claros e escuros. Se, do ponto de vista da técnica sociológica de hoje, aquela obra de Álvaro Bomilcar é precária, nem por isso deixa de ser o documento mais importante do diagnóstico cientifico de nossa questão racial, na fase republicana.
O livro O Preconceito de Raça no Brasil é um ensaio lucidíssimo sobre o sentimento coletivo de inferioridade, que Álvaro Bomilcar discernia na sociedade brasileira e que lhe fazia observar que a despeito das diversas vezes que as ciências se têm enriquecido com o concurso intelectual desse grande mestiço – que é o brasileiro – o nosso critério academicista é que o sábio só existe na Europa. Este critério é o que tem dificultado a elaboração da autoconsciência da realidade nacional, inclusive da realidade étnica do país.
Neste sentido, escrevia Bomilcar:
“No Brasil, pondo de parte Sylvio Romero e alguns pioneiros da nossa literatura, de rara combatividade, quedamo-nos inertes à espera que um qualquer sábio da Europa venha dizer de nós aquilo que porventura lhe ocorra, no sentido dogmático; ou ainda o que o critério de uma permanência de algumas semanas, na capital da República, lhe possa sugerir de agradável e interessante.”
E perguntava em 1911: “Quem terá a coragem para escrever a verdadeira sociologia, a única que nos convém: a sociologia brasileira?” (Vide BOMILCAR, A. op. cit., p. 51).
O Teatro Experimental do Negro, fundado em 1944 por um grupo liderado por Abdias Nascimento, é, no Brasil, a manifestação mais consciente e espetacular da nova fase, caracterizada pelo fato de que, no presente, o negro se recusa a servir de mero tema de dissertações “antropológicas”, e passa a agir no sentido de desmascarar os preconceitos de cor. O TEN patrocinou as Convenções Nacionais do Negro, a primeira em São Paulo (1944) e a segunda no Rio (1947); a Conferência Nacional do Negro (Rio, 1949) e o I Congresso do Negro Brasileiro (Rio, 1950).
Fundamentado em bases científicas, de caráter sociológico e antropológico, o TEN nunca foi compreendido pelos prógonos da ciência oficial, que, embora não o hostilizassem francamente, sempre se conduziram em face do empreendimento com desconfiança. No fundo, percebiam que o TEN representava mudança de 180 graus na orientação dos estudos sobre o negro.
Vale a pena insistir neste ponto. O TEN foi, no Brasil, o primeiro a denunciar a alienação da antropologia e da sociologia nacional, focalizando a gente de cor, à luz do pitoresco ou do histórico puramente, como se se tratasse de elemento estático ou mumificado. Esta denúncia é um leitmotiv de todas as realizações do TEN, entre as quais o seu jornal Quilombo, a Conferência Nacional do Negro (1949) e o I Congresso do Negro Brasileiro, realizado em 1950.
Os dirigentes do TEN sabiam e sabem que, de modo geral, a camada letrada e os “antropólogos” e “sociólogos” oficiais não estavam, como ainda não estão, preparados mentalmente para alcançar o significado da iniciativa.
O TEN desmascarou, de maneira aliás muito polida, a antropologia oficial. O I Congresso do Negro Brasileiro marca definitivamente a nova fase dos estudos sobre o negro. Com a plena consciência disto, escreveu Abdias Nascimento, diretor-geral do TEN, em Quilombo nº 5 (janeiro de 1950):
“O I Congresso Negro pretende dar uma ênfase toda especial aos problemas práticos e atuais da vida da nossa gente de cor. Sempre que se estudou o negro, foi com o propósito evidente ou a intenção mal disfarçada de considerá-lo um ser distante, quase morto, ou já mesmo empalhado como peça de museu. Por isso mesmo, o Congresso dará uma importância secundária, por exemplo, às questões etnológicas, e menos palpitantes, interessando menos saber qual seja o índice cefálico do negro, ou se Zumbi suicidou-se realmente ou não, do que indagar quais os meios de que poderemos lançar mão para organizar associações e instituições que possam oferecer oportunidades para a gente de cor se elevar na sociedade. Deseja o Congresso encontrar medidas eficientes para aumentar o poder aquisitivo do negro, tornando-o assim um membro efetivo e ativo da comunidade nacional”.
Naturalmente, as posições teóricas e práticas assumidas no meio brasileiro, pelos representantes da nova fase, não podem ser consideradas definitivas. Nelas há muito o que discutir e já se discernem algumas incorreções, contradições e até erros de tática e estratégia a serem evitados daqui por diante. Mas a autocrítica deste movimento, já iniciada, é outro assunto. O que até aqui se escreveu pretende ser apenas um relatório verídico e honesto da situação dos estudos sobre o negro no Brasil.