No debate entre os candidatos a prefeito de São Paulo, promovido pela Band no último dia 1º, Guilherme Boulos (PSOL) escolheu, em um determinado bloco, fazer sua pergunta para Márcio França (PSB):
BOULOS: Um dos grandes problemas, um dos grandes dramas do nosso país é a violência contra a mulher. Agora, na pandemia, aqui em São Paulo, aumentou 45% os casos de violência contra a mulher. Eu vi que no dia 10 de abril de 2018, você disse que a polícia não tem que se envolver nisso. Eu acho estranho, mas acho que isso ajuda a explicar porque agora você foi correr atrás do Bolsonaro, o que é uma coisa lamentável. Márcio, sua política é essa, é lavar as mãos em relação à violência contra as mulheres em São Paulo?
Guilherme Boulos se referia a um discurso de Márcio França, pouco depois de tomar posse como governador de São Paulo (o titular, Geraldo Alckmin, de quem França era vice-governador, renunciara para concorrer à Presidência da República).
Nesse discurso, Márcio França, falando diante de secretários de Segurança Pública de todos os Estados do país, disse o seguinte:
“Aqui em São Paulo (cidade), por exemplo, quase 70% das ocorrências noturnas são desinteligência. Quando um casal está brigando, não necessariamente precisaria ter um PM ou dois PMs com viatura, revólver. A gente vai encontrar um formato para ajudar nessa solução.”
Pode-se concordar ou discordar do que disse Márcio França.
O que não se pode é dizer – como disse Boulos – que a posição manifestada por França, no discurso de abril de 2018, foi a de que “a polícia não tem que se envolver” no combate à violência contra a mulher.
Ou, pior, o que não se pode é dizer – como disse Boulos – que a posição de Márcio França, expressa nesse discurso, foi a de “lavar as mãos em relação à violência contra as mulheres em São Paulo”.
Boulos, portanto, forçou a barra, atribuindo a França algo que ele não fez – e não disse.
Para ser inteiramente claro: Boulos falsificou a posição de seu adversário.
REALIDADE E VERDADE
Os leitores sabem a nossa opinião sobre os acenos a Bolsonaro do candidato Márcio França. Não achamos que tais tentativas de angariar votos aproximando-se do pior inimigo que São Paulo e o Brasil têm hoje, possam ser boas, quer para a cidade, quer para o Estado, quer para o país, quer para o próprio Márcio França, seja para a sua candidatura, seja para a sua biografia (v., por exemplo, HP 09/08/2020, Inaugurações perigosas, HP 19/08/2020, Márcio França apresenta suas afinidades com Bolsonaro e HP 08/09/2020, Márcio França oferece moeda de troca a Bolsonaro).
Mas isso não quer dizer que seja lícito atacar Márcio França por aquilo que ele não fez, por aquilo que não é verdade – isto é, distorcendo os fatos, mentindo sobre eles para atacar o concorrente.
A realidade não pode ser substituída por uma “narrativa”.
A verdade, afinal de contas, existe.
Não é possível, portanto, para democratas e patriotas, passar por cima do comportamento do candidato Guilherme Boulos. Caso contrário, estaremos avalizando a selva selvagem de Bolsonaro e suas milícias (nesse caso estamos falando das milícias “digitais” e suas fakenews, isto é, suas falsificações, suas mentiras). Se Boulos pode fazer isso e passar impune, por que Bolsonaro não poderia?
Além do que, não é necessário recorrer a isso. Seria (e é) possível criticar Márcio França por aquilo que realmente ele fez – por exemplo, os acenos a Bolsonaro – ou por eventuais pontos do que pretende, se eleito, fazer.
De qualquer forma, se Boulos precisa recorrer a tal recurso, aparecerá ao público, tarde ou cedo, como um mero alpinista político – o que não o ajudará a crescer no eleitorado, aliás, por uma boa razão: que garantia os eleitores têm do que fará, se tivesse chance de ser eleito?
Nos últimos anos, o que não faltou neste país foram estelionatários eleitorais. Conseguiram trazer muita infelicidade ao Brasil, a seus Estados e municípios. Mas o destino desses estelionatários foi muito mais infeliz.
Voltemos, então, ao debate do último dia 1º, entre os candidatos a prefeito de São Paulo.
VIOLÊNCIA E MENTIRA
A resposta de Márcio França à pergunta tendenciosa de Guilherme Boulos foi a seguinte:
FRANÇA: Eu acho engraçado o Boulos, porque ele reclama do Bolsonaro, ele reclama de fakenews, mas também colabora com isso. Onde é que você leu isso? De onde você tirou isso? Você sabe? Fala aí, Boulos, de onde você tirou? (…) Deixa eu explicar, Boulos: a Polícia Militar, ela tem como função, entre outras coisas, se relacionar com desentendimentos. O que eu disse, e vou repetir, é que nós não precisaríamos de policiais para poder fazer isso, nós poderíamos ter outras pessoas para fazer isso. E aí, o entendimento de pessoas com uma certa dose de malícia, levaram para esse lado que você levou aí.
Podemos discordar de Márcio França quanto à estratégia eleitoral que, no momento, escolheu. Mas ele tem razão quanto ao que disse Boulos: é a típica fakenews, em que se pega um pequeno pedaço da realidade – ou alguns fragmentos da realidade – para fabricar um monstrengo que nada tem de real.
A fakenews é sempre um frankenstein. Caso contrário, não seria possível fazer alguém acreditar nela, exceto os completamente obtusos – e somente, entre estes, aqueles propensos a acreditar em qualquer coisa.
Boulos sabe perfeitamente disso. A prova é a sua réplica a Márcio França, no mesmo debate:
BOULOS: Olha, gente, ninguém aqui precisa acreditar em mim. Vai lá, vai agora no Google, digita ‘Márcio França + feminicídio’, que vocês vão ver todas as matérias que ele acabou de dizer que é fakenews.
O “ninguém aqui precisa acreditar em mim” tem a óbvia função de desviar dele a falsificação que acabara de cometer. É um modo de dizer: “não sou eu que estou falsificando”, no momento seguinte a que ele mesmo perpetrou a falsificação.
Mas esse recurso tem um problema: somente funciona se for possível passar uma falsificação maior ainda.
Por quê?
Porque o ouvinte ou o leitor é submetido, aqui, a duas falsificações. No caso, é preciso:
1) que o incauto acredite que Márcio França disse o que não disse;
2) e, também, que não foi Boulos que disse aquilo que França não disse.
Mas, para soldar essas duas falsificações, é necessário uma terceira falsificação. Sem esta, as outras duas permanecem desconjuntadas, sem a mínima aparência de solidez diante de quem se quer enganar.
Assim, Boulos substituiu “briga de casal” – que era o assunto mencionado no discurso de Márcio França, em 2018 (“Quando um casal está brigando, não necessariamente precisaria ter um PM ou dois PMs com viatura, revólver”) – por “feminicídio”.
Como se uma briga entre marido e mulher fosse a mesma coisa que assassinar a mulher.
Daí, o que disse Boulos:
“Vai lá, vai agora no Google, digita ‘Márcio França + feminicídio’, que vocês vão ver todas as matérias que ele acabou de dizer que é fakenews.”
Porém, Márcio França não disse que a PM não devia se envolver com os feminicídios – que são assassinatos, portanto, são uma tarefa da polícia, militar e/ou civil.
O que França disse foi que, nos casos de briga de casal e outros desentendimentos, “não necessariamente precisaria ter um PM ou dois PMs com viatura, revólver”, para atender as ocorrências.
Portanto, recomendar que se procure no Google por “Márcio França + feminicídio” é falsificar a posição do adversário – até porque Boulos não é idiota: sabe muito bem que no Google é possível pescar qualquer coisa, desde botinas velhas até esturjão do Mar Cáspio, da mesma forma que é possível relacionar qualquer coisa, até mesmo “São Francisco de Assis” e “pedofilia”.
Entretanto, aqui, o mais interessante é que a matéria mais procurada – e acessada – no Google depois da recomendação de Boulos, desmente Boulos.
Trata-se, precisamente, da matéria que Boulos distorceu para fazer a pergunta a França – isto é, aquela em que se baseou.
O artigo, escrito por Anna Virginia Balloussier, publicado na “Folha de S. Paulo” de 10/04/2018 (exatamente a data mencionada por Boulos em sua pergunta a Márcio França), é intitulado “Márcio França diz que ‘briga de casal’ sobrecarrega polícia e é criticado por especialistas”.
O título, portanto, assim como o texto, não confunde “briga de casal” com “feminicídio”. Essa troca é, inteiramente, por conta de Boulos.
Na matéria de Anna Virginia Balloussier sobre o discurso do então governador Márcio França, a professora Lourdes Maria Bandeira, da UnB e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher, diz: “A meu ver ele [França] está equivocado, pois a violência contra a mulher, quando ocorre, demanda que a área da segurança, no caso membro da DEAM [Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher] esteja suficientemente equipada para ir ao encontro da mulher agredida e tomar as providências necessárias, respeitando suas necessidades, naquele momento” (v. “Folha de S. Paulo”, 10/04/2018, art. cit.).
Márcio França dissera que “não necessariamente precisaria ter um PM ou dois PMs com viatura, revólver” para atender brigas de casal. Em seguida, continua a matéria da “Folha de S. Paulo”:
“Num ponto ela concorda com França: ‘Não se trata de policial armado ou similar, mas de policial qualificado para atuar adequadamente. Essa compreensão de uso da força em situações de violência contra a mulher é descabida’” (cf. “Folha de S. Paulo”, 10/04/2018, art. cit., grifo nosso).
Essa é a matéria na qual Boulos se baseou, na sua pergunta a Márcio França, distorcendo-a, como se fosse prova do apoio de seu concorrente ao acobertamento dos assassinos de mulheres.
Existe outro nome para isso que não seja fraude?
Existe, mas são todos muito menos educados.
Interessante é que a proposta de Boulos para combater a violência contra a mulher em São Paulo é “ampliar a Patrulha Maria da Penha”.
A Patrulha Maria da Penha, um programa da PM, foi instituída em São Paulo pela Lei nº 17.260, aprovada em março deste ano, de autoria do deputado Tenente Nascimento, pastor evangélico eleito pelo PSL na onda bolsonarista de 2018…
Antes de continuarmos, o leitor poderá assistir o trecho que citamos do debate, entre Márcio França e Guilherme Boulos, no seguinte vídeo:
LIMITES HUMANOS
Já fizemos esta observação antes, mas não há problema em repeti-la, uma vez que é atual, como mostrou o debate do dia 1º: nem na guerra, o mais sem limite dos acontecimentos humanos, vale tudo.
Se valesse tudo, não existiriam criminosos de guerra.
Portanto, até na guerra há limites que não podem ser ultrapassados – e, quando o são, os transgressores merecem o que os nazistas obtiveram no Tribunal de Nuremberg.
Se é assim na guerra, quanto mais em uma campanha eleitoral.
Nós sabemos para onde conduziu a falta de limites em uma campanha eleitoral.
Se não achamos lícita a aproximação – ou a tentativa de aproximação – do candidato do PSB a Bolsonaro, também não podemos achar lícito que se minta a respeito dele, como se fosse aceitável a difamação e a calúnia.
Não há, nessa opção pela mentira, pelas hoje chamadas “fakenews”, nada que seja “de esquerda”. Pelo contrário, tal jogo sujo é caracteristicamente aquele da direita mais extremada, isto é, aquele do fascismo, aquele do nazi-fascismo.
Não é válido inventar uma “narrativa”. Porque a verdade existe – e sempre, ao final, prevalecerá.
A condição para isso é que existam homens e mulheres honrados.
Mas estes sempre existirão – enquanto a humanidade existir.
CARLOS LOPES