No texto que publicamos hoje, o poeta Sidnei Schneider examina uma questão capital para a nossa literatura – sobretudo porque, até hoje, pouco estudada: as relações da obra de Guimarães Rosa com o nacional-desenvolvimentismo, que a partir da Revolução de 30 construiu o Brasil industrial e moderno (exatamente este que, hoje, e já tem algumas décadas, faz-se todo o possível para destruir – e, mesmo assim, ele resiste).
É quase forçoso lembrar que Lenin, em outra época, achou necessário esclarecer os vínculos da obra de Tolstoy – e do próprio Tolstoy – com a Revolução Russa, que ainda não se consumara. “Lev Tolstoy, espelho da Revolução Russa”, de 1908, é um artigo que ficará na História exatamente pelo resgate das raízes nacionais da obra do grande escritor, que eram indispensáveis à revolução na Rússia, apesar de todas as incompreensões de Tolstoy diante desta mesma revolução.
Voltando ao artigo de Sidnei Schneider, além da importância do tema, há outra consideração decisiva: a partir do momento em que a crítica literária pareceu se recolher aos ambientes acadêmicos, em geral escassos de oxigênio necessário ao arejamento do cérebro, a polêmica foi abafada. Cada suposto crítico, em geral, prefere, com exceções conhecidas, não entrar em conflito intelectual, como se fosse possível conservar alguma verdade, ignorando as outras ideias. Em geral, aliás, isso é característica de quem não se preocupa com a verdade, nem ao menos pretende que aquilo que escreve seja ou leve a qualquer verdade, e nem ao menos acredita que possa contribuir para a construção ou descoberta de alguma verdade.
Essa forma de extremo niilismo vem imperando, nos últimos tempos, em nosso país, com resultados desastrosos. Para os mais jovens talvez seja difícil percebê-lo, porém, basta examinar alguma coleção de crítica da nossa melhor época – a que vai, digamos, de João Ribeiro, Tristão de Ataíde e Agripino Grieco até, talvez, Álvaro Lins, Nelson Werneck Sodré e Otto Maria Carpeaux – para percebermos a hedionda mediocridade de certa crítica acadêmica (ou tributária do academicismo) da atualidade.
No entanto, estamos, rigorosamente, no fim de um período de contrarrevolução no campo das ideias. O artigo de Sidnei tem mais este outro mérito: o de combater aquele combate indispensável ao aclaramento das ideias, sem o que nem é possível falar em progresso – quanto mais em revolução.
C.L.
SIDNEI SCHNEIDER
Acerca de Grande Sertão: Veredas, o romance de Guimarães Rosa publicado em 1956, pergunta a “Folha de S. Paulo”: “Então o livro é uma crítica ao desenvolvimentismo?” O crítico Silviano Santiago responde: “A mais radical já feita” (FSP, 25.03.2017). Santiago resvala e a “Folha” aproveita para reiterar sua triste posição histórica. Por que haveria Guimarães Rosa de combater o desenvolvimentismo, que soergueu o Brasil à condição de país que mais cresceu no mundo ocidental, média de 6,7% ao ano a partir de 1930, por cinco décadas? (Cf. Eustáquio Reis, Fernando Blanco, Lucilene Morandi, Mérida Medina e Marcelo de Paiva Abreu, Século XX nas Contas Nacionais, in Estatísticas do Século XX, Rio de Janeiro, IBGE, 2006)
O nacional-desenvolvimentismo se baseia nas energias e forças da Nação, ou seja, no poder criativo do povo brasileiro para construir o seu país, não na submissão aos interesses de bancos e monopólios, geralmente externos, e por isso foi violentamente deposto em 1964, após as tentativas no essencial malogradas de 1954 e 1961. O Brasil que este projeto botou de pé não é fácil de destruir, na verdade isso é impossível, apesar do delírio dos setores mais entreguistas da ditadura e da sanha destrutiva e entreguista dos governos FHC e Dilma-Temer, principalmente, pois também existe a continuada disposição popular de defender a envergadura da obra, destituir os traidores, e ir além.
Ao elevar o povo do sertão mineiro à literatura de primeira categoria, Guimarães Rosa, evidentemente, contribuiu para o desenvolvimento da nação e dos seus valores, inclusive por sugerir que também lá o progresso e o Estado deveriam chegar. Dizer que ele fez, através de Grande Sertão: Veredas, a mais radical crítica ao desenvolvimentismo, é forçar muito a barra, querer colocá-lo ao lado daquela aristocracia rural submissa até os cueiros ao império financeiro internacional, como historicamente é a “Folha”, o Eugênio Gudin e sua involução posterior, o Bob Fields.
Santiago diz que é “um romance que, na verdade, não se apoia na história”, contraditoriamente, inclusive, ao que intenta defender e que acabamos de destacar. Apoia-se, então, no quê: na vida não vivida pelo autor, no mundo em que ele não viveu? Nem o Espírito Santo escreve livros a-históricos, como evidenciam as Sagradas Escrituras. Que as obras de arte podem transcender o seu tempo, obviamente é outra coisa. O crítico, no entanto, ainda declara: “você vê que no livro não há nenhuma data”. A justificativa não soa apenas risível, mas também ofensiva à inteligência dos leitores. Vasculhemos, então, desde Homero, desde as tabuinhas de barro dos sumérios, à procura de obras que possuam data no seu interior, como se a existência ou não de data conferisse o sentido histórico a uma obra!
Mas por que Santiago defende isso, além de evidenciar que sua crítica literária traz embutida uma visão irreal e arquiplatônica de mundo? É que sem negar a única realidade da época, ou seja, a engendrada pelo nacional-desenvolvimentismo, ele não poderia falar em abstrato de Grande Sertão: Veredas, não poderia dizer qualquer coisa que lhe parecesse de acordo com o seu modo peculiar de ver. E neste, não são principalmente as questões estéticas ou filosóficas que avultam, mas as políticas, bastante conservadoras.
Antes de esclarecer esse ponto, note-se que sua visão política, ao implicar no modo de ver e definir a argumentação, não estará menos apoiada na história, pois se configura apenas enquanto resposta à realidade, através de fuga desta última e combate à concepção que mais desenvolveu o país no sentido do progresso e do bem estar dos brasileiros, e, o que é ainda mais importante e essencial, que pode, crítica e criativamente, desenvolvê-lo hoje. Obviamente aquela, e isto Santiago não consegue dizer abertamente, concebida e implementada mais do que ninguém por Getúlio, aprimorada pelos nossos melhores intelectuais, levada adiante a seu modo por Juscelino, galhardamente por Jango, e que iluminou a avançada Constituição de 1988. Não tiraremos o Brasil do poço em que foi jogado por Dilma e Temer, abeirando-nos de posições como a de Santiago. Quando o desenvolvimento, os direitos do povo e o que foi construído pelo esforço e a inteligência autóctones, sobretudo a Petrobrás, estão enormemente ameaçados por Temer-Meirelles como antes estavam por Dilma-Levy, Santiago precisa fazer piruetas intelectuais sobre o passado para ocultar ou defender sub-repticiamente sua real posição.
Diz ele que o romance de Guimarães Rosa é “uma alegoria da nação toda vez que ela passa por um movimento desenvolvimentista sem se preocupar com as questões humanas e sociais”. Como pergunta um amigo, onde estaríamos nós, a imensa maioria dos brasileiros, se não fosse o nacional-desenvolvimentismo, morrendo na roça atrás do curso de um boi? Durante o período de elaboração do romance, com o nacional-desenvolvimentismo no poder, era exatamente o contrário que acontecia, um extraordinário avanço das questões humanas e sociais, não em abstrato, mas concretamente, com o governo nacional provendo as condições e os recursos, antes enviados para fora.
Assim, após o retorno de Getúlio à Presidência em 1950, através de ampla votação popular, houve a criação da Petrobrás, levada a termo entre 1951 e 1953; a nacionalização das reservas minerais e energéticas em 1953; a nova lei da remessa de lucros, para conter o saque das multinacionais; as tratativas de fundação da Eletrobrás, para levar a luz elétrica a todo país e industrializá-lo; o aumento de 100% no salário mínimo em 1954, de larga repercussão social, aquecendo a economia; já tendo existência as alavancadoras CSN e Vale, hoje privatizadas. Na área cultural e humana, ao longo de sua trajetória pública, Getúlio valorizou o samba e a cultura popular, antes caso de polícia; a música nas escolas através dos cantos orfeônicos, concebidos por Villa-Lobos; a difusão da informação e da cultura através da Rádio Nacional, que tinha o maior alcance do mundo à época; a arquitetura dos jovens Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, que projetaram o Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro; as artes plásticas, exemplificadas pelos painéis de Cândido Portinari na mesma edificação; a literatura e os escritores, ao integrar ao governo nomes como Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, José Lins do Rego e Mário de Andrade. Sem esquecer que foi quem instaurou o voto feminino e universal, criou uma legislação trabalhista das mais avançadas do mundo, a Consolidação das Leis do Trabalho, hoje ameaçada por Temer, com férias, 13º salário e demais direitos.
Mais explícita do que a arenga de Santiago foi a tabela de William Waack com Carlos Alberto Sardenberg no Jornal da Globo de 07.03.2017. Postularam eles que a queda brutal de -9,1% do PIB per capita, entre 2014 e 2016, seria consequência do “nacional-desenvolvimentismo que nos derrotou”, como disse Waack, referindo-se ao governo Dilma. Repare-se no grau da cavilação, como se a prática neoliberal do governo dilmista, apoiada por Lula e Temer – juros altos, que arruinaram a produção e o comércio, inclusive o externo; desembolso de 1,7 trilhão de reais em juros a bancos e rentistas; privilégios a monopólios, eikes e odebrechts; cortes nos investimentos públicos; cortes na saúde e educação; ataque ao seguro-desemprego, às viúvas e aos pescadores; concepção da reforma da previdência e da terceirização; entrega do pré-sal à Shell e Total; privatização de aeroportos, hidrelétricas e portos; roubalheiras; enfim, políticas que afundaram o país e resultaram em 24,3 milhões de pessoas em busca de trabalho ou fazendo bico de poucas horas (IBGE, 4º trim. 2016) – tivesse algum átomo a ver com o nacional-desenvolvimentismo.
Obviamente, não é o destituído e execrado governo petista que buscam atacar. Notórios porta-vozes do que há de pior no mundo das finanças, sabem muito bem qual é a concepção de país a combater, aquela que consideram inimiga dos seus amos. Também por isso, historicamente sempre usaram os líderes petistas, que a execravam tanto quanto eles, para melhor falar em seu nome.
Voltando a Santiago, neste artigo que se tornou mais político do que literário em função das implicações subjacentes, sua posição causou espécie também entre escritores e professores de literatura, principalmente quando afirma que o uso que Guimarães Rosa faz da pontuação é aleatório: “comparo com a pintura de Jackson Pollock, você vai distribuindo [a pontuação] pela página. Guimarães Rosa ordenou a fala do jagunço da maneira que ela poderia ser ordenada, que é pelo acaso”.
Não é à toa que Santiago se lembra do abstracionista norte-americano Jackson Pollock, pois é tão abstrato quanto este. Pollock subia numa escada e salpicava tinta ao acaso na tela estirada no chão e a isso se resumiu sua pintura. Inteiramente ultrapassada, foi e é enaltecida para suprimir ou secundarizar formas artísticas novas e relevantes, sobretudo no chamado Terceiro Mundo. Nem vamos entrar no curioso fato de ter sido financiada e promovida internacionalmente pela CIA, como já provou o documentado livro da pesquisadora britânica Frances Stornor Saunders (Quem pagou a conta? a CIA na guerra fria da cultura, Rio de Janeiro: Record, 2008, 560 p.). Pollock simplesmente errou de profissão, algumas de suas telas se parecem a estampas de cortinas, caso típico de pendor decorativo mal aproveitado.
Pois bem, Santiago acha que Guimarães Rosa, um dos mais precisos escritores do Brasil, ao buscar reproduzir as pausas não gramaticais da linguagem oral do sertão mineiro, salpicava vírgulas, travessões e pontos finais no texto como um Pollock.
Em suma, se a entrevista era para divulgar seu livro sobre Guimarães Rosa, resultou bela antipropaganda.
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Guimarães Rosa dizia “viver é perigoso”. Euclides da Cunha dizia “viver é adaptar-se”. Um padre que também escreveu livros dizia que “viver é sagrado”. Aquele médico e aquele engenheiro foram lógicos. O padre foi ontológico. Aqueles estão como que “imortalizados”, este como que esquecido. Euclides e Guimarães competentíssimos. Um deles detentor da mais explosiva engenharia de expressão escrita. Talvez, Deus o sabe, estes 2 acadêmicos foram como que transmutados por este mundo sedutor e pesado cobrador numa espécie de “fenonhos”, mistura de fenômenos com medonhos. Toda a herança destes 2 nobres compatriotas está transbordada de coisas do mundo e esvaziada do sentido último da existência. Faltou um verniz, o verniz da Verdade. Isto não invalida ou diminui suas heranças. Poder-se-iam ser grandes legados. Sem o saberem estes 2 irmãos diplomados foram fulminantemente horizontais. Todo ser humano é um mistério. Resta-nos lamentar que a transcendência da Verdade não os verticalizou, não os lubrificou. Eu quero apostar por exemplo que Euclides ainda vivo nos 50 anos teria escrito A Amazônia e iluminado pelo Universo faria desaparecer o estrelato de Os Sertões…:)
Somente por curiosidade, leitor: você acha possível uma grande obra literária que não se baseie – e, portanto, revele – um elemento essencial, ou seja, uma verdade?