CARLOS LOPES
(HP 11/11/2015)
A entrevista do editor Gumercindo Rocha Dorea, no último sábado, na “Folha de S. Paulo”, é, como diziam as tias antigamente, muito instrutiva.
Principalmente em tempos onde tenta-se passar a submissão à metrópole como se fosse patriotismo ou algo assemelhado – e se tenta passar o golpismo governista mais despudorado, como se fosse defesa contra um golpe (este, sim, uma fantasia fabricada para justificar todos os vilipêndios contra o país).
Há cinco décadas atrás a situação era diferente. Mas havia coisas muito semelhantes.
Da entrevista do editor, ressalta, por exemplo, a falsidade do “nacionalismo” dos integralistas.
Gumercindo era – e ainda é – um “águia branca”. O termo hoje está em desuso e esquecido, mas foi uma das invenções de Plínio Salgado para batizar a “nova geração” fascista – e tentar evitar o apelido com que os “integralistas” entraram para a História: “galinhas verdes”, devido ao uniforme que usavam na década de 30.
Sobre a falsidade do “nacionalismo” integralista, resta observar que os verdadeiros nacionalistas, que havia no integralismo (Anísio Teixeira, Álvaro Vieira Pinto, Dom Hélder Câmara, Abdias do Nascimento, etc.), romperam com ele e empreenderam trajetória para a esquerda. No integralismo, restaram os fascistas (Gustavo Barroso, Raimundo Padilha, Miguel Reale, Plínio Salgado) e um fascismo dependente – que fazia apologia do agrarismo, anti-industrial e submisso às metrópoles imperialistas (à Alemanha, antes da II Guerra Mundial, e aos EUA, logo depois).
Em alguns trabalhos, existe a afirmação de que, após a II Guerra, Plínio Salgado tentou, no Partido de Representação Popular (PRP), se “desqueimar” de seu anterior apoio a Hitler e Mussolini. Quem viveu aquela época sabe que isso não é verdade, até porque era impossível. E, além de impossível, o führer integralista não fazia a menor questão: até cultivava uma suposta semelhança física com Hitler. Fora isso, pelo menos no Rio de Janeiro, ele, cada vez mais imerso no alcoolismo, era conhecido como “Plínio Tômbola”, devido às rifas (tômbolas) que promovia – e que ninguém jamais ganhava…
Era uma alma penada – inclusive no Congresso Nacional, onde foi deputado federal por São Paulo.
Depois de apoiar a ditadura e todas as perseguições que se seguiram ao golpe de 1964, que começou em Minas com a “Operação Popeye” (que nome!) de um integralista – Mourão Filho -, Salgado teve seu partido dissolvido pela própria ditadura, que enviou Mourão Filho (aquele que declarou: “sou uma vaca fardada”) rapidamente para a aposentadoria e para o cinzento esquecimento.
O EDITOR
Mas, voltemos a Gumercindo Rocha Dorea, um dos poucos que considerava, lá pelo início da década de 60, que Plínio Salgado era um verdadeiro gênio.
Hoje, poucos ouviram falar na “Edições GRD” – o nome vem das iniciais de seu dono – embora ela ainda exista, mas não com o destaque do final da década de 50 até a segunda metade da década de 60 do século XX, quando publicou autores como Dinah Silveira de Queiroz, Macedo Miranda, José Cândido de Carvalho, José Alcides Pinto, Adonias Filho, Jorge Medauar, Nélida Piñon, Maria Alice Barroso, Mario Faustino, Rubem Fonseca, Edna Savaget, Zora Seljam, Antonio Olinto e até Abdias do Nascimento – para citar somente os mais conhecidos.
A editora também era conhecida pelos livros de ficção-científica. Lembro que, além de Ray Bradbury, Robert Heinlein e Walter M. Miller Jr., a GRD publicava autores brasileiros do gênero. Fausto Cunha – uma boa alma, escritor e crítico talentoso, mesmo quando discutível – lá publicou o seu “As Noites Marcianas”.
Esse catálogo deu merecido prestígio à editora de Gumercindo, hoje com 91 anos.
No entanto, além disso, a GRD publicava uma aparentemente interminável enxurrada de livros que eram mera e grosseira propaganda anticomunista, uma espantosa baba reacionária, em geral assinada por norte-americanos ou supostos “russos que escolheram a liberdade” (a expressão é devida a um traidor russo que passou para os EUA, assinou um livro com o título “Eu escolhi a liberdade” – e depois suicidou-se em Nova Iorque).
Esses livros, em geral, eram muito chatos. Era preciso ser muito bitolado para chegar ao final de um deles. Lembro que comecei a ler alguns, mas nunca cheguei ao fim de nenhum – mesmo numa época em que ainda não havia descoberto aquela verdade enunciada por Jorge Luis Borges: ninguém tem obrigação de ler um livro chato até o fim.
Porém, os mais interessantes, sobretudo do ponto de vista da psicopatologia ou do humorismo involuntário, eram de abóboras tupiniquins (que nos perdoem os tupiniquins – e as abóboras).
Não estamos falando, evidentemente, dos delírios banhados em álcool de Plínio Salgado, que a GRD publicava religiosamente (lembro de um grande crítico brasileiro que ficou indignado com “Trepandé”, romance de Salgado; o crítico, que pronunciava o título da obra como “Trepandê”, dizia: “a pornografia começa pelo nome do livro”; não era uma piada: ele estava furioso com o livro de Plínio Salgado; mas, nesse caso, a GRD estava isenta de culpa: “Trepandé” foi lançado pela José Olympio).
Mais interessante que essa pornografia integralista era, por exemplo, “UNE, instrumento de subversão”, de Sonia Seganfreddo – um livro que, hoje, é muito engraçado, mas que, em 1963, organizado pelo IPES, de Golbery do Couto e Silva, e publicado pela Edições GRD, recebeu ampla divulgação dos jornais reacionários, como se fosse coisa séria.
O principal alvo de “UNE, instrumento de subversão” não é um comunista, mas um nacionalista, Álvaro Vieira Pinto, professor da senhorita Seganfreddo na Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) – e, na época, principal personalidade do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), órgão do Ministério da Educação que merecia o ódio de todo e qualquer reacionário que prezasse o seu reacionarismo, não porque o ISEB fosse comunista, mas pelo nacionalismo de seu corpo docente (que, por sinal, nem era tanto assim).
Sempre tive a impressão de que o ódio da senhorita Seganfreddo por Álvaro Vieira Pinto era motivado por alguma reprovação na cadeira ocupada pelo filósofo na FNFi, História da Filosofia. Mas não tenho certeza.
O fato é que ela promoveu Álvaro Vieira Pinto a “mentor intelectual dos comunistas da UNE” e até a ditador do Brasil: “No pseudo-gabinete Brochado, Vieira Pinto governou o Brasil nos bastidores”.
Brochado da Rocha, do PSD, foi primeiro-ministro durante dois meses, obviamente no período parlamentarista do governo Jango. Nessa época, o professor Álvaro Vieira Pinto foi assessor para assuntos educacionais do governo – como, depois, foi assessor do ministro da Educação, Darcy Ribeiro.
A EMBAIXADA
Gumercindo Rocha Dorea jamais escondeu – como hoje não esconde – que era, e é, fascista (como dizia Álvaro Lins, chamar esse pessoal de “integralista” é um eufemismo).
No entanto, boa parte dos escritores brasileiros que publicou nada têm a ver com a ideologia do editor. E não nos parece que ele os tenha publicado apenas para fazer a GRD respeitável – e, com isso, tornar mais eficiente a sua ação reacionária.
Ele, realmente, parece que gostava dos livros de autores brasileiros que publicava, inclusive os de Jorge Medauar (“Água Preta”, 1958, e “Histórias de Menino”, 1967), Macedo Miranda (“A Cabeça do Papa”, 1962) e José Alcides Pinto (“O Dragão”, 1964), para citar autores que, para dizer o mínimo, jamais tiveram qualquer queda pelo fascismo ou pela ditadura.
Como Gumercindo conseguiu conciliar seu fascismo com a publicação desses e de outros autores, não sabemos. Porém, se a intenção era a de adquirir prestígio, como lubrificante para empurrar a tralha reacionária, essa tática foi um fracasso.
Em uma entrevista, Ênio Silveira, lembrando o tempo em que era dono da Civilização Brasileira – a editora “de esquerda”, na década de 60 – , fala, com razão, que a reação tentou tornar a GRD um contraponto da sua editora, mas não conseguiu. É verdade.
Porém, é menos conhecido quem bancava a GRD nessa época. Na entrevista para a “Folha de S. Paulo”, Gumercindo é bastante claro:
“Com o que sobrava do dinheiro que eu recebia da aquisição pela embaixada americana dos volumes contratados, renovei a literatura brasileira publicando Rubem Fonseca, Nélida Piñon, Gerardo Mello Mourão, José Alcides Pinto, Marcos Santarrita, Samuel Rawet, Astrid Cabral, Fausto Cunha, Maria Alice Barroso e alguns que no momento me esqueço. Houve outros editores que enriqueceram [com o dinheiro dos americanos]. Não citarei nomes. A GRD não ficou rica”.
Gumercindo, que não é um homem modesto, recebia dinheiro naquela operação secreta da CIA, via U.S. Information Agency (USIA), que o jornalista norte-americano I.F. Stone revelou no final de 1964, mas que continuou, sabe-se lá por quantos anos, se é que terminou (cf. “How ‘cultural exchange’ became a propaganda operation at home as well as abroad: USIA secretly subsidizes books and writers to spread its ‘line’”, I. F. Stone’s Weekly, September 21,1964).
Mas, certamente, não foi para renovar a literatura brasileira que ele recebia dinheiro da embaixada dos EUA, numa operação, aliás, secreta.
A GRD não era a única editora no Brasil a receber dinheiro da USIA. Houve até editoras que publicaram mais livros de propaganda da CIA do que ela: a “Record, com cento e cinquenta e quatro títulos, a Fundo de Cultura, com cento e vinte e três, e a Lidador, com cento e dez” (cf. Laura de Oliveira, “Publicar ou perecer: a Edições GRD, a política da tragédia e a campanha anticomunista no Brasil (1956 – 1968)”, UFG, 2013, p. 150).
Aliás, vejamos outro trecho do trabalho que acabamos de citar:
“Desde o ano de sua criação [1953], a agência manteve intensa atividade na embaixada dos Estados Unidos no Brasil, promovendo, até 1973, pelo menos mil trezentas e quarenta e duas traduções de originais em língua inglesa lançadas no mercado editorial brasileiro. A agência também constituiu o campo estabelecido em torno da Edições GRD, tendo patrocinado quarenta e oito traduções publicadas pela editora entre 1962 e 1968. O convênio com a USIA não era uma exclusividade da GRD, considerando que dezenas de outras editoras brasileiras também receberam subsídios do governo norte-americano através do programa de traduções” (Laura de Oliveira, trab. cit., p. 34, grifo nosso).
Como é que Gumercindo conseguiu o contato com a USIA/CIA?
Através do IPES, onde estava Golbery, que tinha como secretário-executivo o futuro escritor Rubem Fonseca. Nas palavras de Gumercindo:
“No primeiro contato percebi que Rubem, que assessorava o general, não era de muita conversa. Aconteceu porém que a secretária de Rubem (Fernanda Gurjan) me informou ter ele alguns contos na gaveta. Em confiança, me emprestou os originais”.
Rubem Fonseca, em 1994, afirmou que, dentro do IPES, “se desenvolveram duas tendências. Uma, fiel aos princípios que haviam inspirado a fundação do Instituto, manteve-se favorável a que as reformas de base por ele defendidas fossem implantadas através de ampla discussão com a sociedade civil, o governo e o parlamento; a outra passou a julgar a derrubada do governo João Goulart” (cf. Rubem Fonseca, “Anotações de uma pequena história”, FSL, 27/03/1994).
Segundo diz Fonseca, ele pertencia à primeira tendência.
O IPES era um grupo que servia de cortina para as atividades da CIA no país. Nas palavras de Glycon de Paiva, seu último presidente – e um dos entreguistas mais notórios da história do país – citado, aliás positivamente, por Rubem Fonseca em seu artigo, suas atividades destinavam-se a:
“… criação de um caos econômico e político, o fomento à insatisfação e profundo temor ao comunismo por patrões e empregados, o bloqueio de esforços da esquerda no Congresso, a organização de demonstrações de massa e comícios e até mesmo atos de terrorismo, se necessário” (cit. por René Armand Dreifuss, “1964: A Conquista do Estado: Ação Política, Poder e Golpe de Classe”, 5ª edição, Vozes, 1987, p. 230, grifo nosso).
Pode ser, é até mesmo provável, que, no Ipes, existissem pessoas pouco atentas, que serviram de inocentes úteis para a CIA e a ditadura, tal como descreve Rubem Fonseca. É verdade que, posteriormente, como diz, ele entrou em conflito com a ditadura, sobretudo depois da proibição de seu livro de contos “Feliz Ano Novo”.
Mas isso é muito diferente de resgatar alguma “corrente democrática” no IPES.
Por essas e outras é que Gumercindo, que saiu armado pelas ruas do Rio no dia 1º de abril de 1964, diz que “nunca alimentei ódio contra ninguém. Mas ódios se voltaram contra mim”.
Era um nacionalista sui-generis, financiado pela embaixada dos EUA…