
Maestro inspirado, Abolicionista, Republicano
IRAPUAN SANTOS
Consta no “livro 4 dos Batizados da Freguezia do Bom Jesus do Monte de Paquetá, o batizado do inocente Anacleto Augusto de Medeiros, nascido em 13 de julho de 1866, filho natural de Isabel, criola, liberta”.
Possivelmente seja este o primeiro registro entre nós de alguém que se transformaria num dos maiores músicos brasileiros. O estudioso e professor emérito da Escola de Música da UFRJ, Baptista Siqueira, no ensaio “Três Vultos Históricos da Música Brasileira: Mesquita – Callado – Anacleto”, o coloca no mesmo patamar de Joaquim Callado, o fundador do choro, e de Henrique Mesquita, maestro, compositor pioneiro do “tango brasileiro”, mestre de Callado e Anacleto.
Não é demais registrar que o surgimento e a consolidação da música brasileira no século XlX e início do século XX são devidas, em grande parte, a estes três brasileiros de etnia negra.
Anacleto de Medeiros foi aprendiz de flautim e sax na Banda de Paquetá, sua ilha natal, no Rio de Janeiro, onde criaria depois o ”Recreio Musical Paquetaense”. Aos 9 anos de idade foi internado como aprendiz no Arsenal de Guerra, onde participou da Banda, continuando os estudos até os 18 anos, quando matriculou-se no Imperial Conservatório Musical (atual Escola de Música da UFRJ), de onde saiu professor de clarineta em 1888, tendo sido colega de turma de Francisco Braga (maestro e autor do Hino à Bandeira).
Maestro, arregimentador, teve por certo uma enorme vocação para a prática musical coletiva. Num período em que as bandas eram os grandes veículos de divulgação de música para a massa nos coretos, teatros e praças públicas. Num país de inequívoco pendor musical, onde não faltavam talentos natos no povo, Anacleto de Medeiros demonstrou capacidade e liderança na formação e regência de bandas operárias, como as da Fábrica de Paracambi (1894), Fábrica de Chitas Bangu (1904), Companhia de Tecidos e Fiação Confiança Industrial de Vila Isabel (1905), além de criar a Banda de Magé.
Sem dúvida, sua grande façanha foi a criação da Banda do Corpo de Bombeiros, em 1896, mesmo não sendo militar (ganhou uma patente simbólica de 1º sargento).
Admirado pela afinação e riqueza melódica dos arranjos, sob sua regência, o conjunto instrumental transformou-se em modelo para as bandas da época. Foi enorme sua contribuição para as primeiras gravações da música popular brasileira, a partir de 1902, quando surgiu a Casa Edson. Ao menos 100 fonogramas foram gravados pela Banda do Corpo de Bombeiros.
Na época de Anacleto, Choro era sinônimo do modo brasileiro de interpretar “polcas”, “valsas”, “quadrilhas”, “mazurcas” e o “schottisch”, danças europeias que invadiram o Brasil em meados do século XlX, assim como a “habanera” cubana. Mas, a fusão destes gêneros com o lundu e a criação de conjuntos musicais a base de violão, cavaquinho, flauta e outros instrumentos de sopro, foi diferenciando as composições brasileiras de suas congêneres estrangeiras. Este processo chamado de nacionalização de gêneros, resultou que ao fim e ao cabo era impossível confundir uma polka da Boêmia com uma composta pelos chorões brasileiros.
Compositor inspirado, Anacleto de Medeiros compôs mais de 100 músicas nestes gêneros, que eram tocadas pelas bandas Brasil afora. Trabalhou como regente e instrumentista em teatros, clubes, grupos de choro e festas familiares, como era costume dos músicos na época.
ABOLIÇÃO E REPÚBLICA
A música popular brasileira nasceu num período em que o Brasil se afirmava como Nação, por esta razão não é de estranhar, que ao lado da temática descritiva do cotidiano e da natureza, e mesmo da função de extravasar as emoções nascidas dos sentimentos e das relações humanas, nossa música fosse, como ainda é, também profundamente ligada à nossa história e aos embates sociais.
Assim é que a edição da Gazeta de Notícias de 23 de março de 1884 traz, em sua página 2, uma notícia que pode ser considerada histórica: “O compositor Anacleto Augusto de Medeiros compôs uma polca intitulada ‘Francisco do Nascimento’ oferecida à Sociedade Abolicionista Cearense.”
O homenageado pela polca de Anacleto era o “Dragão do Mar”, então em visita à corte no Rio, que o recebeu em júbilo pela grande vitória alcançada contra a escravidão na província do Ceará.
A venda de partituras para financiar a luta abolicionista foi uma constante nos anos que antecederam a Abolição, especialmente no período das Conferências Emancipadoras que arrecadavam doações para comprar alforrias. O jovem músico, com seu gesto, como tantos outros o fizeram, dava sua contribuição à luta.
Percebemos aqui uma confluência carregada de simbolismo. De um lado, Anacleto de Medeiros, então com 17 anos, filho de uma escrava liberta, estudante do Conservatório e que seria uma figura icônica da música brasileira, e do outro lado o grande “Dragão do Mar”, que sob a bandeira “No porto do Ceará não se embarca mais escravos”, liderou os jangadeiros cearenses até alcançar a Abolição dos Escravos, fazendo do Ceará a primeira província brasileira a fazê-lo, em 1884.
Um dos episódios da chamada segunda Revolta da Armada, quando a Marinha, ainda monarquista, tentou fazer retroceder a República, foi a retomada de Magé, para onde a população de Paquetá tinha se refugiado, fugindo de marinheiros amotinados.
Controlada momentaneamente por Miguel Inglês, em 28 de fevereiro de 1894 as tropas legalistas de Floriano Peixoto retomaram a cidade, prenderam Miguel Inglês e puseram fim à revolta, para júbilo do povo.
Esta é a origem da composição de Anacleto de Medeiros “Fantasia 28 de fevereiro”, numa clara alusão de que a tentativa de derrubada da República pelos monarquistas fora apenas uma “fantasia”.
“YARA” – “EXPLODE O CORAÇÃO”
A obra de Anacleto de Medeiros abarca diferentes gêneros, mas, sem dúvida, o compositor ficou para a posteridade como o consolidador da schottisch no Brasil, hoje chamada xote. Dança de origem escocesa, de compasso ternário e geralmente iniciada em tom menor, o que lhe conferia algo melancólico na melodia, que aos poucos foi recebendo letra e se transformando em canções típicas que ainda hoje conhecemos como serestas.
A música mais famosa de Anacleto de Medeiros é o xote “Yara”, com a qual o autor fez muito sucesso em vida, embora só tenha sido registrada após sua morte, quando Catulo da Paixão Cearense colocou a letra. Então, “Yara”, que era uma homenagem de Anacleto a uma embarcação que possuía com esse nome, vencedora de uma regata em Paquetá, quando ganhou letra de Catulo, passou a ser chamada de “Explode o Coração”.
A melodia simples e refinada de “Yara”, com os versos arrojados e derramados de Catulo da Paixão, seria tomada como motivo inspirador em ao menos dois grandes momentos da arte nacional, na música e no teatro.
Em 1926, o nosso maior maestro e compositor, Heitor Villa-Lobos, que dera o nome de “Choros” a 13 composições para diferentes formações instrumentais, escreveu o “Choros nº 10 – Explode o Coração”. Obra para orquestra e coro, no qual o genial maestro funde a canção “Macocê-cê-maká”, do repertório Pareci, coletada por Roquette Pinto em 1912, com a melodia de Yara e a letra de Catulo da Paixão, criando um clima apoteótico marcado pelo contraponto dos graves (baixos) do canto pareci, e o agudo (sopranos) do solo de Yara, envolvidos pelos solos orquestrais que sugerem a ambientação numa floresta tropical, invocando pássaros e sons característicos, produzindo uma massa sonora que prende a atenção e envolve os ouvintes do primeiro ao último dos seus 13 minutos de execução. Seguramente, dos choros de Villa Lobos, este é um dos mais conhecidos.
Estreou no Teatro Lírico, no Rio de Janeiro em 11/11/1926, e em Paris em 03/12/1927.
Em 1974, ano em que falece, aos 38 anos, Oduvaldo Viana Filho conclui uma de suas mais importantes peças: “Rasga Coração”, que iniciara em 1971.
A obra recebe o 1º prêmio no concurso do Serviço Nacional de Teatro, mas é imediatamente censurada e somente será exibida em 1979, sempre com muito sucesso. A peça é finalizada com os versos da canção “Rasga o Coração” cantada pelo coro:
“Se queres ver a imensidão do céu e mar
Refletindo a prismatização da luz solar
Rasga o coração vem te debruçar
Sobre a vastidão do meu penar”.
O prefácio da peça é aberto pelo autor com estas palavras: “Em primeiro lugar, Rasga Coração é uma homenagem ao lutador anônimo político, aos campeões das lutas populares; preito de gratidão à ‘Velha Guarda’, à geração que me antecedeu, que foi quem politizou em profundidade a consciência do país”. E prossegue: “… quis fazer uma peça que estudasse as diferenças que existem entre o ‘novo’ e o ‘revolucionário’. O ‘revolucionário’ nem sempre é novo absolutamente e o novo nem sempre é revolucionário”.
Muita coisa poderia ser falada sobre Anacleto de Medeiros e do tanto que foi realizado ao longo destes 159 anos para preservar sua obra. Não há espaço para mencionar tudo neste breve texto. Mas refletir sobre este homem do povo, brasileiro, que com poucos recursos, em 41 anos de existência construiu tantos caminhos para a arte nacional, e comparar a excelência do seu trabalho com a indigência musical e cultural que tentam nos impingir como novidade nos dias atuais, nos leva a repetir Vianninha:
“O revolucionário nem sempre é novo absolutamente e o novo nem sempre é revolucionário”.
Niterói, 17 de julho de 2025
FONTES CONSULTADAS:
Academia Brasileira de Música. Choros nº 10 – Rasga Coração.
https://abmusica.org.br/edicoes-abm/obra/choros-no-10-rasga-coracao/, consulta em 17.07.2025
DINIZ, André – O Rio musical de Anacleto de Medeiros. Zahar. Rio de Janeiro.2007
SANTOS, Irapuan Ramos – A canção nas conferências emancipadoras: uma contextualização histórico-musical. Rio de Janeiro. UFRJ. 2023
SIQUEIRA, Baptista – Três Vultos Históricos da música brasileira – Mesquita – Callado -Anacleto. https://pt.scribd.com/upload-document?archive_doc=470033464
Consulta em 16.02.2023.
VIANNA, Oduvaldo filho – Rasga Coração. Rio de Janeiro. Serviço Nacional de Teatro.1980