“Se ainda há prisioneiros vivos de Auschwitz entre nós, pergunte a eles a quem eles devem suas vidas – aos netos dos soldados do Exército Vermelho ou aos netos dos soldados da SS e da Wehrmacht”, diz vice-premiê sérvio, sobre a exclusão da Rússia das comemorações do 27 de janeiro deste ano
Há 80 anos, em 27 de janeiro de 1945, as tropas soviéticas que avançavam pela Polônia em perseguição às forças nazistas tomaram Auschwitz, revelando ao mundo toda a extensão do horror e do extermínio em massa hitlerista e libertaram cerca de 7.500 sobreviventes do maior campo de extermínio e trabalho escravo sob o III Reich.
O local é onde foram martirizadas pelo menos 1,1 milhão de pessoas entre 1940 e 1945, a infame “fábrica da morte”, operando sob o cínico dístico “o trabalho liberta”, em cujas câmaras seladas o gás Zyklon-B, o orgulho do monopólio IG-Farben-Bayer, matava em 20 minutos, e onde os fornos crematórios não paravam.
As vítimas eram predominantemente judeus, mas também soviéticos, poloneses, comunistas em geral, ciganos ou simplesmente deficientes físicos.
As tropas soviéticas eram do 60º Exército do general Kurochkin, vindas da frente ucraniana, marchando desde a cidade polonesa de Cracóvia, 45 quilômetros a oeste do campo, com o objetivo de tomar Katowice, uma cidade industrial a 25 quilômetros a noroeste de Auschwitz, que julgavam então ser apenas um quartel no mapa.
O tenente soviético Ivan Martynushkin, da 100ª Divisão, recordou que suas tropas tinham acabado de derrotar os alemães em Oswiecim quando, depois de passar pela aldeia, “saíram para algum tipo de campo enorme quase completamente cercado por cercas eletrificadas de arame farpado e torres de vigia”.
“Vimos edifícios além do arame farpado”, observou Martynushkin. “E à medida que nos aproximávamos, começamos a ver que havia pessoas.” Ele e seus homens não tinham ideia de quem eram essas pessoas, que pareciam “muito magras, cansadas, com a pele enegrecida”.
“No início, houve cautela, tanto da nossa parte quanto da deles”, lembrou. “Mas então eles aparentemente descobriram quem éramos e começaram a nos receber, a sinalizar que sabiam quem éramos e que não deveríamos ter medo deles – que não havia mais guardas ou alemães atrás do arame farpado. Só prisioneiros.”
Martynushkin e seus homens tinham acabado de libertar o campo de Birkenau. Os sobreviventes estavam extremamente magros e exaustos. Poucos conseguiam ficar de pé, muitos estavam deitados no chão, apáticos.
Um dos sobreviventes, Primo Levi, lembrou que os primeiros soldados soviéticos que entraram no campo não tinham ideia de onde haviam entrado. “Eles não nos cumprimentaram, nem sorriram”, ele disse. “Pareciam oprimidos não apenas pela compaixão, mas por uma contenção confusa, que selou seus lábios e prendeu seus olhos à cena do funeral”.
Cerca de 231 soldados soviéticos perderam a vida nos combates dentro e ao redor da cidade de Oswiecim que ocorreram durante a libertação de Auschwitz, incluindo o comandante do 472º regimento, coronel Siemen Lvovich Besprozvanny.
Seus corpos estão enterrados no cemitério municipal de Oswiecim, uma lembrança permanente do sacrifício feito na libertação dos 7.500 sobreviventes dos campos de extermínio de Auschwitz.
FÁBRICA DA MORTE
A “Fábrica da Morte” chegou a aniquilar seis mil seres humanos por dia. Os soldados soviéticos se depararam com os poucos os que sobreviveram às câmaras de gás e aos fornos crematórios, ao trabalho escravo, ao arbítrio sádico, à fome, ao frio, às doenças e às experiências macabras nas quais seres humanos eram usados como cobaias.
Além do extermínio em massa, em Auchwitz operavam grandes monopólios alemães, como a Krupp, com mão escrava. Era ali também que o médico das SS Josef Mengele conduzia seus ‘experimentos’ desumanos em prisioneiros
Assim que os trens chegavam, os cativos eram separados entre os aptos para o trabalho e os que iriam direto para o extermínio. O segundo grupo era obrigado a tirar a roupa e sentar sob chuveiros.
Os guardas nazistas despejavam gás nas câmaras seladas e esperavam as pessoas morrerem, o que levava 20 minutos. As paredes, apesar de espessas, não eram capazes de abafar os gritos daqueles que sufocavam ali dentro.
Anna Polshchikova, uma prisioneira russa que trabalhava no centro médico do campo, relembrou sua alegria em ver os soldados soviéticos – e sua confusão. “Eles nos olharam com surpresa e consternação. ‘ Quem é você?”, perguntaram. ‘Que lugar é esse?’ “Somos russos”, respondi, “e este é o campo de concentração de Auschwitz-Birkenau”.
Cerca de 7.000 prisioneiros emagrecidos estavam no campo principal de Auschwitz, Birkenau e Monowitz. Outros 500 prisioneiros foram descobertos nos subcampos de Auschwitz em Stara Kuźnia, Blachownia Śląska, Świętochłowice, Wesoła, Libiąż, Jawiszowice, e Jaworzno”.
1,2 MILHÃO DE PEÇAS DE ROUPA E 7,7 TON DE CABELO HUMANO
Só então os soviéticos começaram a se dar conta de onde tinha chegado. “Dentro dos campos os soviéticos encontraram 1,2 milhão de peças de roupa, 7,7 toneladas de cabelo humano e outros itens pessoais despojados de prisioneiros assassinados, evidência dos horrores que aconteceram lá. Mais de 600 cadáveres em decomposição foram espalhados por todo o terreno, os restos mortais daqueles prisioneiros mortos a tiros pelos guardas assassinos da SS antes de abandonarem os campos”, segundo o relato da RT.
Eva Mozes Kor, de dez anos, sobrevivente dos experimentos médicos dementes do nazista Joseph Mengele, lembrou da gentileza dos soviéticos com as crianças do campo. “Eles nos deram abraços, biscoitos e chocolate”, disse ela.
“Ao estar tão sozinho, um abraço significava mais do que qualquer um poderia imaginar, porque isso substituiu o valor humano pelo qual estávamos famintos. Não estávamos apenas famintos por comida, mas também por bondade humana. E o Exército soviético forneceu um pouco disso.” Havia 500 crianças.
OCULTAÇÃO ORDENADA POR HITLER
Diante do avanço imparável do Exército Vermelho nos últimos meses de 1944, Hitler dera ordem para ocultar as provas dos crimes hediondos cometidos e mandou destruir as câmaras de gás e os crematórios de Auschwitz-Birkenau.
Em 17 de janeiro de 1945, foi dada ordem de evacuação dos três campos de Auschwitz. Mais de 60 mil prisioneiros foram obrigados a marchar dia e noite: milhares morreram de exaustão pelo caminho ou foram executados nas monstruosas Marchas da Morte.
Em 20 de janeiro de 1945, restavam aproximadamente 9.000 prisioneiros. Nos dias que se seguiram à evacuação, os guardas das SS mataram 400 prisioneiros a tiros e queimaram outros 300 vivos em seus quartéis.
Em 25 de janeiro, as SS reuniram cerca de 150 prisioneiros de Birkenau e os levaram para fora do campo. No dia seguinte, as tropas das SS explodiram alguns armazéns e abandonaram completamente as instalações. A maioria dos prisioneiros sobreviventes estava faminta, doente e à beira da morte. A equipe médica do campo, assistida pelos prisioneiros mais saudáveis, fez o possível para cuidar dos pacientes acamados.
Como registrou o Ministério de Defesa da Rússia, “graças à ação rápida do Exército Soviético, os nazistas não tiveram tempo de apagar completamente os traços de sua desumanidade”.
NUNCA MAIS É PARA TODOS
Em 1948, a aprovação da Convenção contra o Genocídio das Nações Unidas criou um marco para que tal barbárie nunca mais se repita. Em 2005, a Assembleia Geral da ONU aprovou o dia 27 de janeiro – dia em que o Exército Vermelho entrou em Auschwitz – como Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. Em 2002, a Unesco tornou o Memorial de Auschwitz um patrimônio da Humanidade.
Em 2022, a Rússia foi excluída das comemorações anuais pela libertação de Auschwitz, sob pretexto de seu socorro às populações de fala russa do Donbass, ameaçadas de limpeza étnica pelo regime instalado pelo golpe de Maidan em Kiev em 2014, e desdobrado como uma guerra por procuração da Otan contra a Rússia na Ucrânia.
O atual regime ucraniano se autodefine como herdeiro dos fascistas que lutaram ao lado das SS na ocupação da Ucrânia, contra os soviéticos, e que mataram dezenas de milhares de poloneses e judeus em pogroms que cometeram.
Sinal dos tempos, a União Europeia escolheu para chefiar sua diplomacia Kaja Kallas, da Estônia, cujo governo tornou os colaboracionistas do nazismo durante a II Guerra e a ocupação na pequena república báltica, em “patronos” da independência. Também se tornou comum em países da Europa a destruição de monumentos aos que derrotaram o nazismo.
E em 2019 o parlamento europeu votou para equiparar o símbolo da foice e martelo à suástica – embora todos saibam qual bandeira foi hasteada sobre o telhado do Reichtag, e sob que bandeira os soviéticos encabeçaram a vitória da humanidade contra o nazismo, ao custo de 27 milhões de vidas, Leningrado e Stalingrado, e enfrentando 70% da máquina de guerra alemã.
No entanto, também sinal dos tempos, às vésperas da comemoração da libertação de Auschwitz do ano passado, a Corte Internacional de Justiça da ONU decidiu prosseguir com o processo contra Israel impetrado pela África do Sul, a nação que venceu o apartheid e o racismo, por “genocídio contra o povo palestino” em Gaza e deliberou liminarmente que Israel deve “prevenir e punir a incitação ao genocídio”.
Decisão considerada uma “vitória” para a entidade norte-americana Jewish Voice for Peace, segundo a qual “não em nosso nome” e “nunca mais é para todos”. E este 27 de janeiro está sendo comemorado sob uma trégua em Gaza que o regime Netanyahu fez de tudo para evitar.
“NOVO MAL”
Excluir a Rússia da comemoração do 80º aniversário da libertação de Auschwitz transformou a cerimônia em uma reunião de descendentes de perpetradores do Holocausto e seus colaboradores, advertiu o vice-primeiro-ministro sérvio Aleksandar Vulin.
Falando no Dia Internacional em Memória do Holocausto – 27 de janeiro, quando as tropas soviéticas tomaram o campo de extermínio em 1945, estabelecido pela Alemanha nazista na Polônia ocupada – Vulin criticou duramente a decisão de Varsóvia de não convidar uma delegação russa para a cerimônia a pretexto do conflito na Ucrânia.
“Os crimes impensáveis do povo e do Estado alemães foram ‘recompensados’ pela unificação da Alemanha. Oitenta anos depois, a libertação de Auschwitz é celebrada com a participação de países que organizaram o Holocausto em Auschwitz, como a Alemanha e seus aliados, ou países que forneceram guardas, como Polônia ou Croácia”, afirmou Vulin.
Todo novo mal começa com o esquecimento de um velho mal… Os netos dos guardas e perpetradores de Auschwitz não têm vergonha dos crimes de seus avós, eles têm vergonha de sua derrota, ele acrescentou.
A exclusão da Rússia da cerimônia é outro movimento revisionista e uma tentativa de reescrever a história dos Estados-membros da UE, disse Vulin. “Se ainda há prisioneiros vivos de Auschwitz entre nós, pergunte a eles a quem eles devem suas vidas – aos netos dos soldados do Exército Vermelho ou aos netos dos soldados da SS e da Wehrmacht.”
A porta-voz da diplomacia russa, Maria Zakharova, criticou a ausência de menções aos soldados soviéticos na cerimônia em Auchwitz. “Vale lembrar aos organizadores e a todos os europeus presentes: suas vidas e o futuro de seus filhos foram pagos com o sangue dos soldados soviéticos. Vocês estão em dívida com eles”, disse em coletiva.
“Não importa o quanto os europeus tentem reescrever a história, a memória dos horrores do nazismo e dos heróis-libertadores soviéticos não pode ser apagada”. Ela ressaltou que o Holocausto é “uma tragédia que a Rússia jamais esquecerá”.