O abandono do “40 anos em 4” e o extremismo fiscal
PAULO KLIASS*
A semana passada se encerrou com algumas dúvidas fundamentais a respeito do futuro político do Ministro da Fazenda e das eventuais consequências desse movimento para o futuro do Brasil. Uma das peças mais importantes para analisar esse quadro pode ser encontrada na entrevista que o próprio Haddad concedeu ao Estadão em 14 de novembro. Apesar dos dias anteriores terem sido recheados por notícias em off comentando a respeito da eventual saída do Ministro de seu cargo para os próximos meses, ali ele não acenou com nenhuma hipótese a esse respeito. Ao que tudo indica, Lula gostaria que seu colaborador fosse candidato a alguma coisa nas eleições do ano que vem, mas nada ainda foi confirmado. Caso esse cenário se concretize, Haddad precisaria se desincompatibilizar do posto na Esplanada até abril do ano no que.
A simples possibilidade de que a posição do principal responsável da área econômica fique vacante já abre espaço para todo o tipo de fofoca e especulação. De um lado, sempre surgem os mais esperançosos por algum tipo de giro à esquerda a ser eventualmente patrocinado por Lula. Esse tipo de expectativa de mudança se mantém no radar e existe ainda antes das eleições de 2022, quando se imaginava que o terceiro mandato seria orientado pelas principais promessas do então candidato. Neste terreno, duas delas chamavam a atenção dos analistas e dos apoiadores do governo a qualquer custo, que mais se assemelham a fanáticos de torcida uniformizada do que a militantes de esquerda com algum pé fincado na realidade concreta.
Em primeiro lugar, Lula dizia que só havia aceito a incumbência de um terceiro mandato porque gostaria de fazer mais e melhor pelo País do que havia realizado ao longo dos dois primeiros mandatos. Ora, caso esse compromisso fosse efetivamente levado a sério, tal postura significaria uma profunda alteração na rota da política econômica implementada desde o golpeachment perpetradocontra Dilma Roussef em 2016, com a entrada em cena dos governos de Temer/Henrique Meirelles e depois de Bolsonaro/Paulo Guedes. Para que o período 2023/26 fosse marcado por uma gestão melhor e com mais realizações do que entre 2003/10, o fundamental seria uma reversão na esfera da economia para buscar o caminho do desenvolvimento econômico, social e ambiental, com recuperação do protagonismo do Estado no processo econômico.
LULA PROMETE MAS NÃO CUMPRE
Em segundo lugar, Lula se inspirou no mote da campanha e do governo de Juscelino Kubitschek (JK) há sete décadas atrás. À época em que o mandato presidencial em nossas terras era quinquenal, JK prometera fazer “50 anos em 5”. Realmente foi um período marcado por mudanças profundas e bastante simbólicas em nossa sociedade, que iam desde a “revolucionária” mudança da capital da República do Rio de Janeiro para Brasília até a estruturação do parque da indústria automobilística, para ficar apenas em duas delas. Pois Lula anunciou que iria realizar “40 anos em 4” em sua terceira passagem pelo Palácio do Planalto, sabendo da imagem forte que tal promessa cumpriria junto ao eleitorado. Ora, assim como no compromisso mencionado anteriormente, caso o Presidente realmente estivesse com o desejo político de efetivar esse bordão de campanha, os rumos da política econômica também deveriam ser outros.
No entanto, os caminhos adotados foram distintos do que se esperava. Aquilo que se verificou depois da posse em 01 de janeiro de 2023 foi a implementação de uma diretriz de continuidade da essência da economia que vinha sendo praticada desde que Temer ocupou a Presidência sob o manto do documento “Ponte para o Futuro”. Trata-se de um importante texto que havia sido divulgado pela Fundação Ulysses Guimarães do PMDB, meses antes da consumação do impedimento de Dilma. Haddad aprofundou os principais elementos constitutivos de tal ordenamento inspirado no neoliberalismo mais autêntico, com foco na austeridade fiscal radical, na política monetária acirrada, no estímulo às privatizações e na redução da dimensão do Estado nas atividades de forma geral. Parece razoável supor que todas as principais decisões adotadas na economia foram tomadas com o aval e o pleno conhecimento do Presidente da República. Lula não é bobo e não se pode argumentar que tenha sido enganado por seu Ministro da Fazenda desde o começo do governo.
ELEIÇÕES DE 2026 E A ILUSÃO DO GIRO À ESQUERDA
No entanto, o fato é que a proximidade do próximo pleito e os arranjos envolvendo as eleições de outubro do ano que vem devem proporcionar rearranjos no esquema político da Esplanada. O prazo para desincompatibilização de eventuais candidatos a cargos na disputa eleitoral exige a exoneração de parcela de seus colaboradores mais próximos. Nestes casos, a regra geralmente utilizada até então, para evitar maiores atritos e desgastes por um curto período de tempo (de abril a outubro de 2026), tem sido a indicação de um ocupante temporário, geralmente o Secretário Executivo da pasta considerada. Ora, se esta fosse a solução para uma eventual saída de Haddad, não haveria razão alguma para que esse tipo de especulação pudesse prosperar. Haddad sai, disputa o cargo e eventualmente volta para encerrar o terceiro mandato com Lula até 31 de dezembro do ano que vem.
Assim, o desenho e as costuras para um eventual quarto mandato ficariam para depois. Mas não é impossível que Lula lance mão, mais uma vez, da conhecida figura simbólica do “candidato violinista”. Aquele segura com a esquerda e toca com a direita (sic). Para tanto, a intuição do candidato à reeleição incorporaria a necessidade de fazer um giro à esquerda na época de campanha, com o intuito de arregimentar maiores apoios e empolgar a militância em prol de sua candidatura a mais um mandato à frente do Palácio do Planalto. Caso esse raciocínio estiver correto, haveria espaço para que Lula oferecesse alguma esperança de novos rumos para o período 2027/2030. A encomenda que ele fez a Haddad de um estudo a respeito da gratuidade para o transporte público municipal, por exemplo, seria um indicativo de tal hipótese.
No entanto, creio que o passo de maior evidência para eventual mudança mais substantiva está muito fora de cena. Este seria o caso da nomeação de algum substituto de Haddad cujo perfil significasse uma possibilidade de reorientação efetiva nos rumos da economia. O mais provável é que se permaneça no conhecido modo “mais do mesmo” também para os próximos anos. Ainda que não seja impossível, o perfil de Lula não é marcado por esse tipo de descontinuidade em processos de transição. Afinal, optar por tal trilha implicaria um movimento de “rebeldia” junto aos setores do financismo e da Faria Lima. E o histórico conciliador do Presidente não autoriza esse tipo de conclusão, ainda mais para uma área tão sensível para as nossas classes dominantes, como a política econômica.
HADDAD SENDO HADDAD: EXTREMISMO FISCAL
Voltando ao tema da mencionada entrevista, Haddad concentrou 70% do tempo da conversa ressaltando o seu compromisso com a austeridade fiscal. Foram mais de 42 minutos do total de uma hora do encontro com 3 jornalistas do Estadão em que o chefe da Fazenda não poupou saliva para sublinhar seu compromisso em atender às expectativas dos congêneres de seu grande amigo André Esteves do banco BTG/Pactual. Fiscal, fiscal e fiscal – esse foi o discurso monotônico do entrevistado, que contou com toda a boa vontade, a conivência e a compreensão dos encarregados por lhe apresentar questões. Afinal, nenhuma perguntinha sequer foi feita a respeito do trilhão de reais gastos em 12 meses como despesa orçamentária para pagamento de juros da dívida pública. Eles ficaram sempre na mesma lengalenga de pontuar o suposto “desequilíbrio fiscal” causado exclusivamente pelas despesas com itens como saúde, previdência social, educação, assistência social e outras. Como não perguntaram nada a respeito dos impactos causados pelas despesas financeiras (aquelas que são chamadas de “não-primárias”), Haddad ficou totalmente à vontade, pois nem precisou exercitar seu contorcionismo retórico. Afinal, os questionamentos tão necessários nem surgiram durante a conversa.
Até mesmo na crítica à política monetária, ele foi bastante discreto. Afirmou que poderia ser obtido o mesmo resultado de combate ao suposto “descontrole inflacionário” com SELIC a 12% ao invés dos atuais 15%. Mas como nada lhe foi perguntado a respeito do fato de que a meta de inflação é definida pelo próprio Executivo, Haddad tampouco precisou se esforçar para explicar a razão pela qual levou a Lula sugestão de uma meta tão irrealizável quanto irresponsável de 3% ao ano para o IPCA. Afinal, se o objetivo para o crescimento dos preços estabelecido pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) fosse 4,5% ao ano, não haveria argumento algum para o COPOM insistir na tragédia dos níveis da SELIC dos últimos anos.
Enfim, para o atual ocupante da Fazenda, o Brasil vai muito bem, obrigado. Ele cumpriu seus compromissos todos assumidos com o tema da austeridade fiscal. E deixou subentendido que a continuidade da política econômica para um quarto mandato deve manter a mesma toada do quadriênio que se encerra no final do ano que vem. Ele mesmo reconhece – as palavras são suas na entrevista – que a sobrevivência do Novo Arcabouço Fiscal é uma “questão de matemática”.
A DECISÃO É DE LULA: DO FUTURO DE HADDAD E DO FUTURO DO BRASIL
Ou seja, Haddad abre uma enorme avenida para que o período que se inicia com o anúncio do resultado das eleições seja marcado pela sinistra sugestão da responsável pelo Planejamento, Simone Tebet. Ela menciona o período entre o final de outubro de 2026 e o início do quarto mandato em janeiro de 2027 como o momento propício para o pacote de maldades tão defendido pela Faria Lima e pelo financismo de forma geral. Para eles, trata-se de uma oportunidade única para dar um verdadeiro golpe contra a sociedade e contra o futuro do Brasil. Seria a chance para promover um conjunto de maldades, incluindo a desvinculação dos benefícios do INSS do salário mínimo e o fim dos pisos constitucionais para saúde e educação.
(…) “que o próximo presidente da República, “seja quem for”, tem a missão de aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de revisão de gastos. Ela argumenta que, por isso, “a janela de oportunidade é após o processo eleitoral”, o que transfere o debate para o primeiro ano do próximo governo.” (…) [GN]
Assim, independentemente do futuro político de Haddad, caso nada de substantivo seja efetivado para alterar o rumo da política econômica baseada nos princípios do neoliberalismo, o futuro do Brasil estará seriamente comprometido, mesmo para um eventual quarto mandato de Lula. Resta saber qual avaliação dele a respeito de manchar ou não sua própria biografia com esse tipo de medida.
*Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal











