Depois de 15 dias de manifestações exigindo a saída do presidente Jovenal Moïse, que assumiu em janeiro de 2017 e é acusado de envolvimento em corrupção e responsável pela destruição da já fragilizada economia haitiana, o articulista W.T. Whitney traçou, no dia 22 de fevereiro acurado panorama da grave situação do país em matéria publicada no portal Counterpunch, intitulada “Racismo e imperialismo dos EUA alimentam a turbulência no Haiti”, da qual publicamos os principais trechos
W.T. WHITNEY
Os haitianos estão nas ruas protestando contra a corrupção, elevação acelerada dos preços, escassez de produtos e apagões. Os manifestantes exigem que o presidente Jovenel Moïse, renuncie. Moïse acusa ‘grupos armados e traficantes de drogas’ como causadores dos ‘distúrbios’ e não tem aceito nenhum tipo de negociação com os manifestantes.
Enfrentando a brutalidade policial, massas de haitianos têm bloqueado estradas, apedrejado prédios de governo e policiais, incendiado veículos e há saques de lojas. Nove pessoas já morreram e há mais 100 feridos. Alimentos e água potável são escassos. Os Estados Unidos retiraram representantes diplomáticos não emergenciais e expediram alertas contra viagens de cidadãos ao país. O governo Trump diz que ajuda humanitária pode ir em seguida.
Em outubro de 2018, os haitianos também realizaram protestos massivos depois que o governo do país, fortemente endividado, elevou os preços dos combustíveis seguindo instruções do Fundo Monetário Internacional, FMI, com a promessa de obtenção de empréstimos com juros baixos. Os protestos fizeram com que o governo revertesse parte dos aumentos e prosseguiram.
ROUBO DE RECURSOS ADVINDOS DO PETRÓLEO
Atualmente o povo do Haiti reclama contra a elevação da corrupção com base no projeto PetroCaribe. O Haiti foi um dos 17 países que se juntaram ao projeto venezuelano.
No acordo, o Haiti pagaria por 60% do petróleo em 90 dias e o restante em 25 anos a um juro de 1% ao ano. O país deve hoje à Venezuela 52 bilhões de dólares.
O governo vendeu parte do petróleo a entidades privadas e acumulou US$ 4 bilhões. A ideia era usar este fundo para construir instalações sanitárias, financiar cuidados de saúde, educação, infraestrutura e inovações na agricultura, necessidades que já existiam e se aprofundaram com o terremoto de 2010.
O fundo foi “mal utilizado, mal apropriado ou embolsado por funcionários de governo e seus cúmplices”, de acordo com informe do Senado em 2017. O dinheiro fluiu para os cofres das empesas ligadas ao presidente Moïse e para as mãos do partido político formado por Michel Martelly, antecessor de Moïse na Presidência.
O envolvimento do Haiti com o PetroCaribe terminou em outubro de 2017. As sanções anti-venezuelanas dos EUA barraram os pagamentos do Haiti a suas contas de petróleo – ou deu ao governo uma ‘desculpa de ouro para isso’-, de acordo com o observador da realidade haitiana, Kim Ives. ‘A vida no Haiti’, ele escreve, ‘que já era extremamente difícil, ficou agora insustentável’.
Estes problemas acontecem em meio a um desastre social. Por exemplo, cerca de 80% dos haitianos vivem na pobreza. A desigualdade de renda no Haiti, que se reflete no índice Gini, está entre os casos mais extremos do mundo. 40% dos haitianos dependem de renda da agricultura, enquanto 80% das propriedades rurais não estão conseguindo alimentar as famílias que nelas vivem.
Vamos agora a algumas informações acerca das causas dessa situação. Para começar: Michel Martelly tornou-se presidente como cortesia do governo dos EUA. Tirando vantagem da elevação da angústia do povo depois do terremoto de 2010, o governo de Obama retaliou contra o então presidente René Preval. Sua ofensa foi a cooperação com o governo venezuelano do presidente Chávez na questão referente ao petróleo.
Com o apoio de líderes militares e paramilitares, Martelly foi capaz de competir nas eleições de 2010 depois da montagem de um Conselho Eleitoral Provisório sob intervenção da Organização dos Estados Americanos (OEA) e do governo norte-americano. A secretária de Estado, Hillary Clinton, voou a Porto Príncipe para instar Préval a ‘sair do caminho’.
Em 2015, o protegido de Martelly, Jovenel Moïse, foi eleito presidente. Como mostrado por observadores eleitorais legais vindos do exterior, a votação foi marcada por uma participação de 26% do eleitorado, procedimentos irregulares nas seções de votação, e 50% dos votos considerados não confiáveis. Até mesmo o Conselho Eleitoral, montado nas circunstâncias acima, diagnosticou fraude, apontou um presidente interino e ordenou a repetição das eleições presidenciais para novembro de 2016. Moïse venceu. Nesta, a participação foi de 21%. Consequentemente fala-se em ‘uma enorme apatia quando se trata de eleições’.
Nem sempre foi assim. O teólogo progressista, Jean-Bertrand Aristide, tornou-se presidente em 1990 com 67% dos votos. Um golpe militar engendrado pelos EUA o tirou do poder após 8 meses. Paramilitares liderados pelo agente da CIA Emmanuel Constant, submeteu os apoiadores de Aristide a um reino de terror. Mesmo assim, ele foi reeleito no ano 2000 com 92% da votação. Paramilitares o raptaram em 2004, outra vez sob os auspícios dos EUA. O governo dos Estados Unidos o transportou para a República Centro-Africana.
Os Estados Unidos estão sozinhos no abuso da soberania nacional do Haiti. Soldados de uma ‘missão de estabilização da ONU’ chegaram pouco depois do afastamento de Aristide e ficaram até 2017.
O que nos resta a este ponto é buscar as origens das dificuldades crônicas do Haiti. A analista Amy Willentz vai à essência do problema quando o relaciona ao Haiti: “Como um Estado falha?”, questiona e responde: “Um Estado falha por causa de sua história e não por causa de alguma espécie de inferioridade de seu povo”.
Ela desmonta qualquer relação entre os que apontam principalmente para o fato de que negros ex-escravos estabeleceram e mantiveram a nação haitiana. Estas visões, racistas por sua própria natureza, acabam apontando para a presença do racismo na desestruturação do desenvolvimento do Haiti.
Quando o Haiti declarou sua independência em 1804, o povo antes escravizado se libertou, A França buscou recuperar o dinheiro que seus cidadãos perderam quando os escravos deixaram de ser sua propriedade. Ameaçando bloquear o Haiti, a França forçou o país a fornecer ‘compensação’. Então o governo do Haiti, entre os anos de 1825 e 1947 pagou à França um total de US$ 20 bilhões sob esta pressão.
A grande questão: Qual ética, além da supremacia branca, pôde induzir altos funcionários a relacionarem valor monetário a seres humanos que, da mesma forma que os brancos, eram ostensivamente livres?
O Haiti tornou-se uma república independente em 1804, mas foi só em 1862 que os Estados Unidos o reconheceram diplomaticamente e somente em 1863 que levantaram sanções econômicas. Atitudes racistas estavam presentes também quando os EUA invadiram Cuba em 1898, sob a mesma visão que baseou as leis de discriminação racial no sul dos Estados Unidos, a invasão a Cuba buscava impedir a instalação de “outra república negra”.
O exército dos EUA ocupou o Haiti por 19 anos a começar em 1915. O propósito anunciado ela garantir o pagamento de dívidas a bancos nova-iorquinos. Mas as tropas norte-americanas empregaram tortura e massacres quando aplastaram rebeliões e levantes.
Mais adiante, os presidentes Duvalier, pai e filho, mandaram entre 1957 e 1986. Eles impuseram uma opressão assassina, coisa que em Washington era purificada sob o racionalismo da luta anticomunista. O que é fato é que as ações dos EUA no Haiti sempre incluíram elementos tanto de racismo quanto de imperialismo. As fronteiras entre os dois tendem a se borrar.
O Haiti tornou-se um caso especial e ainda é – para o sofrimento do povo haitiano.