Sob os lemas de “Onde está o dinheiro da Petrocaribe?” e “não queremos mais esse presidente”, já duram doze dias os protestos contra a corrupção, a carestia e os apagões que vêm varrendo o Haiti, com o país parado e multidões nas ruas para exigir a renúncia do presidente Jovenel Moise.
Nesta segunda-feira (18), algumas lojas e postos de gasolina abriram pela primeira vez desde o início da revolta e parte dos ônibus voltou a circular, mas as escolas continuam fechadas e novas manifestações estão convocadas. Na noite de sábado, o primeiro-ministro Jean-Henry Ceant tentou apaziguar os revoltosos, com vagas promessas de cortar algumas sinecuras de seu próprio gabinete, possível aumento do salário mínimo e quem sabe um controle dos preços.
Desde que o “fora Jovenel” começou no dia 7, aniversário da derrubada do ditador Baby Doc há 33 anos, pelo menos nove pessoas já morreram, conforme o France24. Mas ativistas dizem que o total pode ser bem maior. As barricadas se espalharam e muitos carros, inclusive viaturas policiais, foram incinerados. Mercados foram saqueados.
No sábado, manifestantes queimaram uma bandeira norte-americana e deram vivas a Putin, dizendo-se fartos das intervenções norte-americanas.
Além do parecer do Tribunal de Contas da União haitiano provando o envolvimento direto na corrupção do presidente Moise e de ex-primeiros-ministros, o estopim da revolta foi a decretação, dois dias antes, pelo governo Moise de “emergência econômica nacional”, diante do colapso da moeda haitiana frente ao dólar, da carestia e dos apagões.
Para 10,5 milhões de haitianos na miséria e extrema miséria, não havia muita dúvida de que o que se seguiria seria outro drástico “aperto dos cintos”, sob o infame pretexto neoliberal de “déficit orçamentário descontrolado” e consoante o manual de campo do FMI.
Os manifestantes chegaram a apedrejar a casa do presidente Moise, que finalmente saiu do silêncio na quinta-feira, para dizer que “não renuncia” e não entregará o país nas mãos “das gangues e traficantes armados” (Já dos ladrões …). Na vizinha República Dominicana, há rumores de que os dois filhos de Moise fugiram para lá.
A razão dos apagões é que as sanções de Trump à Venezuela desmantelaram o mecanismo da Petrocaribe, através do qual o país de Hugo Chávez fornecia petróleo aos povos irmãos do Caribe, a preço mais barato, pagando 60% e com o restante podendo ser usado como empréstimo, a juros muito baixos, para projetos de desenvolvimento econômico e social.
Foi com esse dinheiro que sucessivos governos, desde a derrubada do presidente Jean-Bertrand Aristide, se locupletaram, em projetos com superfaturamento ou que simplesmente jamais ficavam prontos. Ou, ainda, usando a emergência criada pelo terremoto de 2010.
Na outra semana, um petroleiro texano que chegou a Porto Príncipe não teve como descarregar sua carga completa, por falta de dinheiro no erário. Sem petróleo, as termelétricas param e vêm os apagões.
O país está há mais de uma década sob “estabilização” de força da ONU, depois da derrubada do presidente Aristide, e foi alvo do conhecido espírito beneficente da Fundação Clinton – ou seja, por esse ralo também escorreu muito dinheiro público.
Padeceu ainda no terremoto de 2010, que deixou 300 mil mortos e 1,5 milhão de deslocados, ao que se seguiu epidemia de cólera.
Com o agravamento da crise, estão de volta as mortes por afogamento, no Caribe, de refugiados que fugiam da fome no Haiti, 28 só no dia 2, que estavam em busca da sorte nos EUA. Muitos vieram para o Brasil.
Com quase metade da população em situação de “insegurança alimentar” – isto é, fome – o Haiti ainda foi abalroado, como já visto na Argentina e Turquia, pela política do Federal Reserve de taxas de juros mais normais e valorização do dólar frente a outras moedas. Situação ainda mais crítica quando as reservas do país são somente US$ 800 milhões.
Com a destruição trazida pelo terremoto de 2010, praticamente Bill Clinton virou o interventor no país, como chefe da Comissão Interina de Recuperação do Haiti. Ele e seus chegados pressionaram para impor um governo menos próximo de Aristide, como tinha sido René Preval. Colocaram no poder Michel Martelly, que foi quem organizou a farra com o chamado Fundo PetroCaribe que, segundo o jornal Haiti Liberté, desde sua criação em 2008 era “basicamente o que mantinha o Haiti à tona”. Ele também usou o dinheiro para eleger Moise.
Quando Moise entrou, Trump acabava de assumir nos EUA. Com as sanções de Trump contra a Venezuela, ficou “impossível pagar a conta de petróleo da Petrocaribe”. O acordo terminou em outubro daquele ano
“A vida no Haiti, que já era extremamente difícil, tornou-se insustentável”, descreve o jornal. “Com a torneira da Venezuela fechada, o Fundo Monetário Internacional (FMI) disse a Moise que precisava aumentar os preços dos combustíveis, o que tentou fazer em 6 de julho do ano passado. O resultado foi uma explosão popular de três dias que foi a precursora da revolta de hoje”.
“Mais ou menos na mesma época, um movimento de massa começou a perguntar o que havia acontecido com os US$ 4 bilhões em receitas de petróleo venezuelano que o Haiti recebera na década anterior”, que deveria ter pago “hospitais, escolas, estradas e outros projetos sociais”, mas as pessoas virtualmente “não viam nada realizado”. “Duas investigações do Senado de 2017 confirmaram que o dinheiro havia sido desviado para outros bolsos”.
No dia 7 de fevereiro, a revolta explodiu e a embaixada dos EUA precisou enviar para casa o pessoal “não essencial”. Em socorro de Moise veio o conselheiro de Segurança Nacional de Trump, John Bolton, instando “todos os lados” no Haiti a “respeitarem e protegerem sua democracia”, “engajarem-se no diálogo” e a “porem fim à violência política”. Para completar sua inusitada transmutação – em pomba – ainda aproveitou a vinda do chanceler haitiano a seu gabinete na semana passada para “expressar o apoio duradouro e a amizade dos Estados Unidos com o Haiti”. De que os marines e a famiglia Duvivier são a mais imorredoura expressão