EDUARDO COSTA*
A divulgação de relatório da CIA relatando a posição do Governo Geisel sobre o expediente de eliminação de “subversivos”, causou importante impacto entre nós, particularmente nas redes sociais.
O relatório de Colby a Kissinger registrava que Geisel ficara num primeiro momento indeciso sobre o assunto, concordando depois, desde que aprovado antecipadamente, por Figueiredo! Era fácil perceber, para quem lembra um pouco daqueles dias, que precisava ele coibir um grupo mais radical do comando das casernas que tinha autonomia para decidir sobre a vida dos “subversivos” e sobre sua periculosidade.
Essa posição foi desafiada por Silvio Frota, ministro do Exército, que depois da execução de Herzog e Manuel Filho, acabou sendo afastado do Comando em 1977. Ora, não se pode, pois, dizer que passaram diretamente por Geisel/Figueiredo todas as execuções pós 1974. Frota, aliás, era o candidato a presidente da linha dura, sendo Figueiredo seu oponente.
Mas é verdade que com a queima de arquivos secretos de nossas forças armadas, tínhamos somente indícios e depoimentos (sem delação premiada), de que algumas execuções foram autorizadas sim, e não seria difícil entender que os combatentes da guerrilha do Araguaia caíram na categoria dos “subversivos perigosos”.
O comentário oficial da embaixada americana de que Geisel procurou conter a repressão “extralegal”, encontra eco no fato que em 1977, Carter assumiria o Governo Americano com uma agenda de defesa de direitos humanos, incentivando a derrocada dos governos ditatoriais da América Latina, na sua linha de enfrentamento à União Soviética. Ao conceder asilo político para Leonel Brizola, no início de 1978, Carter assinara, de fato, o fim do regime no Brasil.
Reconhecido esse aspecto da “tecnicidade e instância decisória superior” da condenação à morte sem tribunal, nem mesmo militar, não consigo entender a posição de quem veio a público condenar a divulgação do documento, como uma manobra anti-nacional desenvolvimentista.
Não é possível misturar alhos com bugalhos: a ditadura militar encerrou um período de crescimento do país, dentro do regime republicano democrático, tanto com Getúlio em 50, como com Juscelino e Jango até 64 e Geisel foi um dos proeminentes responsáveis pelo golpe de estado. De outro lado, já no Governo Figueiredo o país viveria uma recessão acentuada (1980-83), sem alteração maior no quadro deixado por Geisel.
A importância histórica desse documento é muito grande, portanto, por razões para muito além do projeto econômico evocado. Põe fim à resistência de incrédulos sobre a natureza da ditadura militar no Brasil e, principalmente, de sua ética. Como disse Ulisses Guimarães: a ditadura militar dava “nojo” a quem conhecia sua face semi-oculta.
Se os agentes da ditadura agiram como criminosos fora da lei e para eles estava reservada a compreensão e encorajamento superiores, como esperar que reagiriam os agentes da lei já no período democrático, em que foram aliás, ainda comandados por algumas dessas tristes figuras da repressão? Quem não lembra dos esquadrões da morte, de um Fleury e de um Erasmo Dias para centrar em São Paulo, tipificando quem tinha carta branca para matar e desovar cadáveres nas periferias urbanas ou no mar.
A anistia negociada preferiu acreditar que a pacificação não precisava punir os criminosos que estavam no poder. O resultado, entre outros, é a tragédia nacional com a questão da violência.
As estatísticas de homicídios na Capital de São Paulo passaram de 5,7 por 100 mil em habitantes, em 1960, para 36,9, em 1985, o que está subestimado pelas técnicas de ocultação de cadáver e os “desaparecimentos”. No Brasil, para citar uma estatística recente, em 2016, foram registrados 61.619 assassinatos, mais do que o total de jovens americanos que morreram no Vietnã em 7 anos de guerra. Essa taxa elevadíssima de cerca de 30 por cem mil habitantes (93% homens, 82% com idade de 15 a 29 anos e 76% negros) nesse ano foi a 4ª maior do mundo, se excluirmos países muito pequenos cuja variação de uma dezena de óbitos influencia demais o indicador.
Qual a taxa que o leitor esperaria no Vietnã? Um país que viveu uma guerra criminosa em seu território, sofrendo, em parte dele, os mesmos procedimentos que aqui houve, na busca de extermínio aos vietcongs, e que conquistou por fim a paz em 1975, poderia ser pensado como violento, ou que tivesse grande aparato policial hoje. Nada disso, só se vê polícia em gala em monumentos no Vietnã. O número total de assassinatos, em 2016, foi de pouco mais de 1300 pessoas – taxa de 1,3 por cem mil habitantes.
Poderíamos ir mais perto, em lugar que, a rigor, não há forças armadas, como o Uruguai, onde a taxa é de cerca de 8,4 por cem mil habitantes. O nosso “excesso de assassinatos”, nada tem a ver com brigas conjugais ou outras desavenças em situações de desajustes; é fruto de uma guerra de extermínio consentido contra jovens das classes populares. O drama dos que são atingidos pela barbárie são manipulados ao máximo pela mídia, que sempre receita mais repressão e condenações extrajudiciais.
Frequentemente, há eliminação dos vestígios da ação policial ou paramilitar, um aprendizado histórico para disseminar a dúvida sobre a autoria. Na agenda da brutalidade estão os jagunços modernos expulsando índios e posseiros de suas terras.
Não há dúvida que há outras variáveis em jogo; todos falarão do combate às drogas, e no mínimo, diremos que essa é ineficiente ou equivocada se o resultado é esse que temos: insegurança generalizada no país. Quanto mais polícia, menos investimentos sociais, essa a triste equação que as classes mais favorecidas propugnam para sua ilusória segurança, até que encontram a saída pelo aeroporto.
Precisamos encarar de frente a nossa história e mudá-la. Nem nossa mídia e polícia, com ou sem intervenção militar, o farão.
Para vencer as drogas precisamos de inteligência e coesão social. Um pedido formal de desculpas à nação pelos militares, que não podem ser considerados herdeiros de nosso passado sombrio, ajudariam a promovê-las.
No entanto, a inexplicável “pressão” do Comandante do Exército, às vésperas do julgamento do habeas corpus do Presidente Lula, nos distancia mais do dia em que poderemos confiar que, as invés de pressionar uma instituição civil de modo desastrado numa perspectiva absolutamente equivocada, poderemos contar com a voz dos militares nos assuntos de segurança e soberania nacional, como é seu dever constitucional, aparentemente esquecido em episódios recentes da esfera energética e tecnológica do país, como no caso da alienação da Embraer, entre outros.
Rio, 16 de maio de 2016.
* Médico-sanitarista (aposentado da Fiocruz), ex-Secretário de Saúde do Governo Brizola.