Bolsonaro chamou Carlos Alberto Brilhante Ustra, na quinta-feira (08/08), de “herói nacional”, antes de receber, no Planalto, a viúva de Ustra – já que o próprio Ustra está hoje, como aquele personagem de Manuel Antônio de Almeida, dando coices no inferno.
Bolsonaro chamou Ustra de “herói nacional” porque não sabe o que é heroísmo e não sabe o que é nação.
Mais exatamente, chama covardia de “heroísmo” e subserviência a bandidos estrangeiros – por exemplo, Trump – de “nação”.
O que está abaixo é um documento enviado pelo DOI-Codi de São Paulo, que Ustra chefiou, ao Serviço Nacional de Informações (SNI) – um documento, hoje, sob a guarda do Arquivo Nacional:
Vejamos apenas a segunda coluna, que informa ao SNI que, até 30 de novembro de 1974, dos 2.128 presos pelo DOI-Codi de São Paulo, 47 foram mortos.
Se contarmos com os presos que vieram de outros órgãos de repressão da ditadura para o antro de Ustra (+794 presos, portanto, ao todo, 2.922 presos), 50 deles saíram mortos do DOI-Codi.
Mortos, como?
Houve alguma epidemia de peste bubônica no DOI-Codi de São Paulo, durante o tempo em que Ustra o chefiava?
Todo mundo sabe como eles foram mortos: sob tortura, da forma mais cruel, mais covarde, mais criminosa.
Ustra não era apenas “mentor” (?) ou chefe dos torturadores do DOI-Codi de São Paulo.
Vejamos o que diz uma das presas pelo DOI-Codi, Maria Amélia de Almeida Teles, de como conheceu Brilhante Ustra:
“Eu fui espancada por ele ainda no pátio do DOI-Codi. Ele me deu um safanão com as costas da mão, me jogando no chão, e gritando ‘sua terrorista’. E gritou de uma forma a chamar todos os demais agentes, também torturadores, a me agarrarem e me arrastarem para uma sala de tortura”.
Porém, o pior, para Maria Amélia, não foram as dores na cadeira do dragão, um instrumento infernal (para o leitor que quiser conhecer o que era isso, v. no projeto Dhnet, Modos e instrumentos de tortura).
O pior, para Maria Amélia, foi ver seus filhos, que Ustra levara ao DOI-Codi para assisti-la nessa situação:
“Ele, levar meus filhos para uma sala, onde eu me encontrava na cadeira do dragão, nua, vomitada, urinada? Levar meus filhos para dentro da sala? O que é isto? Para mim, foi a pior tortura que eu passei. Meus filhos tinham 5 e 4 anos. Foi a pior tortura que eu passei.”
E, em depoimento posterior:
“Tive os meus filhos sequestrados e levados para sala de tortura. A Janaína com cinco anos e o Edson, com quatro anos de idade. (…) Enfim, o meu filho chegou para mim e disse: ‘Mãe, por que você ficou azul e o pai ficou verde?’. O pai [César, também sob tortura] estava saindo do estado de coma e eu estava azul de tanto… Aí que eu me dei conta: de tantos hematomas no corpo.”
Esse é o herói “nacional” de Bolsonaro.
Pode-se concluir, por isso, qual é o seu ideal de “nação”.
A DENÚNCIA
Ustra foi desmascarado pela atriz, e então deputada federal, Bete Mendes, no seu refúgio, em Montevidéu, onde fora colocado como adido militar do Brasil.
Seu plano era voltar ao Brasil e passar a general.
Mas isso não aconteceu.
Bete Mendes fazia parte da comitiva do presidente José Sarney, em visita ao Uruguai, quando viu seu torturador. Durante dias, teve que suportá-lo, sem quebrar o protocolo diplomático – ela estava, bem entendido, em país estrangeiro; mas, de volta ao Brasil, endereçou uma carta ao presidente Sarney que entrou para a História:
“Não posso calar-me ante a constatação de uma realidade que reabriu em mim profunda e dolorosa ferida… Digo-o, presidente, com conhecimento de causa: fui torturada por ele. Imagine, pois, vossa excelência o quanto foi difícil para manter a aparência tranquila e cordial exigida pelo cerimonial: pior que o fato de reconhecer meu antigo torturador, foi ter de suportá-lo seguidamente a justificar a violência cometida contra pessoas indefesas e de forma desumana e ilegal como sendo para cumprir ordens e levado pelas circunstâncias de um momento.
“Sei que muitas vozes se levantarão na lembrança da anistia. Lembro, porém, que a anistia não tornou desnecessária a saneadora conjunção de esforços de toda a Nação com o objetivo de instalar uma nova ordem política no País. O arbítrio cedeu lugar ao diálogo democrático. A Nova República, sonho de ontem, é a realidade palpável de hoje. Mas ela não se consolidará se no atual governo, aqui ou alhures, elementos como o coronel Brilhante Ustra estiverem infiltrados em quaisquer cargos ou funções.
“Por isso, denuncio-o aqui. E peço, como vítima, como cidadã e como deputada federal, providências imediatas que culminem com o afastamento desse militar das funções que desempenha no vizinho país. Tenho certeza que uma determinação sua nesse sentido significará, antes de tudo, uma demonstração de respeito ao sofrimento de milhares de brasileiros e uruguaios que acabam de despertar de uma longa noite de arbítrio, na qual a tortura e os torturadores fizeram parte de uma grotesca, triste e dolorosa realidade.”
A carta da deputada – que fora expulsa do PT por ter votado em Tancredo Neves no Colégio Eleitoral – causou uma tremenda comoção no país. Sarney anunciou o afastamento de Ustra. Bete Mendes enviou, então, outra carta, esta ao então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves:
“Fui sequestrada, presa e torturada nas dependências do DOI-Codi do II Exército, onde o major Brilhante Ustra (dr. Tibiriçá) comandava sessões de choque elétrico, pau-de-arara, ‘afogamento’, além do tradicional ‘amaciamento’ na base dos ‘simples’ tapas, alternado com tortura psicológica. Tive sorte, reconheço, senhor ministro: depois de tudo, fui julgada e considerada inocente em todas as instâncias da Justiça Militar, que, por isso, me absolveu; e aqueles inocentes, como eu, cujos corpos eu vi, e que estão nas listas de desaparecidos?”
UMA SENHORA
Ustra era um psicopata – no sentido técnico da palavra.
Um detalhe, revelado depois por Bete Mendes, dá uma ideia do que isso significa:
MhuD: [Você] encontrou [Ustra] na embaixada?
BETE MENDES: Não. Ele foi me receber no aeroporto. Foi me cumprimentar. Fez questão de se apresentar para mim. Ele já estava demissionário do cargo de adido militar. Botou a farda de gala e foi me cumprimentar na chegada (…). Aí, eu gelei e ele me acompanhou todos os dias, até a saída [do Uruguai] (v. Bete Mendes é entrevistada pelo MhuD, 20/06/2010, grifo nosso).
Em um depoimento mais extenso, Bete Mendes lembra:
“Foi um choque terrível. Passei três dias num inferno. Fiquei paralisada ao vê-lo. Morri de medo, muito medo, mas muito medo mesmo. Voltou tudo na minha cabeça, tudo, tudo, tudo. Não dormi por três dias. Tomava banho gelado pra não dormir, porque tinha medo que ele me atacasse. Ou seja, voltaram os fantasmas todos” (cf. Rogério Menezes, “Bete Mendes: o cão e a rosa”, Coleção Aplauso, IOSP, 2004, p. 157).
“Fomos a uma festa de confraternização do povo uruguaio e do povo brasileiro, onde estavam Miguel Arraes, Bocaiúva Cunha, enfim uma equipe muito linda de parlamentares. E chega ele novamente para conversar comigo, me apresentar à sua esposa. Ela faz um sinal para ele se afastar e fica sozinha comigo. Diz que gostou do meu gesto de perdão, de eu ter apertado a mão do marido dela, que ela sempre apoiou tudo o que ele fez e estava ao lado dele. Pirei de tal maneira que pedi a dois ou três parlamentares amigos meus pra me tirarem dali, fomos pra outro restaurante e tomei um porre de vinho” (cf. Democracia Viva nº 40, set./2008, p. 42, grifo nosso).
Esta é a senhora que Bolsonaro recebeu no Planalto na quinta-feira, e por quem disse “estar apaixonado” (“Ela tem um coração enorme, sou apaixonado por ela“).
É uma tentação dizer que eles se merecem. Porém, por pior que seja a viúva Ustra, certamente não é pior que o falecido – ou pior que Bolsonaro.
E, pelo menos, dessa vez não é o Trump.
C.L.