Este é o segundo texto de nossas comemorações do Dia da Independência – e da Semana da Pátria.
O artigo que publicamos aqui, com o título original de “Finanças do Brasil”, foi escrito há 201 anos por um dos grandes brasileiros da época da Independência, Hipólito José da Costa, fundador e principal redator do nosso primeiro jornal, o Correio Brasiliense, que saía em Londres. Portanto, este artigo, de novembro de 1816, apareceu seis anos antes da Independência.
Nelson Werneck Sodré, em sua História da Imprensa no Brasil, menciona que “Hipólito da Costa justificou-se de fazer no estrangeiro o seu jornal: ‘Resolvi lançar esta publicação na capital inglesa dada a dificuldade de publicar obras periódicas no Brasil, já pela censura prévia, já pelos perigos a que os redatores se exporiam, falando livremente das ações dos homens poderosos’” (op. cit., 4ª ed., Mauad, Rio, 1999, p. 20).
O grande jornalista, depois de três anos nos calabouços da Inquisição, em Portugal, fugira e se asilara na Inglaterra. Era maçom, o que fez com que Pina Manique, o chefe de polícia de Dª Maria I, a Louca, determinasse a sua prisão. Nascido na colônia do Sacramento – na época, território do Brasil, hoje pertencente ao Uruguai – ele viveu em Londres de 1805 até sua morte, em 1823, aos 49 anos.
Diz um dos nossos principais historiadores, sobre a relação de Hipólito com a Independência:
“Hipólito da Costa preparara no Correio Brasiliense durante anos seguidos esse movimento de organização nacional, delineando sua teoria e mostrando sua prática, para isto apontando para os exemplos estrangeiros na América e indicando como deveriam ser indicados e tratados os vários problemas políticos e sociais. Não dissimulou o mais grave destes últimos, que era o da escravidão, cuja abolição muito recomendou (…). No seu dizer, país algum apresentava ‘mais elementos de prosperidade nacional’ do que o Brasil” (cf. Oliveira Lima, O Movimento da Independência, Melhoramentos, S. Paulo, 1922, pp. 79-80).
“O próprio jornalista”, escreveu Nelson Werneck Sodré, “deixaria entrever, ou expressaria claramente, as suas finalidades, nas matérias que divulgava. Em 1819, por exemplo: ‘Ninguém tem atacado mais os defeitos da administração do Brasil do que o Correio Brasiliense. Começou este periódico há mais de onze anos só para esse fim, sendo acidentais as outras matérias e para isto se foram ajuntando nesta coleção todas as notícias oficiais pertencentes à época em que escrevemos, posto que nisso tenhamos tido grandes dificuldades, já porque escrevemos em país estrangeiro, mais distante do nosso, já porque escrevemos contra os defeitos da administração, todas as pessoas em autoridade, principalmente as em que se fala diretamente, devem ser inimigos desta obra e embaraçar-lhe os meios de obter informações autênticas’” (cf. N.W. Sodré, op. cit,, pp. 22-23).
O texto que oferecemos hoje aos nossos leitores é um dos que Hipólito dedicou ao Tesoureiro-mor do Reino, Francisco Maria Targini (depois barão – e depois visconde – de São Lourenço), uma quase unanimidade, na época, como exemplo de corrupção.
Até mesmo o visconde de Cairu, decididamente um áulico, escreveu que Targini “fazia ostentação de opulência mui superior ao ordenado do seu emprego”, ostentação que, segundo Tobias Monteiro, fez com que uma quadra popular, inspirada em um sermão do padre Vieira, mas dedicada ao Tesoureiro-mor (“Quem furta pouco é ladrão/ Quem furta muito é barão,/ Quem mais furta e esconde/ Passa de barão a visconde”), fosse mudada nos seus dois últimos versos (“Quem furta e não esconde/ Passa de ladrão a visconde”).
Há, também, o depoimento de Vasconcellos de Drummond – partidário dos Andradas e uma testemunha histórica bastante confiável.
Drummond, quando jovem, foi encarregado de uma missão do governo de D. João em Santa Catarina. O Tesoureiro-mor lhe perguntou quanto dinheiro precisava para realizar a missão, e, quando ouviu de Drummond que dispensava a gratificação usual nesses casos, disse a ele: “Menino, o senhor ainda é muito criança e engana-se com as coisas deste mundo, que não são tão bonitas como lhe parecem; mame enquanto a vaca dá leite” (cf. A.J. de Mello Moraes, “História do Brasil-Reino e do Brasil-Império”, Tomo I, 1871, p. 189).
Além disso, “contava-se naquele tempo que quando o importunavam com reclamações para demitir o esperto empregado, D. João VI respondia ser preferível conservá-lo, pois se já tinha furtado tanto, devia estar satisfeito, enquanto o seu eventual substituto viria roubar de novo e seria pior” (cf. Tobias Monteiro, A Elaboração da Independência, T. 1, Itatiaia/Edusp, BH, 1981 [1ª ed.: 1927], pp. 272-275).
Bem, leitores, o texto abaixo, de Hipólito José da Costa, encontra-se no volume 17, nº 102, da coleção do Correio Brasiliense organizada pela Biblioteca Nacional.
C.L.
P.S.: Antes que apareça algum cara de pau para dizer que o texto de Hipólito mostra que sempre houve corrupção no Brasil, advertimos que ele demonstra outra coisa: que, sempre, os brasileiros, os patriotas, mesmo antes da Independência, consideraram que era seu dever a denúncia e a punição dos ladrões do dinheiro e da propriedade públicas. Jamais se considerou que o dever de um brasileiro fosse se conformar com o roubo contra a coletividade, ou escondê-lo, ou aderir aos ladrões. Por falar nisso, Targini, mesmo com todas as atualizações monetárias, com certeza roubou menos que alguns partidos roubaram da Petrobrás, e outras fontes públicas, nos últimos anos.
HIPÓLITO JOSÉ DA COSTA
Se a habilidade de um indivíduo, em aumentar suas riquezas fosse por si só bastante para qualificar alguém a ser administrador das finanças de um reino, sem dúvida Targini, Barão do que quer que é que nos não lembra, devia reputar-se um excelente financeiro.
É verdade, que poderíamos aqui aplicar o rifão espanhol “Quien cabras no tiene y cabritos vende de algures le viene”. Targini, escrevente do Erário, sem outros bens mais que o seu minguado salário, acha-se elevado a Tesoureiro-mor do Erário, Barão, e homem riquíssimo; administrando um Erário que sempre se acha pobre.
Ninguém dirá que estas matérias são segredo de Gabinete, que não convém que nenhum do povo examine. O Erário é o depósito das contribuições do povo: a bem do povo se devem empregar as suas rendas; o Erário rico pode gastar em cousas que enriqueçam a nação; o Erário pobre não é capaz de promover os estabelecimentos nacionais, que exigem despesas do Governo; logo as circunstâncias, que ocasionam a riqueza ou pobreza do Erário, não devem ser matéria de segredo de Gabinete, mas sim um ponto em cujo exame pode entrar todo o indivíduo da nação; porque a todos isto toca de mui perto.
Explicaremos, pois, o pouco que por agora intentamos dizer nesta matéria; supondo que El Rey mandara chamar Targini, e tinha com ele uma conferência sobre o estado atual do Erário; no que se passava o seguinte diálogo.
Rei. Preciso de uma soma considerável para fortificar as fronteiras do meu reino do Brasil, criar uma boa marinha de guerra, chamar para este país artistas e povoadores da Europa; dizei-me, Tesoureiro-mor, quais são os restos das despesas, e as poupanças, que tendes feito nas minhas rendas.
Tesoureiro. Restos, Senhor! O Erário não tem um real; V. M. [Vossa Majestade] está pobre; as rendas não chegam para as despesas.
Rei. Como pode o meu Erário estar pobre, sendo eu o Soberano de um país, em que se produz o ouro, os diamantes, o açúcar, o café, o arroz, o algodão, e tantos outros objetos preciosos e em tanta abundância, que nenhum outro país do mundo o excede ?
Tesoureiro. Senhor, tudo isso será assim, mas as despesas são tão consideráveis, que para elas não chegam as rendas.
Rei. Que despesas temos nós a fazer, que sejam mais consideráveis que as de outros Estados de igual grandeza (por exemplo os Estados Unidos), aonde o Erário não padece a pobreza que aqui se alega?
Tesoureiro. Os Estados Unidos não têm Casa Real que sustentem, nem o Clero, nem outras muitas cousas, que nós cá temos.
Rei. Valha-me a fortuna; aí vêm as despesas da Casa Real em primeiro lugar; pois principiemos por diminuir estas. Eu comigo não gasto mais do que outro indivíduo meu vassalo, e o que há de mais é para sustentar o decoro da Coroa, com criados, cavalos, carruagens, &c.; e ainda assim envergonho-me de ser puxado em uma carruagem velha, com duas mulas miseráveis, e dous lacaios esfaimados; mas disso mesmo me quero privar, para dar o exemplo de economia; e espero que o meu Tesoureiro-mor fará o mesmo, largando metade do seu ordenado.
Tesoureiro. Deus tal não permita. Os ordenados das pessoas empregadas são mui tênues, e mal lhe chegam para viver.
Rei. Isso não pode ser; pois como ajuntastes riqueza para comprar casas, terras, e meter dinheiro nos fundos do Banco da Inglaterra, se o vosso ordenado vos não chega para viver?
Tesoureiro. Senhor, há outra cousa, que V. M. não repara, e é a necessidade de sustentar a dignidade Real, com os criados, cavalos, carruagens, &c.; e tudo isto requer despesas.
Rei. Já me falastes nisto outra vez. Eu estou capacitado de que todos os meus vassalos estimariam que eu gastasse dobrada soma na sustentação da dignidade Real; porque isso mesmo é glória e esplendor para o Reino; contanto que se não dissipassem as rendas do Erário, que são aplicáveis a outras despesas públicas; mas já disse que ainda assim, e para dar exemplo, quero diminuir essas despesas da Casa Real. Porém a questão é como podeis vós estar tão rico, não tendo tido bens patrimoniais, e dizereis, ao mesmo tempo, que os ordenados apenas chegam para viver?
Tesoureiro. Senhor, eu não falava de mim; mas sim das despesas da Casa Real.
Rei. É já terceira vez que falais nisso; estou pronto a diminuí-las – que outras despesas há que admitam diminuição?
Tesoureiro. As despesas da Casa Real é certo que são mui consideráveis; porém eu não posso aqui de repente dizer quais sejam as outras que se possam diminuir.
Rei. Pois nem ao menos podeis dizer, se podeis ou não dispensar parte do vosso ordenado?
Tesoureiro. Se formos a bulir com tudo, por força havemos de diminuir também as despesas da Casa Real, e a minha lealdade e amor a V. M, não me permitem que pense em tal.
Rei. Uma vez por todas, eu sou o primeiro a querer diminuir as despesas da Casa Real; não me faleis mais nisso: saibamos quais são os outros gastos, que se fazem, e podem admitir diminuição.
Tesoureiro. Eu, quanto a mim, Senhor, ficarei sem nada, se V. M. assim o determina.
Rei. Tal não desejo, quem serve deve ser pago. Mas dizei-me de que viveis, se vos não chegam os vossos ordenados, ou de que viveríeis se continuásseis a servir sem ordenado?
Tesoureiro. Das minhas economias.
Rei. Que economias pode fazer, quem não tem rendas para economizar?
Tesoureiro. Eu cá me arranjaria com as minhas linhas.
Rei. Quisera eu que aplicásseis essas linhas a traçar algum plano, para que os pagamentos andassem em dia; e não fosse eu atormentado com ouvir falar em rebates do que tem de pagar o Erário.
Tesoureiro. Senhor, os rebates são necessários, e os rebatedores gente mui útil.
Rei. Ao Erário não podem os rebatedores ser úteis; porque o Erário sempre paga a dívida por inteiro.
Tesoureiro. Mas são úteis aos indivíduos a quem os rebatedores adiantam o pagamento, para depois o receberem do Erário.
Rei. Mas o credor do Erário, quando rebate, paga usuras horrorosas.
Tesoureiro. Isso não pode deixar de ser, pela incerteza em que está o rebatedor do tempo em que há de receber a dívida do Erário.
Rei. Eis aí justamente o que Eu queria ver remediado; pois ainda que o Erário não pudesse pagar em dia, podiam os pagamentos fazer-se por ordem alfabética, datas, ou outras divisões, de maneira que todos soubessem quando lhe cabia a sua vez de ser pago, sem que nem o Tesoureiro-mor, nem algum outro oficial do Erário pudesse fazer mercê ou injúria a ninguém com indevidas preferências, de que se queixam todos, e Eu não sei, nem tenho meios de averiguar, se com razão ou sem ela.
Tesoureiro. Eu não posso impedir que os caluniadores e más línguas falem; nem está no meu alcance fazer novos planos de finanças.
Rei. Más línguas sempre houve no Mundo, mas é preciso que se tirem os motivos de suspeita, estabelecendo tal ordem dos pagamentos que ninguém possa fazer preferir os pagamentos de seus afilhados aos de outros que não têm padrinhos. E quanto aos planos a este respeito, eu devo esperá-los do Tesoureiro-mor; porque o seu ofício não é outro senão fazer os pagamentos do Erário em boa e devida forma.
Tesoureiro. Creia V. M. que tudo quanto se diz a respeito do mau arranjamento do Erário é sem fundamento. Só eu sei o que me custa alcançar o dinheiro para os pagamentos; pois o Banco não me quer nunca ajudar; e até se me dificultam os saques para a Inglaterra.
Rei. Ouvi dizer, que as últimas letras, que daqui sacou o Erário sobre os Administradores dos Contratos Reais em Londres, foram sacadas a quase 3 por cento mais caras do que era o preço do câmbio na praça. Por que razão perdeu o Erário esta diferença?
Tesoureiro. Senhor, as despesas da Casa Real obrigaram-me a fazer esses sacrifícios, para ter dinheiro com que as suprir.
Rei. Outra vez as despesas da Casa Real?
Tesoureiro. V. M. proibiu-me que falasse nas despesas da Casa Real quanto ao futuro, mas isto é quanto ao passado, o que eu digo.
Rei. Quem foi o corretor que negociou essas letras, com a diferença de 3 por cento?
Tesoureiro. Eu não sei que houvesse tal diferença de três por cento.
Rei. Não vos pergunto isso; pergunto-vos quem foi o corretor que negociou as letras.
Tesoureiro. Suponho que foi Samuel.
Rei. Pois manda-me cá a Samuel, e lhe preguntarei se houve nas ditas letras a tal diferença de 3 por cento de mais do câmbio corrente na praça; e se eu achar que tal diferença houve, quero ser informado da razão.
Tesoureiro. Veja V. M. que se nos metemos nisso, é preciso examinar as contas das despesas da Casa Real.
Rei. Pois bem; se eu achar que todas as extravagâncias das despesas públicas são para a Casa Real, como eu não tenho culpa disso, eu o direi publicamente ao meu Povo; e lhe declararei que tal não é minha vontade, e eles me acreditarão: deixemos pois isso; manda-me cá o Samuel, que quero examinar o negócio das letras.
Tesoureiro. Qual Samuel?
Rei. Pois não me dissestes que supunhas que o corretor das letras fora Samuel? É esse Samuel quem eu quero examinar.
Tesoureiro. Não sei aonde está, uns dizem que foi para Inglaterra, outros que está doente; e outros…
Rei. Basta. Chegará o tempo de ajustarmos contas. Não digo que sejas culpado; porque se o pudera dizer, do meu dever fora castigar-vos; porém digo que a repetição que tendes feito, em falar das despesas da Casa Real, e o não explicares o negócio das letras, não é de quem sabe e entende da administração das rendas públicas; mas sim de quem deseja embaralhar; e se não déreis disto a conveniente satisfação, será preciso declarar-vos indigno do lugar que ocupais. Fazei públicas as públicas contas; e com isto mostrareis que entendeis do vosso ofício, e que sois homem honrado; e senão cada um julgará o que lhe parecer.