O texto que reproduzimos nesta página foi publicado originalmente na revista piauí, em sua edição de janeiro último.
A autora, Malu Gaspar, é uma das maiores repórteres do país – seu livro “Tudo ou Nada – Eike Batista e a verdadeira história do grupo X” (Record, 2014) é, de certa forma, uma obra-prima (o “de certa forma” é apenas porque não é costume usar essa expressão para reportagens) ao abordar a marginália daqueles que, um dia, foram apelidados de “campeões nacionais”. Através de algo que, aparentemente, pertence mais ao campo da delinquência que ao da vida econômica, a autora expõe o que não é, propriamente, marginal: o setor financeiro e seus elos com o meio político, no Brasil dos últimos anos.
O livro faz lembrar um clássico (outra vez uma palavra pouco comum para reportagens) do jornalismo, “The History of the Standard Oil Company”, de Ida Tarbell, até hoje o melhor livro sobre a carreira do velho John D. Rockefeller – apesar de publicado em 1904.
O texto abaixo é um excerto do próximo livro de Malu Gaspar, que será sobre a trajetória da Odebrecht – e suas relações políticas.
Nos dispensamos de qualquer comentário sobre o conteúdo desse trecho.
Mas, por falar nisso, nossa única – quer dizer, última – observação é apenas que não conseguimos (e, talvez, não tenhamos o direito) de sonegar essa amostra do trabalho de Malu Gaspar aos nossos leitores. As razões – estas serão compreendidas ao lê-la. (C.L.)
MALU GASPAR
“Você conhece o Lula?”, perguntou o prefeito de São Paulo, Mário Covas. “Não”, respondeu Emílio Odebrecht. “Não conheço pessoalmente, só de ouvir falar.” Covas achava que Luiz Inácio Lula da Silva poderia ser a solução para os problemas de Emílio. O empreiteiro andava de cabeça quente, preocupado com a greve dos operários do Polo Petroquímico de Camaçari, naquele ano de 1985. Desde sua inauguração, em 1978, o polo enfrentara inúmeras greves, mas esta última se arrastava além do normal. Os três meses de negociação das reivindicações salariais haviam resultado em impasse, e os trabalhadores, num movimento que os sindicatos não controlavam plenamente, ocuparam em 27 de agosto plantas industriais de duas empresas – entre elas a Copene, da qual a Odebrecht era sócia. Só deixaram as fábricas depois que a Justiça determinou a reintegração de posse e os policiais cercaram a ocupação, cientes de que um confronto armado naqueles locais cheios de produtos químicos poderia causar uma tragédia. A greve continuou do lado de fora das fábricas e mobilizou não só as autoridades estaduais, mas o próprio ministro do Trabalho. Movidos pelo lema “recuar é perder”, os operários estavam irredutíveis. Além do evidente abalo que sempre representa para um patrão, a paralisação atrasava e encarecia os planos de diversificação do grupo Odebrecht, ancorados na formação de uma cadeia de produtores de insumos petroquímicos. A greve tinha que acabar o quanto antes.
Lula estava em alta. Líder surgido na grande greve dos metalúrgicos de São Bernardo, em 1978, angariara o respeito de intelectuais e políticos de muitos matizes ao comandar assembleias com mais de 80 mil trabalhadores e depois negociar com os patrões o fim da greve. Desde então, fundara o Partido dos Trabalhadores (em 1980), fora candidato ao governo do estado de São Paulo (em 1982), ajudara a organizar a campanha pelas eleições diretas (em 1984) e, na época da conversa de Emílio Odebrecht com Mário Covas, preparava sua candidatura a deputado federal para a Assembleia Nacional Constituinte. O peemedebista Covas conhecia bem a força de Lula junto aos sindicatos. Os dois haviam trabalhado lado a lado na campanha de Fernando Henrique Cardoso para o Senado, em 1978 (sem votos suficientes para assumir a vaga, ele se tornou suplente). Pensando em ajudar Emílio Odebrecht, de quem era próximo, o prefeito promoveu um encontro com o petista.
Eles se conheceram num sábado à tarde, na casa de Covas, no bairro do Jardim Paulistano. Estavam apenas os três: Lula, Emílio e o anfitrião. Em seu relato sobre aquele dia, o empreiteiro contou que Covas buscou transferir para ele a relação de confiança que tinha com o petista. Apresentou um ao outro, fez elogios a ambos, e deixou rolar. Tanto Emílio quanto Lula gostavam de boa comida, de boa bebida e de boa conversa. A empatia foi imediata. Passaram nove horas juntos. Houve tempo para risadas e trocas de gentilezas. Contaram “causos”, falaram bastante de política e, claro, das greves em Camaçari.
Lula ouviu Emílio com atenção e prometeu ajudar. Disse que conversaria com os sindicalistas que conhecia para chegar a um acordo. Emílio deixou a casa de Covas quando já era noite, encantado com o novo amigo. “Ele tem uma visão muito atualizada das coisas. É um intuitivo”, passou a repetir ao seu time na empreiteira. Habituado a identificar líderes com potencial nos quais pudesse apostar, o empresário tinha certeza de ter encontrado um sujeito diferente. “Ele pega as coisas rápido, ele percebe. É um animal político!” A caminho de casa, Emílio sorria, lembrando-se de uma conversa que tivera com Golbery do Couto e Silva, ex-chefe da Casa Civil dos presidentes Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo. “Lula não tem nada de esquerda, é um bon vivant”, dissera Golbery. O homem sabia das coisas.
Emílio, porém, estava sozinho. Seus parceiros desconfiavam de Lula e do PT. Durante anos tratariam a amizade com o sindicalista como um capricho do chefe. Sabiam do gosto de Emílio por conhecer e se aproximar de novas lideranças. O empreiteiro era, ademais, nordestino como Lula. Provavelmente estava contaminado por uma primeira impressão positiva. Mas petistas eram uma pedra no sapato: acusavam a empresa de corrupção, comandavam greves, propunham comissões parlamentares de inquérito (CPIs) no Congresso para investigar as relações da organização com políticos. Para vários odebrechtianos, a pior coisa que poderia acontecer era o partido chegar um dia à Presidência.
No episódio da greve, porém, Lula os surpreendeu. Muitos anos depois, ao relembrar o caso, o próprio Emílio diria: “Ele não só me ajudou, como criou uma situação de eu ter uma interlocução com os sindicatos. E passei a ter um processo de convívio com ele, quase institucional.” Acostumado a lidar mais com políticos do que com engenheiros, Emílio não era um ás das finanças, mas era craque em interpretar e antecipar determinados movimentos da política. Ao longo dos anos, de vez em quando repetia: “Esse ainda vai se tornar presidente da República.” Se ele pudesse ajudar, o faria com prazer.
Esse era o modus operandi da Odebrecht. Emílio acreditava na potência dos relacionamentos pessoais, muito mais do que no poder de convencimento de argumentos técnicos. E era mestre naquilo que o mercado financeiro chama de “comprar na baixa”. Não foi por outra razão que a empreiteira sempre financiou candidatos a presidente ou governadores de oposição que, mesmo sem estar na crista da onda, pudessem ter alguma chance de vitória. Ou deu ajuda financeira a políticos que, embora importantes, passavam por alguma dificuldade. O próprio Emílio orientava seus subordinados a mapear figuras promissoras ou que estivessem no ostracismo para saber do que estavam precisando. “Amanhã, ele volta [para o governo], vai olhar para a gente de forma diferente.” Lula entrava na categoria dos políticos de oposição com potencial. Disciplinado na prática que o pai, Norberto Odebrecht, havia batizado de “influenciar e ser influenciado”, Emílio passou a ter encontros periódicos e frequentes com Lula.
Em 1985, a Odebrecht era uma holding com nove empresas, as principais delas construtoras – a Norberto Odebrecht, conhecida internamente como CNO, e a Companhia Brasileira de Projetos e Obras (CBPO), adquirida dos herdeiros do empresário Oscar Americano no início da década. Tinha 17 mil funcionários, escritórios em Salvador, no Rio de Janeiro e em São Paulo e obras no Peru e em Angola. Com a crise e a hiperinflação no começo dos anos 1980, o grupo havia passado por dificuldades. Pela primeira vez, fora também alvo de uma CPI, que apurou irregularidades na construção da usina nuclear de Angra dos Reis. A comissão terminou sem punir ninguém, mas apontou uma série de problemas e desvios, manchando a imagem da empreiteira. Em meados dos anos 1980, a Odebrecht finalmente voltou a crescer. Não podia se dar ao luxo de enfrentar prejuízos justamente na área petroquímica, a grande aposta de Emílio para fortalecer o grupo.
Nas décadas seguintes – até que a Operação Lava Jato os separasse -, o empreiteiro e o líder sindical (e depois presidente da República) almoçaram ou jantaram juntos pelo menos três vezes ao ano. Os encontros em geral eram longos, e Emílio aproveitava para tentar incutir em Lula sua visão sobre os assuntos de Estado e de governo, o que dentro da empresa era chamado de “catequese”. Com o tempo, o petista tornou-se também uma boa fonte de informações sobre o ambiente político. Em 1989, quando ocorreu a primeira eleição direta para a Presidência da República, a Odebrecht foi de Fernando Collor de Mello. O ex-governador de Alagoas venceu Lula no segundo turno, após uma campanha em que desestabilizou o petista com ataques pessoais abaixo da linha da cintura (na última semana da disputa, Collor divulgou um depoimento de Miriam Cordeiro, ex-namorada de Lula, em que ela dizia ter sido abandonada quinze anos antes pelo então metalúrgico, logo no início da gravidez. Afirmava também que Lula pediu que ela fizesse um aborto – acusação que o ex-presidente sempre negou). O voto declarado em Collor não impediu que Emílio liberasse recursos para a campanha do PT. Um apoio que não chegava só em dinheiro. Apurados os resultados, o empreiteiro foi um dos primeiros a prestar solidariedade a Lula, como faria nas outras duas derrotas do petista, em 1994 e 1998, para Fernando Henrique Cardoso.
A partir da eleição de 1989, a Odebrecht contribuiria em todas as campanhas do partido – no início com valores não muito altos. A relação entre a empreiteira e o líder popular, entretanto, permaneceu clandestina durante anos. Em público, Lula não só fingia não ter qualquer relacionamento com a Odebrecht, mas também detestá-la. Em 1993, quando Eliseu Resende, então ministro da Fazenda, foi pilhado aceitando favores de um lobista da empreiteira, Lula comentou com jornalistas que cobriam uma das viagens de sua pré- campanha: “Só um idiota não sabia que esse canalha do Eliseu Resende tem compromisso com empreiteiras. O filho da puta do Itamar [Franco, então presidente da República] jogou pela janela a chance de ouro de formar uma boa equipe de governo.” As declarações foram dadas a repórteres da Folha de S.Paulo e da Veja que o acompanhavam na Caravana da Cidadania – como ele chamava as viagens que fazia pelo Brasil. Além da reação indignada de Itamar, a fala de Lula provocou muxoxos nos corredores da Odebrecht. Pragmáticos, porém, os executivos não passavam recibo. Se a ordem, como diziam os documentos da área de relações institucionais da empreiteira, era cativar membros da oposição para “reduzir áreas de agressão”, assim eles fariam – mesmo sendo obrigados a manter-se à sombra, para não afrontar os valores da família petista. Aqui e ali apareciam pistas do relacionamento, como uma declaração de Emílio ao Globo, em 1993: “Demos dinheiro para todas as campanhas, sem exceção.”
No início dos anos 1990, o caso PC Farias, envolvendo negócios escusos do tesoureiro da campanha de Collor, e o escândalo dos Anões do Orçamento, que levou à cassação de vários parlamentares na Câmara, atingiram a Odebrecht. Poucos petistas colheram mais dividendos políticos da onda de denúncias do que o então deputado federal Aloizio Mercadante, que havia inclusive participado, junto com o senador José Paulo Bisol, do PSB, da CPI que apreendeu uma papelada comprometedora na casa de um diretor da empresa. Com base nos papéis, os dois assinaram o relatório que classificou a empreiteira baiana como uma “organização criminosa”. Então muito popular, Mercadante foi entrevistado pela revista Playboy em janeiro de 1994. “E se a Odebrecht oferecesse a você uma casa para passar o fim de semana, e a Camargo Corrêa um helicóptero para você ir, você iria?”, perguntaram os repórteres. “Não, não iria.” “Por quê?”, insistiram. “No caso da Odebrecht, de cada três crimes, eles estão envolvidos em quatro”, respondeu o parlamentar. Em junho do mesmo ano, o senador Bisol, agora na condição de candidato a vice-presidente na chapa de Lula, foi acusado pela imprensa de incluir no orçamento da União emendas destinadas à cidade onde sua família tinha uma fazenda. Anos depois, ele ganharia os processos contra os jornais que haviam publicado as reportagens. Mas o efeito político das denúncias foi o afastamento dos petistas, que começaram a fritá-lo – pegava mal ter um candidato à vice-presidência suspeito de deslizes éticos. Bisol não teve como se segurar, e renunciou. Mercadante o substituiu.
A verdadeira relação de Lula com a Odebrecht, contudo, não teria como permanecer escondida por muito tempo. Finda a eleição de 1994, pouco antes de as contas serem apresentadas ao Tribunal Superior Eleitoral, veio à tona a informação de que a empreiteira havia destinado dinheiro a campanhas vitoriosas do PT nos estados. Cristovam Buarque, eleito governador do Distrito Federal, recebeu 200 mil reais; Vitor Buaiz, vitorioso no Espírito Santo, 35 mil. Quem vazou a informação foi uma ala do próprio PT de Brasília, indignada com a contradição entre o discurso e a prática do partido.
A primeira reação de Lula e do PT foi negar a doação. O tesoureiro da legenda, Paulo Okamotto, tentou se fingir de morto. Recusou-se a responder aos chamados dos repórteres, mas não conseguiu evitar que o envolvessem no imbróglio. O coordenador da campanha de Cristovam Buarque, Hélio Doyle, afirmou que fora Okamotto quem o autorizara a receber os recursos. Segundo Doyle, o tesoureiro de Lula havia dito que a Odebrecht estava interessada em doar dinheiro ao PT para “limpar seu nome”. Nos dias seguintes, os jornais divulgaram que, além da Odebrecht, empresas como a OAS, o grupo Votorantim e o banco Itaú também haviam contribuído. Ao ser questionado a respeito, Lula disse não ver problema. “São empresas em funcionamento, não corrupção ou clandestinidade, o dinheiro é bem visível, trocado por bônus.” E, apesar de admitir que a Odebrecht dera recursos às campanhas para governador, garantiu que a sua não tinha dinheiro da empreiteira. “Isso tudo é futrica. Não posso fazer polêmica com futrica. A informação que eu tenho é que não há dinheiro da Odebrecht. Isso é lorota.”
Dois dias depois, a Odebrecht divulgou uma nota confirmando ter feito doações a diversos partidos, incluindo o PT. “Quanto foi destinado por cada partido a seus candidatos é uma decisão interna de cada um”, dizia a nota. Como as contribuições eram em bônus eleitorais, que funcionavam como recibos “vendidos” aos doadores, a empresa podia doar para uma campanha nacional e, sem que tivesse qualquer controle sobre isso, ter os bônus utilizados por candidatos a cargos estaduais. Aparentemente, foi o que aconteceu. A Odebrecht deu o dinheiro ao PT nacional, que por sua vez repassou aos candidatos locais. No dia seguinte à declaração de Lula, as contas da campanha presidencial foram apresentadas ao TSE. Não havia de fato, entre as doações, nenhum real vindo da Odebrecht.
Estranhamente, porém, a campanha de José Dirceu para o governo de São Paulo recebeu 478 mil reais da Odebrecht – o candidato afirmou ter recebido de 60 mil a 100 mil reais da empresa. Não faltou quem detectasse um indício de que a campanha de Dirceu fora “engravidada” na última hora, para proteger a de Lula de eventuais acusações. A insinuação, repetida não só nos outros partidos, mas até entre petistas, nunca chegou a ser comprovada. Se comparada à arrecadação oficial da campanha presidencial de Fernando Henrique Cardoso, de 33 milhões de reais, a de Lula, com seus 3,3 milhões, podia ser considerada modesta. Muitos anos depois, Emílio Odebrecht disse ter negociado dinheiro de caixa dois para a eleição de FHC com um operador financeiro que não quis se identificar, porque já havia morrido, mas até as copeiras da Odebrecht sabiam se tratar de Sérgio Motta, o Serjão, coordenador de campanha que depois se tornou ministro das Comunicações do tucano.
Sempre que precisava responder sobre o assunto das contribuições, Lula recorria ao argumento de que os outros candidatos haviam recebido muito mais dinheiro que ele. Mas a questão, no caso do PT, era outra. Para uma legenda que tinha a ética na política e o combate à corrupção como bandeiras, era no mínimo constrangedor aceitar recursos de quem eles haviam enxovalhado anos a fio – além do que os tesoureiros de campanha eram explicitamente orientados a não receber dinheiro de empresas envolvidas em irregularidades.
Vindo da Odebrecht, que os próprios petistas qualificavam de organização criminosa, a situação era ainda pior. A incongruência não passou despercebida a jornalistas, políticos de outras legendas e outros empreiteiros em geral. Editoriais do Jornal do Brasil e de O Estado de S. Paulo sustentavam que o episódio igualava o partido de Lula aos demais, e virou lugar-comum dizer, nos jornais e no Congresso, que a Odebrecht havia tirado a virgindade do PT. Os concorrentes, que até então não sabiam da proximidade entre Emílio e Lula, ajustariam seus radares em relação ao petista. Até mesmo o Pacotão – bloco de Carnaval mais conhecido de Brasília – transformou o caso em tema da festa em 1995. O enredo: “A empreiteira estupra a última virgem.”
A polêmica não afetou a relação entre Emílio e Lula. A Odebrecht continuou doando recursos às campanhas petistas, e cada vez mais à medida que aumentavam as chances de o petista virar presidente. Para Emílio, manter Lula por perto era tão importante que ele destacou um executivo só para a tarefa: o diretor comercial da Odebrecht Petroquímica, Alexandrino Alencar, a quem os mais próximos se referiam como “o petista da Odebrecht”.
Baixinho, gordinho e careca, sempre ostentando a barba bem aparada, Alexandrino Alencar é um tipo agradável e bem-humorado, cujas frases e observações frequentemente terminam com “hein? hein?” – o que tanto pode denotar uma pergunta como ser um recurso para não terminar o raciocínio. É um tique curioso, mas não atrapalha sua habilidade de fazer o interlocutor se sentir inteligente e especial. Nascido no Rio de Janeiro, filho de embaixador, Alencar mudou-se aos 15 anos para o Rio Grande do Sul. Seu pai tinha assumido um posto no exterior, mas o rapaz preferiu morar com alguns primos em Porto Alegre, onde se formou em química. Depois, transferiu-se para São Paulo para trabalhar em uma petroquímica do grupo Unipar. Atuou em diversas empresas do setor e morou por mais de uma década no ABC Paulista, até se tornar executivo do grupo Odebrecht, no início dos anos 1990. Tempos antes, Alencar vivia se encontrando com Emílio Odebrecht em viagens de negócios. A onipresença do executivo impressionou o empreiteiro, que resolveu contratá-lo.
A missão de Alencar era cuidar de Lula. Cabia a ele ficar na cola do político e se tornar seu amigo, ajudando “no que fosse preciso”, exatamente como pregava a filosofia da empreiteira. Alencar gostava de comer bem, beber e jogar conversa fora – se a tudo isso fosse possível juntar moças bonitas, tanto melhor. Ele desempenhou a missão sem esforço e com prazer. Logo se enturmou com Lula, que vez por outra telefonava no final de semana para fazer um convite que se estendia também ao presidente da Odebrecht Petroquímica, Álvaro Cunha: “Tô dando um churrasco, venham para cá.” Assim, entre picanhas e maminhas, Lula e a Odebrecht fortaleceram um relacionamento que se revelaria providencial para ambos – mas teria efeitos tóxicos depois de o petista deixar o Palácio do Planalto.
A proximidade entre Lula e a empreiteira não demorou a dar frutos fora das campanhas eleitorais. Ainda no início dos anos 1990, as conversas do executivo com o líder político proporcionaram uma oportunidade que a cartilha da Odebrecht classificaria como imperdível. Greves na petroquímica continuavam frequentes e não se restringiam à Bahia. Repetiam-se nas fábricas geridas pela Odebrecht em outros estados, e a cúpula vivia preocupada, buscando formas de se antecipar a eventuais protestos de trabalhadores. A empresa estava investindo muito dinheiro nas privatizações iniciadas no governo Fernando Collor, e várias delas no setor petroquímico. Queria se ver livre de paralisações e tumultos.
Num papo com Lula, Alencar comentou que estava pensando em contratar uma pessoa para lidar exclusivamente com os sindicatos, e pediu uma indicação. “Olha, tem o meu irmão, o Frei Chico.” José Ferreira da Silva, três anos mais velho que Lula, emigrara de Pernambuco para São Paulo junto com ele e toda a família no final da década de 1950. Trabalhara em uma metalúrgica no bairro do Ipiranga, ingressou no Sindicato dos Metalúrgicos e, em 1968, foi responsável pela entrada de Lula na chapa que concorreu à diretoria da entidade. Frei Chico, que tinha esse apelido por causa da careca franciscana, era uma figura popular no sindicalismo. Mas o que interessava mesmo é que, sendo irmão de Lula, isso lhe conferia ainda mais legitimidade para fazer o que a Odebrecht esperava dele.
Alencar imediatamente contratou Frei Chico como consultor. Era um serviço que ele dominava bem, pois, como disse na época ao executivo, já fizera o mesmo para outras empresas. Sempre que havia insatisfação, reivindicação ou greve em qualquer de suas plantas petroquímicas, a Odebrecht acionava o irmão de Lula, que dava um jeito de se aproximar dos operários – naturalmente sem dizer que estava a serviço da empreiteira. Tanto ele como a direção da Odebrecht sabiam que boa parte das reivindicações em uma greve servem apenas para “engordar a pauta” e dar aos sindicatos margem de manobra durante as negociações. Frei Chico mapeava também essas filigranas e, ao chegar das viagens, dizia a Alencar o que tinha que ser feito para acabar com a greve. Era um arranjo duplamente útil. Além de ter um espião nos sindicatos, a empreiteira colocara o irmão de Lula em sua folha de pagamento.
Após a eleição de Lula para a Presidência, em 2002, já não dava mais para o irmão sair desmontando greves Brasil afora, e a Odebrecht teve de rescindir o contrato de consultoria. Não deixou, porém, de ajudar no sustento do ex-sindicalista. Até porque, agora ele era mais valioso do que nunca nos quadros secretos da empreiteira. Pouco depois da vitória, Alencar – já então diretor de Relações Institucionais da Braskem – e Frei Chico se reuniram e repactuaram o relacionamento em novas bases. Ficou acertado que o irmão do presidente não precisaria fazer mais nada, e ainda assim receberia 9 mil reais a cada três meses, sempre em dinheiro vivo, providenciados pelo Departamento de Operações Estruturadas – que cuidava dos pagamentos no caixa dois. Nos registros do setor, o codinome de Frei Chico era Metralha. A partir de 2007, o valor foi reajustado para 15 mil reais, trimestrais. O dinheiro era entregue pessoalmente pelo próprio Alencar.
O encontro em geral acontecia em bares e restaurantes, onde aproveitavam para colocar a conversa em dia. Alencar se atualizava sobre a política e os meandros do governo, enquanto ambos saboreavam uma cachacinha. Era uma relação conhecida de muito poucos dentro e fora da Odebrecht. Mas Lula, o maior interessado no assunto, sabia o que se passava. O próprio Alencar fez questão de deixá-lo a par da generosidade. Afinal, de que adiantava dar dinheiro ao irmão do presidente da República, se este não ficasse sabendo? A ajuda a Frei Chico duraria doze anos, e só seria encerrada depois da Operação Lava Jato.
O investimento da Odebrecht em Lula foi constante e disciplinado. Mesmo quando a chegada do petista ao Planalto ainda era uma possibilidade remota, Emílio nunca passava muito tempo sem encontrá-lo. Isso costumava ocorrer em jantares, diante de um bom vinho ou uma boa cachaça. O empreiteiro pontificava sobre o Brasil, tentando prover o petista daquilo que, em sua opinião, lhe faltava: uma visão macro da economia e da política.
O principal objetivo de Emílio era blindar Lula contra a doutrina estatizante do partido. Mas, apesar da boa relação, a desconfiança entre a empreiteira e o PT permanecia.
Numa ocasião, em 2001, Emílio aproveitou para dar o recado de forma mais enfática. A Odebrecht estava orquestrando a operação mais importante do grupo em anos, central para a sua sobrevivência: a formação da Braskem, a partir da junção das plantas petroquímicas da Odebrecht com as da Petrobras e do grupo Mariani.
Os últimos anos haviam sido de sacrifício e de brigas na empresa, que quase entrara em falência. O grupo só conseguiu se recuperar graças à fusão das petroquímicas e à criação da Braskem. Era preciso garantir que não houvesse um retrocesso no setor. Daí a pressão interna que Emílio vinha sofrendo.
Para que tudo desse certo, a Petrobras deveria concordar em integrar seus negócios de petroquímica à Braskem e, no futuro, aumentar sua participação na nova empresa sem se tornar majoritária – deixando o comando com a Odebrecht. Vivia-se ainda o governo Fernando Henrique Cardoso, e as coisas agora pareciam caminhar bem.
Emílio acumulara experiência suficiente para saber que boa parte dos problemas que enfrentara na relação com a Petrobras havia se originado nos sindicatos e associações de funcionários, dominados por quadros petistas. Num eventual governo do partido, esses quadros certamente ocupariam posições de comando na estatal. Se Lula, uma vez eleito, decidisse desfazer todo o arranjo, a empreiteira não aguentaria o tranco.
Logo no começo da campanha, quando Lula disse que estava contando com o apoio da Odebrecht, o empreiteiro foi direto: “Chefe, eu gostaria de ver se temos alinhamento pleno com referência a esse negócio da petroquímica. A Petrobras quer estatizar.” Lula reagiu enfático. “Emílio, você me conhece, você nem precisava fazer essa pergunta, porque eu não sou de estatizar.” O empreiteiro não se deu por satisfeito. “Chefe, eu vou na confiança do que o senhor está me dizendo agora, porque sua estrutura não é assim que pensa… ” Lula esboçou um sorriso e encerrou o assunto. “Quem manda sou eu.”
Emílio saiu um pouco mais aliviado da conversa, mas continuou com a pulga atrás da orelha. Ao contar os detalhes do encontro a seu amigo Pedro Novis, presidente executivo do grupo Odebrecht, resumiu seu estado de espírito: “Se por qualquer circunstância houver um revertério nisso, a organização, apesar de toda a minha relação, não vai dar um tostão de ajuda ao PT.” Era um desabafo, mas também um recado, uma vez que caberiam a Novis todas as tratativas financeiras com o PT. E tanto Novis quanto Lula tinham claros os limites impostos por Emílio. Toda vez que encontrava o líder petista – e quase sempre ouvia dele um pedido de recursos para a campanha -, o empreiteiro explicitava que o apoio seria amplo e generoso, mas não irrestrito. Tinha uma condição: que o governo não bulisse com seus negócios na petroquímica.
Lula fazia o possível para deixar Emílio tranquilo. Chegou até a assumir o compromisso de consultar a Odebrecht cada vez que o governo fosse fazer um movimento importante no setor.
Na eleição presidencial de 2002, o petista aparecia bem nas primeiras pesquisas, mas tinha medo de repetir o roteiro das disputas anteriores e perder fôlego no final. Estava cansado de derrotas. Por orientação do marqueteiro Duda Mendonça, adotara uma postura mais serena e conciliadora, consagrada em slogans como “Lulinha Paz e Amor” e “A esperança venceu o medo”. Desde o início, trabalhara para ter um vice-presidente empresário; fechou com José Alencar, dono da indústria têxtil Coteminas e ex-presidente da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais.
Apesar de todos esses movimentos, Lula continuava provocando arrepios no mercado financeiro. Em meados de 2002, quando as pesquisas começaram a mostrar que ele tinha 40% das intenções de voto, um clima de preocupação começou a reinar entre os empresários; a Bolsa caiu, o dólar subiu, e os petistas entenderam que, se não quisessem morrer na praia, dessa vez não poderiam desafiar o mercado. Foi quando surgiu a ideia de uma declaração de intenções que acalmasse o mundo financeiro e o empresariado em geral. Emílio fez questão de contribuir com a iniciativa. Na chamada Carta ao Povo Brasileiro, com pouco mais de 1,7 mil palavras, o presidenciável prometia uma “lúcida e criteriosa transição”, “respeito aos contratos”, e um diálogo com todos os setores da sociedade. Mais importante, assegurava que manteria o superávit fiscal, a estabilidade das contas públicas e o combate à inflação. Em meio a intenções genéricas, um item em particular indicava a digital da Odebrecht: a criação de uma Secretaria Extraordinária de Comércio Exterior, ligada diretamente à Presidência da República, providência que interessava à Odebrecht porque facilitaria o financiamento a obras de infraestrutura e exportação de serviços. Apesar de alguma reação ainda desconfiada do mercado financeiro, a Carta foi bem recebida pelos industriais, que gostaram da ênfase dada à produção e à reforma tributária.
A celeuma se deu entre os petistas mais radicais, que reclamavam dos agrados ao mercado. A posição de Lula, entretanto, prevaleceu.
E, aos poucos, os executivos da Odebrecht foram identificando no partido os melhores interlocutores para defender seus interesses. Logo se afeiçoaram a Antonio Palocci, que se tornara coordenador de campanha no início de 2002, no lugar do prefeito de Santo André, Celso Daniel, assassinado em janeiro daquele ano. Na primeira vez que pediu dinheiro ao amigo, Lula solicitou que Emílio acertasse os detalhes sempre com Palocci. Emílio, por sua vez, delegou a Pedro Novis a missão de negociar os valores e fazer com que o dinheiro chegasse à campanha.
Novis recebeu Palocci pela primeira vez em São Paulo, em seu escritório na Avenida Rebouças, num prédio anexo ao Shopping Eldorado, no bairro de Pinheiros, onde ficava a sede da organização. Como tratavam sobretudo de assuntos práticos, em conversas breves e objetivas, o mais comum era se encontrarem ali mesmo, e não em almoços e jantares. Isso não impedia Novis de aproveitar a ocasião para, em suas palavras, alertar Palocci a respeito de como certas ideias do PT poderiam atrapalhar a imagem de Lula no meio empresarial. Sempre que tinham chance, os executivos de Emílio deixavam claro que o “apoio expressivo” ao partido não seria gratuito. Eles esperavam que o controle do setor petroquímico fosse mantido com a iniciativa privada – e, de preferência, concentrado na Braskem. Um dos negócios que tinham em mente era a compra do grupo gaúcho Ipiranga, do qual a Odebrecht já era sócia no parque petroquímico de Triunfo, no Rio Grande do Sul. Consultados, Lula e Palocci disseram ver o projeto com bons olhos.
Entre alertas e promessas, acertavam-se as doações – quase tudo por meio do caixa dois. Uma vez resolvidos os valores, Palocci e Novis repassavam aos subordinados a tarefa de colocar tudo em prática. Pela Odebrecht, cabia ao antigo funcionário da área financeira, Antonio Ferreira da Silva Neto, providenciar o envio do dinheiro, seguindo instruções dadas pelo tesoureiro do PT, Delúbio Soares, professor de matemática e sindicalista em Goiás.
Tempos mais tarde, Novis estimaria em 20 milhões de reais as doações da empreiteira à campanha de Lula em 2002. A quantia é quase a metade do que o PT declarou ao TSE ter gasto na campanha, mas na papelada a Odebrecht aparece doando bem menos: 1 milhão de reais. À medida que a vitória ficava mais palpável, mais empresários procuravam uma forma de se aproximar do PT. Para isso, vários deles recorriam à intermediação da Odebrecht, pois sabiam das suas relações com Lula presidenciável. A empreiteira fazia tal papel com satisfação.
Em outubro de 2002, alguns dias depois do primeiro turno, Pedro Novis convidou Lula e Palocci para um jantar em sua casa. O candidato havia angariado 39,4 milhões de votos na primeira etapa das eleições, e rumava como franco favorito para o segundo turno, contra José Serra, ministro da Saúde de Fernando Henrique Cardoso. No espaçoso apartamento de Novis, em frente ao Parque Villa-Lobos, reuniram-se naquela noite Emílio Odebrecht, Luiz Fernando Furlan, presidente da Sadia, e Pedro Henrique Mariani, do grupo Mariani, antigo sócio e parceiro da Odebrecht. O então presidente da multinacional Dow Química, José Eduardo Senise, também estava presente, bem como Alexandrino Alencar, da Odebrecht, e Miguel Jorge, executivo do Santander que trabalhara na Volkswagen e já conhecia Lula dos tempos do sindicato. Para quase todos, era a última chance de conversarem com o futuro presidente antes da vitória.
Foi Emílio quem disparou as perguntas que seus pares gostariam de fazer ao petista, até que os demais tomassem a iniciativa de falar. Furlan, que havia sido apresentado a Lula naquela noite, foi franco. Disse que o discurso do PT ainda provocava temores no empresariado e que o candidato precisava controlar “seus radicais”. Preocupado em agradar o mercado sem desencantar seu público original, Lula dava uma no cravo e outra na ferradura. Na campanha, criticava setores do capitalismo brasileiro. Nos jantares com os empresários, ostentava uma agenda pragmática e conciliadora. Dessa maneira, conquistou a todos naquela noite (e pelo jeito, também foi conquistado, já que dois dos presentes se tornariam seus ministros). Ao final, os empresários, bem-humorados, comentaram que o petista não comia criancinhas, não tinha o ranço da esquerda nem se alinhava a radicalismos antiquados, e que talvez viesse a ser um bom governante.
Semanas depois, confirmada a vitória, Lula comemorou no Hotel InterContinental, em São Paulo, cercado de correligionários e bajuladores. Emílio não apareceu, nem ninguém da Odebrecht. Não era necessário. O empreiteiro apostara em Lula quando ninguém lhe dava importância, superara as desconfianças e participara da construção daquele presidente da República. Como no dito popular, os dois haviam comido muito sal juntos, e isso bastava. No fundo, Emílio considerava-se, ele próprio, um vitorioso. Todo o investimento valera a pena. E os dividendos para a Odebrecht, ele tinha certeza, seriam mais do que recompensados.
NOVA ORDEM
A luz solar que atravessa as paredes envidraçadas da biblioteca do Palácio da Alvorada já estava esmaecendo quando o porta-voz da Presidência da República, André Singer, encaminhou Emílio Odebrecht e seu time para a sala onde se reuniriam com o presidente Lula.
O empreiteiro e seus principais executivos haviam desembarcado horas antes em Brasília, no jato da companhia, munidos de laptops, uma apresentação em PowerPoint caprichada e um roteiro detalhado para o discurso que fariam. Embora aparentassem tranquilidade, Emílio, Pedro Novis, Alexandrino Alencar e José Carlos Grubisich, então presidente da Braskem, estavam bem apreensivos. A conversa seria difícil. O novo governo tinha apenas seis meses, mas a promessa de convergência de propósitos feita na campanha não vinha sendo cumprida.
Logo que assumiram o governo, os petistas começaram a defender que a Petrobras retomasse o protagonismo no setor petroquímico, readquirindo participações relevantes e reivindicando voz ativa. Algumas conversas começaram a ser travadas nos bastidores para que a estatal se associasse a outras empresas, como a Basell, uma joint venture da Basf com a Shell que disputava mercados com a Odebrecht no continente. Sempre que interpelados a esse respeito, os diretores da Petrobras diziam que nada havia mudado. Que nunca houvera uma determinação explícita para ficar ou sair da área petroquímica e que, portanto, estavam apenas seguindo em frente na sua missão de aproveitar boas oportunidades de negócio e garantir melhores retornos. Emílio e sua equipe, porém, tinham certeza de que estava em curso uma estratégia da estatal para crescer nesse mercado e desmontar a hegemonia da Odebrecht. Isso criaria a esdrúxula situação de a Petrobras ser ao mesmo tempo sócia minoritária e concorrente da Braskem. O que poderia ser desastroso, uma vez que a estatal era a única fornecedora de matéria-prima para a indústria petroquímica, capaz de interferir nos destinos das empresas do setor.
O tema da matéria-prima era justamente o que concentrava os maiores conflitos nas reuniões entre os executivos da Petrobras e da Braskem. Historicamente, a estatal fornecia nafta e propeno, entre outros insumos, às petroquímicas, e recebia o pagamento em duas semanas, mais ou menos. Na prática, a Petrobras financiava a Braskem, que contava com esse prazo na gestão do caixa. Só que a alta do dólar havia levado a uma crise. Primeiro por que o preço da matéria-prima acompanhava a moeda norte-americana, e depois porque boa parte do endividamento da Braskem era em dólar. A dívida aumentou muito, a empresa começou a pedir mais crédito e mais prazo para pagar as faturas, e a Petrobras chegou a negociar garantias adicionais, novos prazos e condições de pagamento. Manteve, porém, certos limites ao “cheque especial”, visando diminuir o risco de calote. Para a Odebrecht, isso era um problemão.
Sentado sobre o cofre da Petrobras estava Rogério Manso, diretor de Abastecimento, que cuidava também da parte de petroquímica. Funcionário de carreira – formado em engenharia civil e contratado por concurso -, ele ascendera ao cargo no governo FHC e continuava na posição, contra todas as expectativas. Manso não era petista – longe disso -, mas tinha boa relação com o novo presidente da estatal, José Eduardo Dutra, ex-senador pelo PT de Sergipe. Administrava uma área muito sensível, responsável pelo fornecimento de combustível para todo o Brasil. Como nem Dutra nem o PT acharam de imediato alguém para substituí-lo, Manso foi ficando. Tocava os negócios da empresa como achava que devia.
Às vésperas da visita dos diretores da Odebrecht ao Alvorada, ele havia decidido cutucar uma velha ferida: o contrato de Paulínia. Firmado em 1997, durante o governo FHC, o documento ditava as regras para a associação entre Petrobras e Odebrecht na construção de um polo petroquímico no interior de São Paulo. Nele havia uma cláusula dizendo que, sempre que fosse fazer um novo investimento no setor, a estatal deveria oferecer sociedade primeiramente à Odebrecht. Só se a organização não quisesse participar, a Petrobras estaria liberada para fazer uma nova parceria. O contrato, que subordinava os interesses da Petrobras aos da Odebrecht, provocou grande escândalo, e o negócio foi suspenso.
Em 2000, a Secretaria de Direito Econômico, a SDE, e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade, determinaram que o acordo fosse alterado para deixar claro que a sociedade se referia somente a Paulínia. De resto, a autonomia da Petrobras seria preservada para se associar a quem quisesse sem ter de pedir autorização à Odebrecht. Àquela altura, porém, os planos de construção do polo em Paulínia já haviam sido engavetados, e assim permaneceriam até o final da gestão FHC. Com a mudança de governo, a Odebrecht propôs ressuscitar o negócio. Manso fez as contas e concluiu que só valeria a pena a sociedade na fábrica com a Odebrecht se a Petrobras pudesse cobrar mais pela matéria-prima ali produzida. Foi o que ele disse ao presidente da Braskem, José Carlos Grubisich, nas diversas ocasiões em que discutiram o assunto. Do contrário, era melhor a estatal construir a fábrica sozinha ou procurar outros sócios. Grubisich contra-argumentou, mas o diretor de Abastecimento não cedeu um milímetro. Como não chegaram a um acordo, Manso denunciou o contrato, considerando-o cancelado. A atitude acendeu um alerta na sede do grupo baiano.
“O Emílio nunca chia”, disse Fernando Henrique Cardoso, em seus Diários da Presidência. Na verdade, Emílio chiava bastante e chiava alto. Como no início do governo Lula. Primeiro, ele procurou o presidente, e os dois combinaram que o executivo Alexandrino Alencar e o chefe de gabinete da Presidência, Gilberto Carvalho, tentariam resolver a questão. Não adiantou. Emílio então enviou e-mails e foi se encontrar pessoalmente com José Eduardo Dutra – que, nas palavras do empreiteiro, só o enrolava.
Exasperado, Emílio voltou a Lula para uma conversa definitiva. “Presidente, o senhor se comprometeu com o nosso programa, mas a diretoria da Petrobras e o PT estão nos boicotando. Tenho uma proposta: em vez de eu estar aqui trazendo as minhas informações e conversando com o doutor Dutra e isso não dar em nada, vamos fazer uma reunião na qual o senhor possa chamar os seus ministros, Dutra e quem mais o senhor achar que deve, e eu venho para cá e trago uma ou duas pessoas da minha parte”, disse Emílio. “Se o senhor estiver de acordo, é a melhor solução, porque a gente coloca isso na mesa, e temos uma discussão definitiva. Aí eu vou saber qual o meu programa para a frente.” Lula marcou a reunião, e ali estavam eles, no Palácio da Alvorada, enfileirados de um lado da mesa, prontos para o embate. Do outro lado, junto com o presidente, estavam Antonio Palocci, Dilma Rousseff e José Eduardo Dutra.
Vista aos olhos de hoje, a cena poderia ser tomada como um prenúncio do escândalo que arrasaria a Odebrecht e o petismo, mais de uma década depois. Emílio tinha por hábito chegar rindo às reuniões e puxar algum papo inofensivo, antes de ir ao que interessava. Naquele dia, no entanto, estava bem mais formal e circunspecto. Sacou de sua pasta um texto de quatro páginas e pediu desculpas: naquela reunião, excepcionalmente, iria ler um discurso. “Não tenho o dom do improviso do nosso presidente, e o assunto é muito importante para que eu cometa falhas que podem ser induzidas pelo coração.”
Emílio considerava a questão dramática e, diante de Lula, não economizou nas tintas. Declarou-se perplexo com os movimentos da Petrobras e disse que estes contrariavam a lógica que os tinha levado a investir no setor petroquímico, bem como as promessas feitas ao grupo durante a campanha. Também reclamou da falta de respostas dos escalões do governo a seus questionamentos sobre a estratégia da Petrobras, e exortou Dutra a assumir uma posição. “Se, de fato, a intenção da Petrobras for voltar a intervir economicamente em um setor privatizado, e voltar a competir com empresas às quais fornece 70% da matéria-prima, é indispensável que possamos discutir com clareza e abertura o futuro do investimento nacional privado na petroquímica.” Quando chegou a sua vez de falar, o presidente da Petrobras também não aliviou.
Dutra não estava nada satisfeito com a Odebrecht. Dizia que, no governo anterior, a estatal havia sido forçada a sair do setor – um erro, em sua avaliação. Ele pretendia reverter esse movimento. Todas as grandes petroleiras do mundo tinham seu braço petroquímico, e a Petrobras tinha que ter um também. A estatal não pretendia sufocar ou combater ninguém, mas também não iria se prejudicar em nome dos interesses da Odebrecht. “O que estamos fazendo, por ora, são estudos. Não existe uma estratégia definida de atuação na petroquímica.”
Emílio não aceitou as explicações. Afirmou que as iniciativas da Petrobras desmentiam as afirmações de Dutra. Repetiu que o compromisso estabelecido na época da campanha não estava sendo cumprido. E, com volteios próprios de quem manda dando a entender que está pedindo, deixou claro que não só rejeitava aquela atitude, como queria ver Manso, o diretor de Abastecimento, fora do cargo. E ameaçou: se a Petrobras continuasse atuando contra a Odebrecht, o grupo sairia do setor petroquímico.
Lula ouvia a discussão quieto, cofiando a barba grisalha. Depois que todos falaram, o presidente tomou a palavra. Disse que não haveria retrocesso – em seu governo, o setor seria comandado por agentes privados, exatamente como havia prometido a Emílio. A Braskem seria fortalecida e sempre seria ouvida antes de qualquer nova iniciativa da Petrobras. Mandou que Emílio e Dutra se encontrassem de novo, a sós, para acertar os ponteiros. E encerrou o assunto, apesar da absoluta contrariedade que causou ao presidente da estatal.
A posição enfática de Lula fez com que os empreiteiros saíssem aliviados da reunião. A tranquilidade, contudo, duraria pouco. Logo eles perceberam que nem mesmo o presidente, com toda a sua força e popularidade, conseguia fazer com que suas ordens fossem sempre cumpridas – especialmente na Petrobras. A estatal, que se movia como organismo independente, resistia toda vez que um governante tentava colocar seus interesses à frente dos da empresa. Não era fácil dobrar a Petrobras, algo que tanto Lula como a Odebrecht passariam muito tempo tentando fazer, sem nunca conseguir totalmente. A disputa de poder entre as duas companhias continuou ao longo dos anos, em sucessivos rounds. Ora vencia uma, ora outra. Sempre que era chamado a reforçar seu compromisso com a Odebrecht, Lula o fazia. Ainda assim, a Petrobras se rebelava.
De seu lado, Emílio tampouco mudara de ideia: queria ser um player relevante na petroquímica brasileira e mundial, e uma estrela do setor privado. Contudo, a despeito de ter conquistado o controle do setor, continuava endividado, e seguia pleiteando o socorro estatal. No mundo ideal da Odebrecht, o Estado brasileiro seguiria injetando dinheiro no grupo sem tomar conta dos ativos. Como dizia o próprio Emílio, quando a Braskem estava sendo criada: “Ela [a Petrobras] pode aumentar sua participação, desde que não seja majoritária.” Ele não se conformava com o fato de que, para Dutra e seu grupo, só faria sentido injetar dinheiro na Braskem se fosse para a Petrobras ter mais poder.
Foi o ministro da Casa Civil, José Dirceu, quem deu a senha a Alexandrino Alencar. “Procure o Janene, com ele dá para conversar.” O diretor da Odebrecht estava aflito com as barreiras na Petrobras, e o ministro achava que o deputado paranaense podia ser um bom aliado. Aos 48 anos, José Mohamed Janene estava em seu terceiro mandato e presidia a Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados, responsável por revisar leis para o setor e fiscalizar estatais como as poderosas Eletrobras e Petrobras. Eleito pelo PPB, partido de Paulo Maluf, ex-prefeito e ex-governador de São Paulo, Janene, havia sido, por anos, apenas um típico representante do baixo clero fisiológico. Nos últimos tempos, vinha galgando degraus na escala de influência política do Congresso. Dono de várias empresas, inclusive uma firma de iluminação pública e uma fábrica de calçados, Janene era bom em cálculos, e logo aprendeu a manejar a burocracia da liberação de verbas por meio de emendas parlamentares – a ponto de ser apelidado pelos colegas de “Senhor Emenda”. Até 2002, fazia parte da base parlamentar de Fernando Henrique Cardoso. Logo após a vitória de Lula, liderou uma rebelião no PPB e assumiu o controle do partido para poder aderir ao novo governo, junto com os correligionários Pedro Corrêa, de Pernambuco, e Pedro Henry, do Mato Grosso. Uma vez no controle, trocaram o nome da legenda para Partido Progressista (PP) e se bandearam para o lado de Lula. Em retribuição pelo apoio, exigiram cargos.
No momento em que Alencar se apresentou na sala de reuniões da comissão presidida por Janene, num anexo da Câmara, o PP já tinha conseguido indicar o presidente da Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil, a TBG, subsidiária da Petrobras que administrava o fornecimento de gás para o Sul e o Sudeste do país. O indicado fora Paulo Roberto Costa, funcionário de carreira da Petrobras, que, além de ter reconhecida competência, era paranaense como Janene. Na TBG, ele se adaptara rapidamente ao esquema do deputado, que consistia basicamente em usar os contratos fechados na diretoria para cobrar propina e desviar dinheiro. O problema era que o total da “arrecadação” – 200 mil reais por mês – vinha sendo considerado baixo demais em relação aos 35 votos que o PP garantia ao governo Lula na Câmara. Como recompensa pelo suporte político, Janene ambicionava obter o comando de uma área mais poderosa e com mais recursos: a diretoria de Abastecimento da Petrobras, comandada por Rogério Manso. E quem conhecia bem o deputado sabia que ele não sossegaria enquanto não conseguisse.
José Dirceu sabia do que estava falando. Janene era mesmo o aliado perfeito para a Odebrecht enfrentar Manso. Grandalhão e mal-encarado, tinha temperamento difícil e acessos de truculência quando contrariado. Mas era ao mesmo tempo bom de negócio e de conversa, principalmente quando queria cativar o interlocutor. Interessava-se de forma especial por tudo o que tivesse a ver com a Petrobras. Se o assunto era a petroleira, Janene tinha sempre muitas perguntas e observações a fazer.
Naquela tarde, na Câmara, o assunto rendeu. Alencar expôs ao deputado a enorme dificuldade da Odebrecht em fechar com a Petrobras o contrato de fornecimento de nafta. Segundo ele, uma petroquímica do tamanho da Braskem não podia prescindir de um contrato de longo prazo que garantisse o fornecimento de uma matéria-prima que representava cerca de 70% de todos os seus custos. Tampouco podia aceitar que o governo, depois de passar anos dizendo para os empresários se endividarem para comprar os negócios da Petrobras na petroquímica, decidisse dar um cavalo de pau na estratégia e tomar tudo de volta. O jogo duro de Manso e sua turma tinha que acabar. Janene ouviu e concordou em gênero, número e grau. Ao final, deixou claro que, caso alguém de sua confiança assumisse a diretoria de Abastecimento, a Odebrecht teria um parceiro leal na Petrobras.
No fundo, o deputado e a empreiteira precisavam um do outro para vencer a resistência do PT. Janene vinha tentando apear Manso do posto havia meses, sem sucesso. Desde o início do governo Lula, José Dirceu havia autorizado o PP a se apossar do feudo. Só pediu ao grupo que, antes, tentasse se acertar com o próprio Manso, porque Dutra se recusava a demiti-lo. Janene assentiu e, embora aquele não fosse o acerto que tinha em mente, preferiu ser pragmático e falar com o diretor na sede da Petrobras, no Centro do Rio de Janeiro. Se Manso concordasse em participar de seus esquemas, tudo bem. Continuaria no cargo.
O encontro foi breve, mas decisivo. Janene chegou à reunião acompanhado dos deputados Pedro Corrêa e João Pizzolatti, ambos do PP. Depois de informar que estava ali porque o partido havia passado a apoiar o governo Lula, quis saber quais eram as atribuições da área de abastecimento. Manso começou a dar uma resposta bem longa e burocrática, de propósito. Janene cortou a lenga-lenga: “O negócio é o seguinte: queremos uma lista de todas as empresas com as quais a sua área faz negócios.” Manso enrubesceu e mal conseguiu se conter. “Não vou entregar lista nenhuma. Eu não sei quem mandou vocês aqui, mas podem voltar para essa pessoa e dizer que isso não vai acontecer.” O trio deixou a sala revoltado.
Não demorou até que Janene fosse a Dirceu pedir a cabeça de Manso. Se quisesse o apoio de seu partido, o governo teria de demitir o diretor de Abastecimento e colocar Paulo Roberto Costa no lugar. O deputado encontrou o ministro assoberbado com uma verdadeira rebelião parlamentar. Não era só a bancada do PP que via seus interesses represados pela barreira petista. PMDB, PTB e PL também pressionavam por recursos e cargos no governo – e, como não haviam conseguido o que queriam, os partidos simplesmente trancaram a pauta da Câmara. A legislação diz que o Congresso não pode votar nenhuma outra proposta enquanto as medidas provisórias feitas pelo presidente não forem apreciadas. No final de abril de 2004, já eram vinte as MPs na fila da votação, e por isso havia duas semanas que não se votava nada. O governo se viu paralisado, e os partidos foram claros: só destravariam as votações se o governo atendesse aos seus pedidos.
Foi mais ou menos nessa época que Dirceu capitulou. Assim como faria com as outras legendas, chamou as lideranças do PP e disse que já fizera tudo que estava ao seu alcance, mas não conseguia transpor a blindagem da Petrobras. Só havia uma pessoa capaz de resolver o problema: Lula. Iniciou-se, então, uma romaria ao terceiro andar do Palácio do Planalto, onde despacha o presidente da República. Foi lá que ele recebeu para uma reunião os líderes do PP, o próprio Dirceu, o ministro das Relações Institucionais, Aldo Rebelo, e Dutra, da Petrobras. A certa altura, Lula cobrou deste último a nomeação de Costa. Dutra tergiversou: “A indicação de um diretor tem que passar pelo conselho, presidente, e isso está um pouco complicado… ”
Lula não se deu por satisfeito. Não era a primeira vez que pediam a cabeça de Manso e que Dutra tentava segurá-lo no cargo. Até então, Lula havia feito vista grossa à resistência do presidente da Petrobras. Mas a embromação já durava um ano e as coisas estavam saindo do controle. Ele não podia mais colocar em risco o governo em nome de pruridos corporativos. “Dutra, se o Paulo Roberto Costa não estiver nomeado em uma semana, eu vou demitir e trocar todos os conselheiros da Petrobras”, disparou. Dutra ainda tentou contemporizar. “Veja bem, presidente, eu entendo a posição deles, não é tradição da Petrobras trocar um diretor assim, sem mais nem menos.” O petista não quis saber. “Se eu fosse pensar em tradição, nem você seria presidente da Petrobras, nem eu era presidente da República!”
Em 14 de maio de 2004, Paulo Roberto Costa finalmente foi nomeado diretor de Abastecimento da Petrobras. Janene, então, chamou Alexandrino Alencar e lhe disse: “Agora tenho meu cara lá. Podemos conversar.”
Marcio Faria era o típico figurão do mundo da construção civil – poderia até ser confundido como um dos donos da Odebrecht. Estava no grupo desde os anos 1980, quando a Odebrecht adquiriu a Tenenge, empresa de montagem industrial da qual era executivo. Ascendeu e chegou a presidente da área de engenharia industrial da organização, onde respondia ao presidente da construtora, Marcelo Odebrecht. Aos 50 anos, alto, grisalho e boa-pinta, sempre com ternos bem cortados, Faria exalava poder. Era educado e gentil, e tinha fama de saber lidar com pessoas, independentemente da origem social. Não precisava fazer esforço para ser obedecido. Como bom mineiro, nas raras vezes em que perdia uma parada, recolhia os flapes e aguardava a melhor hora para tentar novamente.
Entre as poucas pessoas de fora da Odebrecht que tinham feito Marcio Faria recuar estava Renato Duque, diretor de Engenharia e Serviços da Petrobras. Funcionário de carreira, admitido no mesmo concurso de Paulo Roberto Costa, Duque havia chegado à diretoria por indicação de José Dirceu. Tinha um mega-orçamento para administrar e um pistolão de respeito. Sua diretoria contratava obras, serviços e equipamentos para todos os demais departamentos – gás, abastecimento, exploração e pesquisa. Só em plataformas, principal produto da subsidiária da Odebrecht comandada por Faria, estavam previstos investimentos de quase 6 bilhões de reais. Todas as grandes encomendas passavam por Duque. Faria não ignorava a ligação do diretor com o PT, mas tinha muito mais confiança nos elos de Emílio e Lula.
Desde o início de 2004, a Odebrecht disputava as concorrências para construir os cascos das plataformas P-51 e P-52, que operariam na Bacia de Campos. As duas foram as primeiras concorrências a obedecer à nova política de conteúdo nacional mínimo obrigatório de 60% dos componentes e serviços de engenharia e montagem. Na Petrobras, a regra era que o primeiro colocado levava a primeira plataforma a ser construída, e o segundo ficava com a outra. Os técnicos da estatal tinham a expectativa de pagar no máximo 520 milhões, e no entanto nenhum dos concorrentes havia sequer chegado perto desse valor. O mais barato que se conseguiu foi uma proposta da Fels Setal, de 774 milhões de reais por plataforma. O consórcio da Odebrecht com a italiana Saipem disputou a licitação e ofereceu o segundo melhor preço, de 1 bilhão de reais. Em face disso, Duque tomou uma decisão radical e fez algo inédito na história da Petrobras. Contratou a Fels Setal (uma associação da cingapuriana Keppel Fels com a brasileira Setal) e simplesmente cancelou a segunda encomenda.
Marcio Faria ficou indignado. Desde que atuava na Petrobras, a regra fora sempre a mesma. O fato de o consórcio da Odebrecht, o segundo colocado, não ter sido chamado, era uma virada de mesa que a companhia líder absoluta desse mercado não podia engolir. Numa reunião, Duque ouviu impassível os argumentos de Faria. E não pareceu preocupado. Sua palavra final: o contrato ia ser feito do jeito dele e pronto. Faria não teve alternativa a não ser assimilar o revés e aguardar a hora de voltar à carga.
Pouco tempo depois, a conversa com Duque veio à memória do executivo, quando ele ouviu um de seus subordinados, Rogério Araújo, explicar que havia recebido um pedido de propina do gerente de Serviços, Pedro Barusco, número dois de Duque. A Odebrecht acabara de conquistar o contrato para a construção de parte da plataforma que escoaria o óleo produzido na Bacia de Campos, batizada de PRA-1. Vencera a concorrência sem mutreta, num consórcio com a UTC (cuja participação era de 35%), do empreiteiro Ricardo Pessoa. Agora, Barusco queria 8 milhões de reais, ou cerca de 1 % do valor total da obra (calculada em 989 milhões de reais), para assinar o contrato. O gerente explicara a Araújo que os recursos seriam entregues ao PT, sem entrar em detalhes sobre quem ficaria com o dinheiro.
Era a primeira vez no governo do PT que uma proposta daquela natureza chegava à Odebrecht. Sempre havia algum risco de Barusco não estar falando a verdade – o dinheiro poderia parar em outra conta que não a do partido. Faria, no entanto, nem pensou nisso. Sabia que Barusco falava por Duque, e que este tinha sido nomeado na cota do PT. Além do mais, sua última conversa com o diretor de Serviços fora tão ruim que não podia desperdiçar a oportunidade. A propina milionária era ótima ocasião para recompor as relações com o poderoso diretor. “Pode pagar”, Faria ordenou a Araújo.
O esquema dos novos hierarcas da Petrobras ainda estava em formação. Barusco cobrava propinas na Petrobras havia algum tempo, mas ainda não tinha sua própria conta no exterior, nem um “laranja” fixo, que conhecesse o caminho das pedras. Foi preciso improvisar. Ele conseguiu que um amigo consultor topasse assinar um contrato fajuto de prestação de serviços para justificar o pagamento. Nos consórcios entre empreiteiras, a regra era dividir a propina na mesma proporção que cada uma detinha na sociedade. A UTC, portanto, depositou os seus 35% em contas de duas consultorias indicadas por Barusco.
O contrato da PRA-1 inaugurou uma prática nova até para o experiente Marcio Faria. Ele prestava serviços para a Petrobras havia décadas e já havia pagado propina a diversos funcionários públicos, em vários contratos. Eram, contudo, pagamentos avulsos, negociados caso a caso. A cobrança de uma porcentagem fixa de todos os contratos para o partido político era uma inovação. A primeira de uma série.
Emílio Odebrecht circulava orgulhoso pelo amplo salão da sede da Confederação Nacional da Indústria, a CNI, ao lado de Lula, naquela noite do início de novembro de 2004. Equipes da Odebrecht e da Presidência da República haviam planejado tudo para que o evento fosse grandioso. Estavam presentes em Brasília pelo menos sete ministros de Estado, o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, o ex-presidente José Sarney, que então presidia o Senado, e políticos das mais variadas estirpes. Um batalhão de repórteres e fotógrafos acompanhava a comemoração dos 60 anos da Odebrecht. A empresa celebrada naquele evento tinha pouco a ver com a de 1985, quando Emílio e Lula se encontraram pela primeira vez – exceto pelo fato de que estava emergindo de uma crise. A Odebrecht de 2004 era uma multinacional com 50 mil funcionários distribuídos por quinze países, faturava 17,3 bilhões de reais e começava a colher os louros da proximidade com o governo petista.
No centro das atenções, Emílio e Lula passeavam pela exposição de painéis que contavam a história da Odebrecht desde a fundação. O empreiteiro dava explicações e contava causos ao presidente. A certa altura, os dois pararam em frente a uma maquete de plataforma de petróleo. Lula aproveitou a deixa: “Emílio, vocês têm que fazer essas plataformas todas que a Petrobras quer, vocês têm que ter estaleiro aqui!” O empreiteiro respondeu de pronto: “Sim, claro, presidente, vamos participar das concorrências, junto com as outras empresas brasileiras.” E Lula reforçou: “Temos que tirar esses estrangeiros daqui do Brasil, pô! Me diga, onde é que você fez essa aí?” Emílio respondeu, sorrindo meio constrangido: “Essa nós fizemos em Cingapura, presidente.” E Lula fechou questão: “Não, porra! Emílio, você tem que montar estaleiro e fazer essas plataformas aqui!”
A construção de plataformas de petróleo no Brasil havia sido uma das bandeiras de campanha de Lula. Chamara a atenção uma cena do programa eleitoral do PT em que o candidato, discursando para funcionários do estaleiro Brasfels, em Angra dos Reis, dissera que não iria mais aceitar que a Petrobras criasse empregos em Cingapura em vez de fazê-lo no Brasil. Aos jornalistas, depois da gravação, Lula disse que a Petrobras havia cometido dois crimes. “O crime de levar dinheiro para fora [do país], quando estamos precisando de dinheiro aqui dentro, e o crime de gerar empregos lá fora, quando temos de criar empregos aqui.”
Quando ele assumiu a Presidência da República e os empresários nacionais foram convocados a fabricar os equipamentos, ficou claro que a falta de estaleiros no Brasil não era um problema de má vontade. A demanda era espetacular. As encomendas que a Petrobras previa fazer – 22 petroleiros até 2010 – representavam mais do que tudo o que fora comprado nos governos de Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Mas implantar uma nova indústria praticamente do zero envolvia custos e riscos que nem todos estavam dispostos a bancar. O último grande surto de construção de navios para a indústria petroleira havia ocorrido nos anos 1980, e os equipamentos fabricados naquela época nem de longe se comparavam aos utilizados agora pela Petrobras para prospectar em águas profundas. Endividados e defasados, os estaleiros locais não tinham crédito nem mão de obra treinada em quantidade suficiente. E, como se tratava de uma atividade completamente nova, era necessário ainda contratar diversos seguros e garantias para cobrir problemas derivados do que se costumava chamar de “curva de aprendizado” – a combinação de tempo e esforço necessários para atingir o padrão de competitividade internacional.
Caberia aos bancos dar o financiamento e, à indústria, contratar os seguros. Os empresários nacionais, porém, recusavam-se a investir sem apoio do governo. No momento em que Lula e Emílio confraternizavam em frente à réplica da plataforma cingapuriana, uma intensa discussão se desenrolava, nos bastidores e pela imprensa. O governo já havia direcionado o Fundo de Marinha Mercante para financiar a implantação dos estaleiros, mas ainda faltava muita coisa para fazer com que os empresários se animassem a construí-los. E Lula sabia que, apesar do sorriso de Emílio, a Odebrecht ainda não havia embarcado para valer no projeto das plataformas.
Depois do tour pela exposição, já no coquetel, Lula esbarrou em Marcelo Odebrecht. Aproveitou logo para cobrá-lo: “Ô Marcelo, seu pai disse que você não está querendo entrar no negócio dos estaleiros! Como é isso?” Ele não se fez de rogado. “Olhe, presidente, eu acho que, para nós, não faz sentido entrar para perder dinheiro”, disparou, na lata, sem se importar com a reação do presidente da República.
Àquela altura, Marcelo presidia a construtora, mas ainda devia obediência a Pedro Novis e ao pai, cuja relação com Lula talvez fosse mais próxima do que era com FHC. No palco, ao discursar no evento dos 60 anos, Lula chamou Emílio de “companheiro e amigo”, e demonstrou conhecer bem o rol de atividades da empreiteira. “Quem viaja para a América do Sul ou para alguns países africanos, ou viaja muito pelo Brasil, normalmente, encontra a mão da Odebrecht em alguma coisa. Eu penso que não são muitos os quilômetros de estradas brasileiras que a gente pode percorrer sem passar por um quilômetro de asfalto feito pela Odebrecht. Não são poucas as casas que recebem energia elétrica que não tenham um bom pedaço do trabalho da Odebrecht na construção das hidrelétricas brasileiras. Acho que mais da metade dos megawatts produzidos pelas hidrelétricas brasileiras foi construída pela Odebrecht.”
Animado com as negociações entre o governo e a Odebrecht para a construção de uma estrada interoceânica, que ligaria o Acre ao Peru (e ao Oceano Pacífico), Lula disse que o BNDES e o programa de incentivo às exportações fariam pela América Latina “o que Bolívar não conseguiu fazer com a espada”. E bajulou a Odebrecht escancaradamente. “Eu acho, Emílio, que a Odebrecht é motivo de orgulho para qualquer brasileiro que viaje o mundo. Acho que a Odebrecht, em competência, não deve a país nenhum do mundo, a escola de engenharia nenhuma do mundo. [… ] E, quando vocês completam 60 anos, eu, como presidente da República, só posso dizer: Deus queira que eu viva até o dia em que a gente tiver que comemorar os 100 anos da Odebrecht, ou quem sabe os nossos filhos estejam presentes, lembrando que um dia nós participamos da comemoração dos 60 anos.”
As palavras de Lula ainda ressoavam nos ouvidos de Emílio Odebrecht um mês depois, quando ele fez o discurso de encerramento da reunião de final de ano do grupo. Diante do auditório lotado, no resort Costa do Sauípe, litoral da Bahia, Emílio se declarou “otimista” e afirmou que a empresa havia superado a fase de dificuldades. E o Brasil, disse ele, havia quebrado “de vez” o “tabu quanto a um governo de origem de esquerda e trabalhista”.
Depois de um primeiro ano de governo difícil, com alta acentuada dos juros e um forte ajuste fiscal, o país finalmente voltava a crescer. A Odebrecht havia saído definitivamente da lama, e no mundo começava um novo ciclo de valorização das commodities – petróleo, minério de ferro e soja, os principais produtos de exportação dos grandes clientes do grupo. Em seu discurso, Emílio disse esperar uma nova era de prosperidade, com a organização do marco regulatório e investimentos em infraestrutura, apostando em etanol, diminuindo a dependência do petróleo e fazendo do Brasil ator relevante no cenário internacional.
“Há quem diga que eu sou um sonhador, mas eu não sou o único”, disse o todo-poderoso da Odebrecht na reunião anual, parafraseando a canção Imagine, de John Lennon. O outro sonhador, certamente, era o presidente da República, que dera ao empreiteiro, naquele ano de 2004, uma das coisas que ele mais queria. “Ouvimos do presidente Lula que a Odebrecht é um orgulho nacional”, lembrou Emílio, emocionado.