LETICIA SARTORI VALOTA
Instituto de Estudos Avançados – USP
Durante uma escavação arqueológica em 2003 na caverna de Liang Bua, na Ilha de Flores, Indonésia, foi encontrado um esqueleto quase completo de um indivíduo adulto com algumas características pertencentes à linhagem humana, porém, com uma estatura surpreendentemente baixa. Inicialmente, os arqueólogos acreditaram se tratar de um caso singular. Porém, ao final da escavação, outros esqueletos similares ao primeiro foram encontrados, indicando, então, a existência de uma população que viveu naquele local e que possuía a baixa estatura como uma característica comum a todos os indivíduos, diferentemente do esperado.
Os esqueletos, datados entre 100 e 60 mil anos, foram encontrados junto com ferramentas de pedra e restos de animais, um indicativo de que essa população obtinha alimento através da caça. Também foram encontradas ossos e pedras queimadas, indicando que esses hominínios faziam uso do fogo. Suas características físicas principais, além da altura de aproximadamente 1 metro, compreendem um corpo anatomicamente bípede combinado com braços longos e um pé enorme – com cerca de 70% do comprimento do fêmur -, e um crânio que, apesar de reduzido, apresenta uma mistura de traços compatíveis com o gênero Homo, ou seja, próximo evolutivamente da nossa espécie. Esse conjunto de fósseis, apelidados de “hobbits” em referência aos livros de J.R.R. Tolkien por serem pequenos e possuírem pés enormes, foi atribuído, então, a uma nova espécie, denominada de Homo floresiensis.
O tamanho reduzido dos hominínios da Ilha de Flores foi e continua sendo alvo de inúmeros estudos. Durante muito tempo, pesquisadores acreditaram que, dada a datação recente dos indivíduos, eles seriam uma população local da nossa espécie com alguma condição genética que conferia a eles suas características, como microcefalia, nanismo, síndrome de Down ou de Laron, ou cretinismo. Todas essas hipóteses foram refutadas, uma vez que, além de raras, essas condições genéticas não são compatíveis com as características físicas em geral desses indivíduos. Além disso, a datação estimada desses esqueletos, entre 100 e 60 mil anos, coincide exatamente com o intervalo em que a nossa espécie ainda estava chegando na região.
Os cientistas, então, passaram a trabalhar com outras possíveis hipóteses que pudessem explicar o tamanho reduzido e aparência arcaica desses indivíduos associados a uma datação tão recente. A principal hipótese refere-se ao “efeito ilha”. Existem evidências de casos de nanismo insular em mamíferos ocasionados após a colonização de ambientes insulares como uma resposta à menor disponibilidade de espaço e de alimento, visto que animais menores demandam menos energia. Na própria Ilha de Flores, inclusive, encontra-se uma espécie de Elefantes-pigmeus (Stegodon sp.), com a mesma condição.
Assumindo, então, que o “efeito ilha” esteja certo, resta ainda uma dúvida: de onde esses hominínios vieram?
Uma das hipóteses assume que o H. floresiensis descende da espécie Homo erectus, que, sendo considerada a espécie mais antiga a sair do continente africano, já ocupava o Sudeste Asiático há cerca de 1,6 milhão de anos e sobreviveu até cerca de 50 mil anos. Essa hipótese é corroborada por duas evidências principais: a descoberta de uma mandíbula de 700 mil anos muito similar à de H. floresiensis em Mata Menge, na Ilha de Flores; e a presença de ferramentas líticas também datadas em 700 mil anos na mesma ilha. Aliado a isso, os indivíduos da espécie H. floresiensis apresentam algumas características anatômicas arcaicas similares aos indivíduos de H. erectus. Apesar disso, o H. erectus apresentava um corpo mais robusto e maior, além de uma capacidade craniana bem superior. Dessa forma o “efeito ilha” deve ter agido intensamente para a redução corporal e, em especial, do cérebro desses hominínios, provavelmente com efeito de reduzir o gasto energético dada uma menor disponibilidade de recursos na ilha.
Com a descoberta de algumas possíveis ferramentas de pedra de 2,5 milhões de anos na Jordânia, isto é, fora do continente africano e muito antes do Homo erectus surgir, outra hipótese passou a ser considerada: de que os “hobbits” seriam descendentes da espécie Homo habilis, que surgiu há 2,8 milhões de anos. Essa hipótese leva em consideração a ideia de que, na realidade, o H. habilis teria sido a primeira espécie a sair da África e que, assim como essa ela, os hominínios de Flores apresentavam uma estatura baixa e uma capacidade craniana reduzida. Apesar disso, não existem evidências diretas de que o H. habilis teria saído do continente africano – como esqueletos -, e essa espécie teria sido extinta há 800 mil anos, ou seja, antes do surgimento do H. floresiensis.
De qualquer maneira, a descoberta da espécie H. floresiensis fornece novos conhecimentos à história evolutiva humana no continente asiático, cujo registro fóssil hominínio é ainda pouco conhecido. Sua descoberta teve e continua tendo grande importância para a Paleoantropologia, uma vez que enfatiza a grande diversidade de características que existem na linhagem evolutiva humana e, em especial, no gênero Homo.