Dois dias após o ultimato da União Europeia à primeira-ministra Theresa May para aprovar no parlamento o seu já rechaçado pacote até o fim da próxima semana, ou a data de saída será impreterivelmente dia 12 de abril, centenas de milhares de pessoas marcharam em Londres neste sábado (23) pedindo um novo referendo e a revogação do artigo 50 (do Tratado de Lisboa), que deflagra o processo do Brexit.
Convocada pela coalizão “People’s Vote”, a manifestação contou com a presença do prefeito de Londres, o trabalhista Sadiq Khan, da primeira-ministra da Escócia e líder dos nacionalistas escoceses, Nicola Sturgeon, do deputado conservador pró-UE Michael Heseltine, mais o indisfarçável apoio da ala blairista do trabalhismo. A marcha partiu de Hyde Park, passando por Piccadilly e Trafalgar Square, até desembocar na praça do Parlamento.
Jeremy Corbyn, o líder dos trabalhistas, não compareceu porque sua estratégia é conseguir a renúncia do governo May e a convocação de novas eleições, para então renegociar uma saída com Bruxelas, que manteria o país numa relação comercial com a UE semelhante à que a Noruega tem, sem deixar o país tão submetido a Bruxelas e Berlim.
Em carta enviada por May aos parlamentares na sexta-feira, ela ameaçou não submeter seu acordo Brexit a uma terceira votação se não contar com “apoio suficiente” para aprovação. Pelos dilatados escores com que seu acordo foi rejeitado duas vezes – por diferenças recordes históricas -, está difícil arrancar isso dos deputados.
No referendo de 2016, o voto pela saída da UE (Brexit) saiu vencedor por 52% a 48%, por 17,4 milhões de votos a 16,1 milhões.
A discussão sobre o novo referendo surge com base em duas variantes, a primeira, de que qualquer acordo de saída precisa ser confirmado nas urnas, e a segunda, que pleiteia um novo referendo para revogar o primeiro, isto é, anular o Brexit.
As pressões para passar por cima do primeiro plebiscito – bem ao costume de plebiscitos anteriores dentro da UE em que o resultado não foi o esperado – foram estimuladas por intensa campanha de mídia, que se traduziu em mais de 4 milhões de apoios a petição online pela revogação do artigo 50 – isto é, do Brexit.
Nas ruas, cartazes proclamando as virtudes da União Europeia e numerosas caricaturas de May, uma delas como um pinóquio de nariz esticado. “Exigimos um voto popular” e “o melhor acordo é nada de Brexit”, clamavam faixas e cartazes exibidos no protesto, junto com bandeiras da UE.
Posição que reflete parcela expressiva dos britânicos, mas foi derrotada no plebiscito de 2016. Algumas pesquisas asseveram que isso mudou, mas antes do plebiscito de 2016 as pesquisas davam vitória ao “ficar” e não ao “sair”, que prevaleceu.
Como assinalou Sturgeon, a decisão da UE de adiar as coisas até pelo menos 12 de abril “abriu uma janela, e aqueles de nós que se opõem ao Brexit devem aproveitar a chance que oferece”.
Declaração que, entre a outra metade dos britânicos, que considera que a alternativa correta é o Brexit, soa como uma convocação pela traição à decisão democrática por referendo de 2016.
Ainda mais, quando a burocracia de Bruxelas dita abertamente o que os britânicos podem ou não podem fazer, e chantageia que o acordo é esse – ou o caos que advirá de um Brexit sem acordo.
Indulgente, a burocracia de Bruxelas concedeu mais 21 dias pelo menos, para ver se o impasse acaba. Sua data limite, dia 22 de maio, no caso da aprovação ao acordo May-UE, se relaciona com a data das eleições do Parlamento Europeu, que serão no dia seguinte.
Sem aprovação da saída a tempo, os britânicos teriam de participar da eleição do Parlamento Europeu, o que seria um constrangimento a mais.
May, cuja principal preocupação nas negociações com Bruxelas foi assegurar os interesses da City londrina – o covil que intermedeia para Wall Street tenebrosas transações e lava mais branco petrodólares e eurodólares -, fez de tudo para impor aos cidadãos britânicos o dilema de ou “o acordo dela” ou o “não-acordo”, o caos, e quem sabe, uma crise pior que a de 2008.
Para o jornal progressista inglês Morning Star, a manifestação é essencialmente uma “demonstração substancial de insatisfação com o governo May” e entre seus organizadores e participantes há “uma grande divisão” sobre as alternativas para o Reino Unido.
Como registrou, entre eles “não há acordo” sobre a política econômica de austeridade ou sobre o futuro do sistema único de saúde (NHS), que parte deles que privatizar. Ou sobre a propriedade pública no setor de energia ou a nacionalização das ferrovias.
“As atitudes em relação à migração são tão divergentes quanto as visões sobre o perigo do racismo. Alguns são a favor da postura de guerra da Otan; outros querem o desarmamento e o fim do Trident. É uma marcha composta de pessoas que discordam mais do que concordam”, assinalou o jornal.
O Morning Star tem defendido que o que levou à surpreendente vitória do Brexit foi o repúdio à política neoliberal em vigor na União Europeia, ainda mais em um país que vivenciou a destruição dos anos Thatcher. Também, a percepção da necessidade da reindustrialização do país e da renacionalização de setores estratégicos, versus o cosmopolitismo da Londres globalizada, onde o “fica” prevaleceu.
Aliás, foi a ameaça da “União Bancária” na UE que levou o então primeiro-ministro David Cameron a se meter na enrascada da convocação do referendo, como forma de pressionar Bruxelas pela manutenção de privilégios para os especuladores da City londrina.
Como assinalou o ex-deputado George Galloway, a política econômica da UE chegou a tal grau de neoliberalismo que até a mera implementação de medidas keynesianas é impedida por restrições ao déficit público. Além de que a União Europeia foi constituída para favorecer os bancos e monopólios e a livre movimentação de capitais, em detrimento dos povos europeus. Como efetivar uma política de nacionalização de setores estratégicos da economia, quando Bruxelas impõe a privatização?
A convocação de um novo plebiscito, além do aspecto antidemocrático de que referendo só vale se for o que a máfia de Bruxelas e a City londrina querem, continua difícil, em razão da correlação de forças no parlamento britânico, registra o jornal, que considera que a liderança desse movimento “rivaliza em incompetência” com o próprio governo May.
Também é notória a antipatia profunda de largos estratos da população inglesa com figuras públicas que encabeçaram o protesto. “Ninguém quer ser liderado por gente como Blair e Mandelson” – comprometidos por “décadas de austeridade e guerra”. “Os milhões de trabalhadores que votaram no ‘Remain’ [‘Fica’] têm mais em comum com os milhões que votaram Brexit do que com lideranças como essas”, conclui. Conforme a mídia britânica, crescem as pressões para a renúncia de May e o Sunday Times já prevê que isso ocorrerá “em dez dias”.
ANTONIO PIMENTA