Com a recusa por 51 a 49 da convocação de novas testemunhas e de novos documentos, acabou na prática na sexta-feira (31) o julgamento do impeachment de Donald Trump no Senado dos EUA, só faltando servir a Pizza Hut, o que ficará para a próxima quarta-feira.
O que também encerra o turno preliminar das eleições de 2020 – e era isso que, na realidade, era o processo de impeachment iniciado na Câmara controlada pelos democratas.
Para aprovar o impeachment de Trump por “abuso de poder” e “obstrução do Congresso”, os democratas precisariam demover 20 senadores republicanos, para alcançar os dois terços exigidos.
Sempre pareceu improvável, a menos que surgisse aquela figura do imaginário norte-americano, “a arma fumegante”.
Já para “convocar testemunhas” – o que no caso era sinônimo de ouvir o carniceiro John Bolton, cujo rascunho do livro fora vazado pelo New York Times -, só precisavam mudar o voto de quatro senadores republicanos.
Não conseguiram. Só moveram o ex-candidato a presidente Mitt Romney e a senadora Susan Collins.
Na quinta-feira, o jogo já estava jogado. O senador republicano tido como “moderado”, Lamar Alexander, admitiu que o que Trump fez tinha sido “inapropriado” – mas nada grave o suficiente para justificar um impeachment, ainda mais a meses da eleição. Votaria contra novas testemunhas.
A pá de cal veio com a senadora Lisa Murkowski, que depois de classificar as acusações da Câmara a Trump como “apressadas e falhas”, acrescentou que “dada a natureza partidária deste impeachment desde o início e durante o processo todo, eu cheguei à conclusão de que não haverá julgamento justo no Senado”.
E completou: “eu não acredito que continuar esse processo mudará alguma coisa. É triste para mim admitir que, enquanto instituição, o Congresso fracassou”.
O grosso da manada mantinha-se fiel ao mantra de que “Trump não fez nada de errado” e a “ameaça ao processo democrático” vem dos democratas e seu impeachment.
Diante do que a veterana senadora democrata Patty Murray disse a jornalistas que “todos os sinais apontam para uma apressada absolvição de um presidente que sofreu impeachment”.
Restava aos democratas, depois de apostarem todas as suas fichas em Bolton – um abraço de afogados -, se esgoelarem asseverando que “julgamento sem testemunhas não é julgamento”. Um excelente slogan para campanha, mas nada que mudasse dois votos.
Ainda mais porque colocar a cabeça de Trump em risco a essa altura do campeonato, significaria para os republicanos pôr em risco a manutenção da presidência republicana e até o controle republicano sobre o Senado.
Não deixa de ter uma dose cavalar de cinismo, vindo de um país que se autodenomina “excepcional” e que acha que pode fazer com as demais nações o que bem entender – “torcer o braço”, disse Obama -, que a base para a acusação de impeachment fosse “abuso de poder” de Trump sobre o novo governo ucraniano.
“Abuso de poder”. Afinal, o que é o “favor” pedido por Trump ao presidente ucraniano neófito – verificar se o governo anterior participou da armação do Diretório Nacional Democrata em 2016 e se era verídico o que Biden andava se gabando (demitiu um procurador-geral por atrapalhar o oligarca que contratou o filho Hunter) -, comparado com Trump rasgar o acordo a seis partes com o Irã, mais o Tratado de Proibição de Mísseis Nucleares Intermediários (INF) e ainda o Tratado de Paris do Clima?
Ou a separação forçada de centenas de crianças dos pais nas jaulas da polícia anti-imigração na fronteira com o México, inclusive levando várias à morte?
Ou a apologia descarada do racismo e da xenofobia? O muro? Disparar uma saraivada de mísseis contra a Síria a pretexto de um falso ‘ataque químico em Douma’? Proibir os demais países de comprar petróleo do Irã, porque ele não quer?
O assassinato à luz do dia do principal chefe militar de outro país, em um terceiro país?
Para não falar de outros motivos, como evasão fiscal, ocultação de imposto de renda e redução [em causa própria] de impostos para magnatas, elevando o déficit para monumentais US$ 1 trilhão anual.
Em suma, o que não faltava era motivos relevantes para levar Trump a impeachment, mas a opção democrata foi pelo “Russiagate 2.0”, intermediado pelo abuso de poder na Ucrânia para “proveito pessoal”.
No seu discurso no Senado, como principal gerente da acusação, o deputado Adam Schiff requentou a tese de que Trump violava a segurança nacional dos EUA ao segurar os US$ 400 milhões de ajuda militar à Ucrânia, “porque estamos combatendo os russos lá para não ter de combatê-los aqui”.
E claro, ficaram de bico calado sobre a “interferência” do governo Poroshenko, que forneceu ao FBI os documentos que incriminaram e levaram à cadeia, por lambanças anteriores, ao ex-marqueteiro Manafort, que ficou calado e não entregou os podres de Trump.
Quanto à acusação de “obstrução do Congresso”, depois do tortuoso processo que permitiu que um agente da CIA consultasse a presidência da Comissão de Inteligência da Câmara, para saber como fazer a denúncia de que ‘ouviu dizer’ de outro agente que teria ouvido o presidente violar a política externa dos EUA, sempre seria um terreno pantanoso.
Se o forte de Trump nunca foram os escrúpulos, imagine quando, para possibilitar a acusação de ‘ouvi dizer’, coincidentemente do nada, a CIA mudou o formulário a ser preenchido, que antes exigia do denunciante ser testemunha primária do fato. Trump proibiu – acintosamente – seus auxiliares de deporem, mesmo sob intimação, e o envio de qualquer documentação.
Ou a liberação do manuscrito do livro de Bolton no Conselho de Segurança Nacional ter sido feito por agente que era irmão de outro que depôs na Câmara contra Trump. Em suma, no pântano de Washington, as punhaladas pelas costas eram coisa do dia a dia.
Ao mesmo tempo em que tentavam o impeachment de Trump, os democratas davam em peso votos para aprovar orçamento recorde de todos os tempos do Pentágono e para sanções à Rússia e à China.
Agora, fica a ser visto quem saberá se beneficiar da balbúrdia dos últimos meses, o regime Trump ou a oposição democrata. Nos próximos dias, juristas irão reforçar o evidente fato de que se tratou de um julgamento de impeachment truncado e Trump cantará vitória. Em março, o livro de Bolton vai para as livrarias, contando como “em maio o próprio Trump disse a ele que era para segurar a ajuda militar até obter a investigação sobre Biden”.
Encerrado o “turno preliminar”, a eleição propriamente dita vai decolar. O próximo ato será as primárias democratas de Iowa, onde Bernie Sanders está na frente, com Biden em segundo, e Elizabeth Warren em terceiro, de acordo com as pesquisas.
Nas últimas semanas, o establishment democrata não disfarçou seu descontentamento com o crescimento de Sanders, a ponto de Hillary Clinton ter dito que “ninguém gosta dele”. Mereceu uma resposta antológica de Sanders, de que, “num bom dia”, sua mulher “gosta dele”.
Questões como universidade gratuita, sistema público de Saúde para todos, dobrar o salário mínimo e implantar o New Deal Verde vem ganhando ressonância entre extensos setores da sociedade norte-americana, especialmente entre os jovens. “Socialismo” – seja lá isso o que for, deixou de ser palavrão nos EUA.
Quanto a Biden, deve andar amaldiçoando o dia em que gravou um vídeo [no Conselho de Relações Exteriores, aquele dos Rockfellers] se gabando de como demitiu o procurador-geral da Ucrânia sob ameaça de reter empréstimo dos EUA de US$ 1 bilhão. Difícil mesmo vai ser esconder o pimpolho Hunter e os US$ 3 milhões que a Burisma depositou em contas dele.
Em suma, uma campanha de alto nível nos aguarda. No mais, nos EUA a democracia está cada vez mais esculhambada desde que a Suprema Corte decidiu que os ricaços podem comprar as eleições à vontade, para não violar sua ‘liberdade de expressão’. A supressão de voto de negros come solta. Não há justiça eleitoral, e em cada estado quem preside o pleito é quem está no poder. Há até uma expressão – ‘gerrymandering’ – para descrever o redesenho dos distritos eleitorais para favorecer o governo. O que vale mesmo é o colégio eleitoral, não o voto popular, e na prática a eleição se decide em quatro ou cinco estados. E as fake news são a cereja nesse bolo envenenado.
ANTONIO PIMENTA