Sara Giromini, líder de uma facção bolsonarista, divulgou em redes sociais o nome da criança de 10 anos e o hospital onde ela estava internada
Um grupo tentou invadir o hospital onde uma menina de 10 anos que foi estuprada pelo próprio tio realizou a interrupção de gestação após autorização da justiça. A polícia precisou impedir a tentativa do grupo de contrários ao aborto de invasão do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam-UPE), no bairro da Encruzilhada, em Recife.
A criança de apenas 10 anos, natural do Espírito Santo, foi abusada pelo próprio tio desde os 6 anos de idade. O criminoso, de 33 anos, é considerado foragido.
A autorização para o aborto legal da criança de dez anos foi dada pelo juiz da Vara da Infância e da Juventude da cidade de São Mateus, Antonio Moreira Fernandes. No despacho, o magistrado determina que a criança seja submetida ao procedimento de melhor viabilidade e o mais rápido possível para preservar a vida dela.
O caso foi descoberto quando a menina deu entrada no dia 8 de agosto no Hospital Estadual Roberto Silvares, em São Mateus, com sinais de gravidez. A garota estava se sentindo mal e a equipe médica desconfiou da barriga “crescida” da menina. Ao realizar exames, os enfermeiros descobriram que ela estava grávida de três meses. Em conversa com médicos e com a tia, a criança confidenciou que o tio a estuprava desde os seis anos e que nunca contou aos familiares porque era ameaçada. O homem fugiu depois que a gravidez foi descoberta.
Segundo o artigo 128 do Código Penal, inciso II, “não se pune o aborto praticado por médico se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”. Ainda assim, o caso foi analisado pela justiça do Espírito Santo, que autorizou o aborto.
Por nota, a Secretaria de Saúde de Pernambuco (SES-PE) informou que “segue a legislação vigente em relação à interrupção da gravidez (quando não há outro meio de salvar a vida da mulher, quando é resultado de estupro e nos diagnósticos de anencefalia), além dos protocolos do Ministério da Saúde para a realização do procedimento, oferecendo à vítima assistência emergencial, integral e multidisciplinar”.
A SES explicou ainda que o Cisam é referência estadual nesse tipo de procedimento e de acolhimento a vítimas. “Em relação ao caso citado, é importante ressaltar, ainda, que há autorização judicial do Espírito Santo ratificando a interrupção da gestação. Por fim, frisa-se que todos os parâmetros legais estão sendo rigidamente seguidos para este caso”, reforçou a SES, no comunicado.
TORTURA
Advogada do Grupo Curimim e do Fórum de Mulheres, Elisa Anibal defendia, em frente ao hospital, que a menina deve ter sua vida salvaguardada. “Eu estou aqui hoje porque a gente precisou se mobilizar, em caráter de urgência, pela proteção de uma criança que vem sendo abusada há quatro anos por um ente de sua família, por um tio. Uma criança de 10 anos não tem condições de gestar, e o Código Penal prevê isso desde 1940”, disse.
“Quando a criança entrou no hospital, inclusive segurando um ursinho de pelúcia, eles gritavam que essa menina era uma assassina, porque ela tem direito a um aborto para salvar a vida dela. É uma criança de 10 anos com toda a vida pela frente.”
“O aborto em caso de estupro já é garantido por lei. Se a menina é menor de 14 anos, isso ainda significa estupro de vulnerável. O corpo de uma pessoa de 10 anos não suporta uma gestação, coloca a vida da criança em risco. Forçar uma menina de 10 anos, vítima de estupro, a gestação até os nove meses é uma tortura”, argumentou Elisa Aníbal.
INVASÃO CRIMINOSA
Dentre os que convocaram o protesto em frente a unidade de saúde está a bolsonarista Sara Fernanda Giromini, conhecida como Sara Winter, que divulgou na tarde do domingo em redes sociais o nome da menina e o endereço do hospital em que está internada.
Em suas postagens, a bolsonarista, que foi presa em junho por defender ataques ao STF, não se refere ao estuprador que abusou da criança.
Nesta segunda-feira, a Justiça do Espírito Santo determinou que Facebook, Twitter e Google retirem do ar as postagens em que Sara Giromini expõe a criança. As plataformas têm até 24 horas para obedecer. Em caso de descumprimento, será aplicada uma multa diária de R$ 50 mil.
Em um trecho da decisão, o juiz ressalta que “não se pretende obstar o direito à liberdade de expressão, o qual é, inclusive, constitucionalmente assegurado, à luz do art. 5º, inciso IV da CF, entretanto, consoante se extrai dos autos os dados divulgados são oriundos de procedimento amparado por segredo de justiça”.
INFRAÇÕES
A professora da Universidade de Brasília e especialista em bioética Debora Diniz, que vem acompanhando atentamente o caso, criticou a bolsonarista. “A moça fanática bolsonarista das tochas saiu da cadeia. Para cometer crime ainda mais terrível: fez vídeo de horror sobre a menina de 10 anos, alegando saber o nome dela. A nomeia. Por favor, não divulguem o vídeo. É uma menina, não uma disputa ideológica”, escreveu a antropóloga.
O advogado Ariel de Castro Alves, ex-integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), apontou, à Revista Fórum, os crimes cometidos por Giromini.
“Ela violou o direito ao respeito, previsto na Constituição Federal e no ECA, e também está incitando crime. Incitando as pessoas a irem ao hospital para praticarem violência contra a criança e os profissionais da saúde que irão atender ela”, afirmou o advogado, especialista em direitos humanos pela PUC- SP.
O artigo 17 do ECA trata sobre o direito ao respeito. “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”, diz o texto.
Na Constituição, a disposição aparece no artigo 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Já a incitação à violência está presente no artigo 286 do Código Penal: “Incitar, publicamente, a prática de crime. Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa”
O advogado acredita que Giromini “precisa ser investigada por meio de inquérito policial e pela promotoria da infância e juventude por violações à Constituição Federal, ao ECA e ao Código Penal (incitação a crime)”.