A comunidade Guarani Mbya da Terra Indígena do Jaraguá, localizada na zona noroeste de São Paulo, amanheceu na sexta-feira (25) sob protesto contra a nomeação de Joaquim Álvaro Pereira Leite para o Ministério do Meio Ambiente e em repúdio ao Projeto de Lei (PL) 490/2007, aprovado nesta semana pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados.
Considerado uma ameaça pela comunidade, o chamado “PL da morte” praticamente inviabiliza a demarcação de terras indígenas, coloca em risco os povos isolados, além de abrir o território para exploração de atividades comerciais.
De acordo com a liderança da aldeia do Jaraguá, Sonia Ará Mirim, o protesto foi realizado para chamar a atenção da população quanto aos retrocessos do PL, os indígenas decidiram ocupar, por volta das 6h, uma das pistas da rodovia dos Bandeirantes, no sentido capital, altura do quilômetro 20, próxima à comunidade.
A faixa ficou interditada por cerca de duas horas e foi liberada às 8h25. No local, faixas e cartazes de protesto foram estendidos e, entre os cantos sagrados evocados, o povo guarani cobrava por “Fora Bolsonaro” e “Demarcação Já”.
Além do PL 490, os indígenas também protestaram contra a nomeação de Joaquim Álvaro Pereira Leite para o Ministério do Meio Ambiente, após a saída de Ricardo Salles.
Pereira Leite integra uma família tradicional de fazendeiros de café de São Paulo que disputa judicialmente um pedaço da Terra Indígena Jaraguá.
A manifestação também prestou apoio aos 850 indígenas, de todas as regiões do Brasil, que acamparam por 16 dias em Brasília para lutar contra a proposta. A mobilização conseguiu inclusive adiar a votação do PL na comissão, mas também foi alvo da repressão policial, na terça (22), e de ataques com bombas de gás lacrimogêneo no dia 16.
A Terra Indígena do Jaraguá conta, ao todo, com seis aldeias, mas apenas um território pertencente a elas foi demarcado, ainda em 1987. Os outros cinco, de acordo com a liderança, ainda estão em processo de reconhecimento, atualmente feito pela Funai. Paralisada desde o início do governo Bolsonaro, em 2019, a demarcação é ameaçada agora pela tese do “marco temporal”, incluída também no PL 490.
O marco temporal impõe que o processo de demarcação seja restrito àquelas terras que já estavam ocupadas pelos povos tradicionais em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. O que, na prática, torna ainda mais difícil a demarcação.
A tese irá a julgamento na próxima quarta (30) no Supremo Tribunal Federal (STF), que definirá o futuro das demarcações de terras indígenas no país. A expectativa é que o Supremo barre o marco temporal.
“A nossa aldeia faz parte disso, da vida da floresta, uma vida que a gente respeita. Quando falamos que precisamos de terra, não é para construir casa, ganhar dinheiro. Falamos isso porque precisamos preservar o que o Criador criou. Este é o motivo pelo qual falamos que precisamos das nossas aldeias em pé, que precisamos preservar. A cultura está viva”, destaca Sonia Ará Mirim. “É muito grave o que está acontecendo conosco em relação a um governo que não nos respeita.”
PL 490
O texto prevê, entre outras medidas, a criação de um marco temporal para delimitar o que são terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas. Segundo o texto, são aquelas que, na data da promulgação da Constituição, isto é, 5 de outubro de 1988 eram:
- por eles habitadas em caráter permanente;
- utilizadas para suas atividades produtivas;
- imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar;
- necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
Críticos da matéria argumentam que o texto ultrapassa os limites de um regulamento e tenta mudar preceitos da Constituição por meio de lei ordinária.
Entidades ligadas aos direitos dos indígenas também afirmam que a Constituição funciona retroativamente, o que resguarda os direitos territoriais violados antes de 1988.
NOVO MINISTRO
Joaquim Alvaro Pereira Leite, nomeado novo ministro do Meio Ambiente (MMA) nesta quarta-feira (23), no lugar de Ricardo Salles, já fazia parte do ministério. Desde setembro do ano passado, ele estava à frente da Secretaria da Amazônia e Serviços Ambientais.
Essa secretaria substituiu a de Florestas e Desenvolvimento Sustentável, que também era liderada por Leite. O primeiro cargo dele no ministério foi Departamento Florestal, exercido entre julho de 2019 e abril do ano passado.
Antes de ingressar no MMA, Leite foi conselheiro por mais de 20 anos da Sociedade Rural Brasileira (SRB), uma das organizações que representam o setor agropecuário, entre 1996 e 2019.
A SRB apoia a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), conhecida como bancada ruralista, grupo composto por mais de 200 deputados federais e senadores, e vinha demonstrando apoio à gestão de Ricardo Salles.
Em seu perfil no ministério, Leite cita que também foi produtor de café, em sua própria fazenda, entre 1991 e 2002. Ele também foi diretor da Neobrax, uma empresa do ramo farmacêutico, e consultor administrativo de uma rede de cafés e da MRPL Consultoria.
Pereira Leite integra uma família tradicional de fazendeiros de café de São Paulo que pleiteia um pedaço da Terra Indígena Jaraguá, em São Paulo.
Segundo um documento da Fundação Nacional do Índio (Funai), capatazes a serviço da família chegaram a destruir a casa de uma família indígena ao tentar expulsá-la do território reclamado.
A terra indígena fica nos municípios de São Paulo e Osasco e é a menor do país, com 532 hectares.
Nela moram 534 indígenas dos povos Guarani Mbya e Ñandeva, segundo a Comissão Pró-Índio de São Paulo. O processo de demarcação do território se iniciou nos anos 1980, mas jamais foi concluído e está paralisado na Justiça.
No relatório de identificação da terra indígena, publicado pela Funai em 2013, o antropólogo Spensy Pimentel diz que a família Pereira Leite cobrou várias vezes a paralisação da demarcação do território.
Segundo o relatório, em 1986, Joaquim Álvaro Pereira Leite Neto (pai do novo ministro) “exigiu que a Funai retirasse os marcos físicos do processo demarcatório da área indígena Jaraguá, alegando ser o proprietário da área, acusando agressivamente a Funai de estar praticando um crime”.
O relatório prossegue: “Tal agressividade, no entanto, extrapolou para além das missivas, e passaram então esses cidadãos a fazer ameaças aos índios, a intimidá-los com capatazes, e mesmo destruindo uma de suas casas”.
Segundo o documento, como a Funai não paralisou a demarcação, a família começou a ameaçar os indígenas diretamente.
Em artigo no livro A grilagem de terras na formação territorial brasileira, a doutora em Geografia Humana pela USP Camila Salles de Faria transcreve o relato de um líder espiritual guarani, José Fernandes, sobre uma visita de um membro da família Pereira Leite à aldeia.
“Chegou esse finado velho… Pereira Leite, (que disse): ‘não, isso aqui é meu; agora temos que fazer tudo, vamos lá pra delegacia’. Aí eu falei ‘não, não vou’. Aí ele falou assim: ‘tem papel da terra que comprou aqui?’ Eu falei: ‘não, não tenho, mas também sou grande, viu?’ Aí mostrei o meu documento de cacique. Aí ele foi embora.”
O líder provavelmente se referia José Álvaro Pereira Leite, morto em 2008 e avô do novo ministro. Foi José Álvaro Pereira Leite quem iniciou o processo judicial contra a demarcação.
A antropóloga cita o relato de outra indígena, identificada como Eunice, sobre o patriarca da família.
“Esse Pereira Leite, a família Pereira Leite, ele ameaça muito o pessoal indígena… Que vai pôr fogo na casa, que vai destruir… Numa época ele até veio com uma maleta de dinheiro para mim querendo comprar a terra de mim.”
Em 1996, diz o artigo de Faria, a família Pereira Leite pediu à Justiça a expulsão da comunidade e, acompanhada pela Polícia Militar de São Paulo, “tentou a retirada dos moradores indígenas da área”.
Porém, segundo o artigo, o Ministério Público Federal acionou a Polícia Federal, que interveio e evitou a expulsão.
A justificativa é que, como terras indígenas são áreas da União, conflitos em torno desses territórios devem ser mediados por órgãos federais, e não estaduais, como as polícias militares.