Nunca houve nada parecido. Documento tem que ser público, diz a lei. Dono do cartório não sabe explicar porque dados da escritura são sigilosos. Flávio foi denunciado pelo MP do Rio por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa
Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz e mais 15 pessoas foram denunciados pelo Ministério Público do Rio de terem roubado R$ 6,1 milhões da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), através do esquema de desvio de parte de salários de funcionários fantasmas contratados pelo gabinete do “zero um”, então deputado estadual. Para disfarçar o dinheiro roubado, Flávio usou, segundo o MP-RJ, compras fraudulentas de imóveis e falsificação de notas em sua loja de chocolates.
RENDA INSUFICIENTE
Flávio comprou, recentemente, uma mansão luxuosa em Brasília no valor de R$ 6 milhões. A compra gerou suspeitas porque a renda do agora senador e de sua mulher, a dentista Fernanda Antunes Figueira Bolsonaro, não condizem com a aquisição do imóvel em área nobre da capital. Assim como em outras oportunidades, ele diz que os recursos para a aquisição do imóvel vieram de seus negócios. Citou dois deles: a venda de um apartamento no Rio e de sua parte na franquia na loja da da Kopenhagen, na Barra da Tijuca.
Até agora não há comprovação da primeira operação. A segunda não renderia o valor usado na compra da mansão. Além do mais, ele só possuía 50% da franquia.
A primeira constatação de irregularidades na compra da mansão foi feita pelo site “O Antagonista”: o teor da escritura não condizia com informação fornecida pelos advogados do vendedor do imóvel de que o valor declarado não correspondia à verdade. Segundo os advogados, o casal quitou apenas R$ 1,09 milhão da parte paga à vista. Ficaram faltando R$ 1,74 milhão. Na escritura consta que eles quitaram tudo.
O restante do valor para completar os R$ 6 milhões conseguiram numa estranha operação de crédito junto ao BRB, banco público de Brasília, com juros de “pai para filho”. Curiosamente o presidente do banco, Paulo Henrique Costa, estava sendo cotado para assumir a presidência do Banco do Brasil em substituição de André Brandão, segundo o portal Metrópoles.
TARJAS ESCONDENDO DADOS
Agora surge uma nova informação, publicada pelo Estadão neste sábado (6), que o cartório está ocultando outras informações da escritura. Na cópia da escritura obtida pela reportagem do Estadão no cartório, que fica em Brazlândia, região administrativa a 45 km de Brasília, há 18 trechos com tarjas da cor preta. Foram omitidas informações como os números dos documentos de identidade, CPF e CNPJ de partes envolvidas, bem como a renda de Flávio e da mulher.
O ato, do 4.º Ofício de Notas do Distrito Federal, contraria a prática adotada em todo o país e representa tratamento diferenciado ao filho do presidente Jair Bolsonaro, segundo especialistas. As leis que tratam da atividade cartorial não preveem o sigilo nesses casos.
Procurado, o titular do cartório, Allan Guerra Nunes, disse ao jornal que tomou a medida para preservar dados pessoais do casal. Em um primeiro contato, ele não soube explicar em qual norma embasou sua decisão. Mais tarde, em nota, Nunes afirmou que as informações são protegidas pela Lei 105/2001, que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras. A regra, porém, não se aplica a cartórios de notas.
Estranhamente, o dono do cartório disse que foi dele a ideia de colocar as tarjas pretas na escritura. “Ele (Flávio) não me pediu nada. Quem decidiu colocar a tarja fui eu. Quando eu fui analisar o conteúdo da escritura, acidentalmente tem essa informação da renda”, disse Nunes. Ele não explicou a razão de também ter omitido números de documentos de identificação pessoal. E também não soube explicar porque nunca tinha feito isso antes. Ninguém sabe porque ele só tomou esses “cuidados” na escritura de Flávio Bolsonaro. “Não há nenhum tratamento privilegiado, de maneira alguma”, jurou o funcionário.
SEM EMBASAMENTO LEGAL
A advogada Ana Carolina Osório, especialista em direito imobiliário, ouvida pelo Estadão, vê tratamento privilegiado a Flávio neste caso. “Não existe embasamento para se colocar tarja nessas informações. A publicidade é um dos princípios basilares do direito registral. O cartório tem o objetivo claro de proteger, digamos assim, os dados do Flávio Bolsonaro, porque é um documento público e as informações ali são de interesse de quaisquer interessados”, avaliou.
Em suma, enquanto o Brasil inteiro luta desesperadamente contra a pandemia de Covid-19, que está matando quase duas mil pessoas por dia, Bolsonaro age na surdina para abafar os negócios escusos de seu “zero um” e para livrá-lo da cadeia. Desde o primeiro dia no governo, ele não parou de perseguir a Coaf e a Receita Federal e de mexer os pauzinhos para anular a quebra de sigilos bancário e fiscal dos envolvidos no assalto de R$ 6,1 milhões aos cofres da Alerj.
E, agora, Bolsonaro usa os instrumentos do Planalto para ajudar a abafar a compra da mansão com o dinheiro de origem ainda desconhecida. Coincidentemente, o valor roubado da Alerj por Flávio Bolsonaro, é, segundo o MP-RJ, de R$ 6,1 milhões. Os R$ 100 mil que sobraram devem servir para o casal fazer a decoração da nova casa.
PECULATO, LAVAGEM DE DINHEIRO E ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA
Flávio foi denunciado pelo MP-RJ de ter constituído uma quadrilha que agia dentro de seu gabinete com o objetivo de assaltar os cofres da Alerj. O esquema funcionava sob o comando político do então deputado e a operação ficava por conta de Fabrício Queiroz, seu “faz tudo”. Eles contratavam funcionários fantasmas que nem compareciam na Alerj. Esses funcionários recebiam os salários sem trabalhar e devolviam uma parte para o operador da quadrilha, que era o Queiroz.
Queiroz fazia a distribuição para a o deputado e para a família Bolsonaro. Ele depositou 21 cheques no valor total de R$ 89 mil na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro. Até hoje Jair Bolsonaro não conseguiu uma explicação convincente para esses depósitos. O Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) descobriu movimentações milionárias na conta de Queiroz.
As investigações tiveram início a partir deste relatório do Coaf. Entre os funcionários fantasmas, além de familiares de Queiroz, estavam pessoas ligadas à milícia de Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio. A mãe e a mulher de Adriano da Nóbrega, assassino profissional, chefe da milícia e do “Escritório do Crime”, uma espécie de central de assassinatos, eram funcionárias fantasmas do gabinete de Flávio. Elas devolviam um parte dos salários para o deputado e entregavam outra parte para o chefe da milícia. Essas operações levaram o MP a suspeitar que a milícia carioca usava o esquema do gabinete de Flávio Bolsonaro para lavar dinheiro proveniente do crime.
S.C.