A iniquidade do sistema judicial norte-americano volta à tona com a entrevista da BBC com a advogada Cristina Bordé, que salvou do corredor da morte um inocente, após 26 anos de cárcere, o imigrante mexicano Vicente Benavides.
O mesmo sistema que levou menos de um mês e meio para condená-lo, após preso durante um ano e meio, demorou cinco anos para indicar um advogado que pudesse apelar contra a pena capital e 26 anos para admitir o erro terrível.
Ao deixar a infame penitenciária de San Quentin, na Califórnia, Benavides estava com 68 anos. Ele agora vive em um povoado do México, junto da família e dos amigos, e busca “recuperar o tempo perdido” – isto é, a larga parcela de vida que lhe foi subtraída.
Recém formada em Harvard, a colombiana Cristina se reuniu em 1999 a um grupo de advocacia na Califórnia que defendia condenados à morte e Benavides foi seu primeiro caso. Uma acusação sórdida: teria estuprado e matado a filha de 21 meses de sua namorada.
De alguma forma, ela acreditou na reiterada declaração de Benavides de que “nada fizera à menina”.
“MAIOR VITÓRIA DE UMA VIDA”
Cristina levou 19 anos até conseguir libertar Benavides. Uma surpreendente e incomum persistência e apreço pela justiça e pela verdade.
A bebê morreu em 1991 e ele logo foi preso e acusado. Foi julgado em 1993 e condenado à pena capital, e como era pobre e imigrante, acabou na dependência de um advogado despreparado, que praticamente serviu de coadjuvante da condenação.
O dia 19 de abril de 2018, quando Benavides deixou a penitenciária de San Quentin, livre, foi, como Cristina relatou à BBC, “um momento extraordinário, que ocorre muitas poucas vezes”.
A “maior vitória” de sua vida, ela considerou. A advogada começou a chorar ao vê-lo liberto, depois de mais de duas décadas de infortúnio no corredor da morte.
A revisão das provas conduziu os advogados à percepção de um julgamento inepto, com testemunhos médicos falsos, omissão de evidências pela polícia e pela promotoria e argumentos de acusação incorretos.
Com um imigrante mexicano na berlinda, quem precisava da verdade e outros detalhes inconvenientes?
Benavides tomava conta da menina em novembro de 1991, para a mãe que trabalhava fora, e depois de perceber que esta havia conseguido sair do apartamento, a havia encontrado passando muito mal do lado de fora. A bebê passou por oito hospitais, até morrer, conforme o laudo, de ataque cardíaco, e o mexicano foi preso. Ele não tinha histórico de violência nem de abuso sexual.
“Quando começamos a avaliar as evidências médicas, ficou muito claro que havia sido cometida uma grande injustiça”, relatou Cristina. A revisão minuciosa das provas era um pré-requisito para passar à impetração de um habeas corpus.
DEPOIMENTOS E LAUDOS FALSOS
A principal questão que expôs toda a insídia no julgamento foi a descoberta de que as lesões na região genital da bebê – que serviram de elemento central na acusação de estupro e assassinato – não existiam no primeiro exame hospitalar a que ela havia sido submetida. Era como se tivessem surgido depois.
A conclusão da equipe de Cristina foi de que as feridas na genital eram consequência da tentativa de botar um cateter, no primeiro hospital, para tirar a temperatura da bebê. “Os especialistas com quem falamos disseram que as feridas encontradas na genital foram resultado disso”.
A partir daí, a equipe pediu a especialistas que analisassem as provas e testemunhos ao tribunal. Todos os que foram consultados consideraram “anatomicamente impossível” a causa da morte apontada no julgamento pelo patologista. “Ele disse coisas completamente falsas”: que a bebê havia morrido em consequência de ferimentos anais. A tese da violência sexual havia sido corroborada pelo testemunho de outros médicos.
Após Cristina e sua equipe apresentarem o boletim médico inicial e outras incongruências, quase todos os médicos que haviam testemunhado voltaram atrás e se retrataram, alegando não terem visto os boletins médicos completos que indicavam que não havia evidências de abuso sexual quando a bebê foi examinada no primeiro hospital.
Passaram a admitir que os ferimentos genitais podiam ter sido provocados durante o atendimento médico.
CONDENAÇÕES SEM PROVAS PARA POBRES
Há 12 anos atrás, Cristina e sua equipe apresentaram aos tribunais um documento de 395 páginas provando a inocência de Benavides. Como registrou a BBC, “foi esse documento que acabou sendo chave para que um juiz da Suprema Corte da Califórnia decidisse absolver o agricultor mexicano em 2018 e determinar sua libertação”.
Como assinalou Cristina, o que sucedeu a Benavides “é típico de pessoas que não têm dinheiro. Os tribunais têm muitos casos que carecem de provas”.
Nos últimos quarenta anos, apenas quatro condenados à pena de morte foram absolvidos na Califórnia. Conforme a BBC, desde 1967, há apenas 122 absolvições daqueles que estavam no corredor da morte.
No ano passado, outro caso de inocente que estava no corredor da morte, chamou a atenção: o negro Malcolm Alexander, que havia sido condenado à prisão perpétua por estupro na Louisiana e estava no cárcere há 38 anos, foi libertado aos 58 anos, após teste de DNA inocentá-lo e ter seu julgamento revisto. “Rezei minha vida inteira por isso”, disse seu filho, Malcom Stewart, que estava no tribunal.
Conforme seus defensores, do “Innocence Project”, o advogado do primeiro julgamento de Alexander falhou ao não enfatizar que a vítima tinha tido dúvidas quando o reconheceu como o estuprador em 1979. Evidências de DNA descobertas em 2013 e que eram consideradas perdidas foram essenciais para a reversão.
TRÊS DE ANGOLA
Mas poucos casos são tão emblemáticos quanto os “Três de Angola”, os panteras negras libertados após décadas de solitária na mais terrível penitenciária da Louisiana, que leva esse apelido em referência ao um antigo campo de escravos.
Albert Woodfox foi libertado em 2015, aos 68 anos de idade, depois de ter estado na solitária por 43 anos, desde 1972. Ele sempre se disse inocente da acusação de ter matado um guarda do presídio durante um motim.
Woodfox foi julgado e condenado duas vezes pela morte do guarda e acabou por ver essas duas condenações revogadas por tribunais de recurso, embora tenha continuado preso.
Ao ditar a libertação imediata de Woodfox, o juiz James Brady alegou várias “circunstâncias excepcionais”: a falta de confiança no estado do Louisiana para realizar um julgamento imparcial; o número de anos que Woodfox esteve em isolamento; a sua idade e o seu estado de saúde; e “o fato de o Sr. Woodfox já ter sido julgado duas vezes e de se arriscar a enfrentar um terceiro julgamento por um crime ocorrido há mais de 40 anos”.
Herman Wallace foi libertado em outubro de 2013, apenas para morrer poucos dias depois, de câncer no fígado – passara a maior parte dos últimos 41 anos numa cela de 1,82 metros por 2,70 metros, de onde saía apenas uma hora por dia, e nem sequer todos os dias da semana.
Robert Hillary King foi libertado em 2001, ao fim de 29 anos na solitária, depois de a sua condenação – pela morte de outro preso – ter sido revogada. Durante uma homenagem aos Panteras Negras em 2011, King afirmou que na prisão da Louisiana se continua a praticar “escravatura legal”.
No documentário In Te Land of the Free (‘A Terra dos Livres’), de 2010, a viúva do guarda prisional morto em 1972, Teenie Rogers, disse que acredita na inocência dos “Três de Angola”, uma declaração que repetiu em 2014 à Anistia Internacional. “Acredito que os ‘Três de Angola’ estão inocentes. Li todas as provas e ninguém me convence do contrário: eles estão inocentes.”
Em tempo: apesar de já não estar no corredor da morte, o ex-Pantera Negra e radialista Mumia Abu Jamal permanece acintosamente preso desde 1981.
A iniquidade do sistema judicial norte-americano volta à tona com a entrevista da BBC com a advogada Cristina Bordé, que salvou do corredor da morte um inocente, após 26 anos de cárcere, o imigrante mexicano Vicente Benavides.
O mesmo sistema que levou menos de um mês e meio para condená-lo, após preso durante um ano e meio, demorou cinco anos para indicar um advogado que pudesse apelar contra a pena capital e 26 anos para admitir o erro terrível.
Ao deixar a infame penitenciária de San Quentin, na Califórnia, Benavides estava com 68 anos. Ele agora vive em um povoado do México, junto da família e dos amigos, e busca “recuperar o tempo perdido” – isto é, a larga parcela de vida que lhe foi subtraída.
Recém formada em Harvard, a colombiana Cristina se reuniu em 1999 a um grupo de advocacia na Califórnia que defendia condenados à morte e Benavides foi seu primeiro caso. Uma acusação sórdida: teria estuprado e matado a filha de 21 meses de sua namorada.
De alguma forma, ela acreditou na reiterada declaração de Benavides de que “nada fizera à menina”.
“MAIOR VITÓRIA DE UMA VIDA”
Cristina levou 19 anos até conseguir libertar Benavides. Uma surpreendente e incomum persistência e apreço pela justiça e pela verdade.
A bebê morreu em 1991 e ele logo foi preso e acusado. Foi julgado em 1993 e condenado à pena capital, e como era pobre e imigrante, acabou na dependência de um advogado despreparado, que praticamente serviu de coadjuvante da condenação.
O dia 19 de abril de 2018, quando Benavides deixou a penitenciária de San Quentin, livre, foi, como Cristina relatou à BBC, “um momento extraordinário, que ocorre muitas poucas vezes”.
A “maior vitória” de sua vida, ela considerou. A advogada começou a chorar ao vê-lo liberto, depois de mais de duas décadas de infortúnio no corredor da morte.
A revisão das provas conduziu os advogados à percepção de um julgamento inepto, com testemunhos médicos falsos, omissão de evidências pela polícia e pela promotoria e argumentos de acusação incorretos.
Com um imigrante mexicano na berlinda, quem precisava da verdade e outros detalhes inconvenientes?
Benavides tomava conta da menina em novembro de 1991, para a mãe que trabalhava fora, e depois de perceber que esta havia conseguido sair do apartamento, a havia encontrado passando muito mal do lado de fora. A bebê passou por oito hospitais, até morrer, conforme o laudo, de ataque cardíaco, e o mexicano foi preso. Ele não tinha histórico de violência nem de abuso sexual.
“Quando começamos a avaliar as evidências médicas, ficou muito claro que havia sido cometida uma grande injustiça”, relatou Cristina. A revisão minuciosa das provas era um pré-requisito para passar à impetração de um habeas corpus.
DEPOIMENTOS E LAUDOS FALSOS
A principal questão que expôs toda a insídia no julgamento foi a descoberta de que as lesões na região genital da bebê – que serviram de elemento central na acusação de estupro e assassinato – não existiam no primeiro exame hospitalar a que ela havia sido submetida. Era como se tivessem surgido depois.
A conclusão da equipe de Cristina foi de que as feridas na genital eram consequência da tentativa de botar um cateter, no primeiro hospital, para tirar a temperatura da bebê. “Os especialistas com quem falamos disseram que as feridas encontradas na genital foram resultado disso”.
A partir daí, a equipe pediu a especialistas que analisassem as provas e testemunhos ao tribunal. Todos os que foram consultados consideraram “anatomicamente impossível” a causa da morte apontada no julgamento pelo patologista. “Ele disse coisas completamente falsas”: que a bebê havia morrido em consequência de ferimentos anais. A tese da violência sexual havia sido corroborada pelo testemunho de outros médicos.
Após Cristina e sua equipe apresentarem o boletim médico inicial e outras incongruências, quase todos os médicos que haviam testemunhado voltaram atrás e se retrataram, alegando não terem visto os boletins médicos completos que indicavam que não havia evidências de abuso sexual quando a bebê foi examinada no primeiro hospital.
Passaram a admitir que os ferimentos genitais podiam ter sido provocados durante o atendimento médico.
CONDENAÇÕES SEM PROVAS PARA POBRES
Há 12 anos atrás, Cristina e sua equipe apresentaram aos tribunais um documento de 395 páginas provando a inocência de Benavides. Como registrou a BBC, “foi esse documento que acabou sendo chave para que um juiz da Suprema Corte da Califórnia decidisse absolver o agricultor mexicano em 2018 e determinar sua libertação”.
Como assinalou Cristina, o que sucedeu a Benavides “é típico de pessoas que não têm dinheiro. Os tribunais têm muitos casos que carecem de provas”.
Nos últimos quarenta anos, apenas quatro condenados à pena de morte foram absolvidos na Califórnia. Conforme a BBC, desde 1967, há apenas 122 absolvições daqueles que estavam no corredor da morte.
No ano passado, outro caso de inocente que estava no corredor da morte, chamou a atenção: o negro Malcolm Alexander, que havia sido condenado à prisão perpétua por estupro na Louisiana e estava no cárcere há 38 anos, foi libertado aos 58 anos, após teste de DNA inocentá-lo e ter seu julgamento revisto. “Rezei minha vida inteira por isso”, disse seu filho, Malcom Stewart, que estava no tribunal.
Conforme seus defensores, do “Innocence Project”, o advogado do primeiro julgamento de Alexander falhou ao não enfatizar que a vítima tinha tido dúvidas quando o reconheceu como o estuprador em 1979. Evidências de DNA descobertas em 2013 e que eram consideradas perdidas foram essenciais para a reversão.
TRÊS DE ANGOLA
Mas poucos casos são tão emblemáticos quanto os “Três de Angola”, os panteras negras libertados após décadas de solitária na mais terrível penitenciária da Louisiana, que leva esse apelido em referência ao um antigo campo de escravos.
Albert Woodfox foi libertado em 2015, aos 68 anos de idade, depois de ter estado na solitária por 43 anos, desde 1972. Ele sempre se disse inocente da acusação de ter matado um guarda do presídio durante um motim.
Woodfox foi julgado e condenado duas vezes pela morte do guarda e acabou por ver essas duas condenações revogadas por tribunais de recurso, embora tenha continuado preso.
Ao ditar a libertação imediata de Woodfox, o juiz James Brady alegou várias “circunstâncias excepcionais”: a falta de confiança no estado do Louisiana para realizar um julgamento imparcial; o número de anos que Woodfox esteve em isolamento; a sua idade e o seu estado de saúde; e “o fato de o Sr. Woodfox já ter sido julgado duas vezes e de se arriscar a enfrentar um terceiro julgamento por um crime ocorrido há mais de 40 anos”.
Herman Wallace foi libertado em outubro de 2013, apenas para morrer poucos dias depois, de câncer no fígado – passara a maior parte dos últimos 41 anos numa cela de 1,82 metros por 2,70 metros, de onde saía apenas uma hora por dia, e nem sequer todos os dias da semana.
Robert Hillary King foi libertado em 2001, ao fim de 29 anos na solitária, depois de a sua condenação – pela morte de outro preso – ter sido revogada. Durante uma homenagem aos Panteras Negras em 2011, King afirmou que na prisão da Louisiana se continua a praticar “escravatura legal”.
No documentário In Te Land of the Free (‘A Terra dos Livres’), de 2010, a viúva do guarda prisional morto em 1972, Teenie Rogers, disse que acredita na inocência dos “Três de Angola”, uma declaração que repetiu em 2014 à Anistia Internacional. “Acredito que os ‘Três de Angola’ estão inocentes. Li todas as provas e ninguém me convence do contrário: eles estão inocentes.”
Em tempo: apesar de já não estar no corredor da morte, o ex-Pantera Negra e radialista Mumia Abu Jamal permanece acintosamente preso desde 1981.