Governo se omite em meio à situação de brasileiros e dos imigrantes venezuelanos. Para Claudio Lamachia, “cabe ao governo federal uma atuação urgente”
Os recentes acontecimentos ocorridos na região de fronteira Brasil-Venezuela, no estado de Roraima, demonstraram o descaso do governo Temer (PMDB) com os imigrantes venezuelanos e com a população brasileira. Para a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o “está claro que o problema vem se agravando pela inoperância das autoridades ao longo desse episódio. O que era uma questão humanitária agora tem forte conotação de segurança”.
Desde o último sábado (18), a cidade de Pacaraima, no norte de Roraima, vive uma situação de caos. A onda de violência começou após um comerciante local ser espancado por quatro venezuelanos – segundo a polícia, e ter R$ 23 mil e celulares roubados. Raimundo Nonato está internado no hospital geral de Pacaraima com traumatismo craniano, com quadro estável. A tarde de sábado foi tomada por gritos convocando moradores a se unirem e saírem pela cidade atrás de venezuelanos.
Após o incidente, grupos de moradores da cidade atacaram os acampamentos dos refugiados venezuelanos que, após entrarem pela fronteira, permanecem no município por falta de condições para locomoção a outras localidades.
Os venezuelanos foram obrigados a deixar Pacaraima. Ao todo 1.200 imigrantes cruzaram a fronteira de volta. Enquanto o ataque acontecia nenhuma autoridade brasileira interveio, ninguém foi preso.
A venezuelana Yineth Manzol, de 26 anos estava abrigada, em um terminal com as três filhas (de 7 e 5 anos e a caçula de 10 meses) quando um grupo de brasileiros chegou com paus e pedras agredindo quem encontrasse. “Agarravam os meninos e os agrediam. Batiam nos pais. Atiravam pedras, telhas. Batiam na cabeça”, conta. “Pegaram nossa comida e nos expulsaram como se fôssemos cachorro. Quem estava no banheiro [e não pode fugir] ficou sem nada”, contou.
Cerca de 2.000 a 3.000 pessoas estavam dormindo em tendas nas ruas. Quem estava sob as tendas, esperando a triagem e a documentação, teve que sair correndo e cruzar a fronteira.
Para permitir a passagem, o Exército fez um cordão de isolamento, gerando revolta dos presentes no local, que, entre estrofes do Hino Nacional, chamavam os militares de “periquitos verdes”. Eles fecharam o acesso à cidade com uma grande fogueira de pneus, aos gritos de ódio contra os “venecas”.
Os que fugiram deixaram os pertences para trás; o que ficou, virou fogueira, a maior delas em frente à rodoviária. Ali foram incineradas malas inteiras, comida, lençóis, barracas, tudo que pudesse ser dos estrangeiros.
A rodovia que faz a divisa dos países ficou fechada, só foi aberta no final da tarde com negociação da Polícia Rodoviária Federal e os locais comemorando a “vitória” e considerando terem passado o recado: “Quem manda no Brasil é os brasileiros”.
ÓDIO
É a ação insuficiente do poder público que incita o discurso xenófobo. Sem a participação efetiva do estado não há atendimento emergencial para instalar alojamentos, provisão de alimento, ampliação dos serviços de saúde e intermédio para emprego à altura da necessidade dos moradores de Pacaraima e os refugiados venezuelanos.
Yaretsi Corrêa, de 37 anos, deixou a cidade de El Tigre e há quatro meses vivia em um barraco às margens da BR-174, chorou bastante ao ver que todo alimento que ela estava guardando para levar para os filhos na Venezuela foi queimado. Além disso, todos os documentos dela e de seu marido, como Cédula Venezuelana, CPF brasileiro, cartão do SUS, diploma universitário e certificado de conclusão da escola, foram incendiados.
“Eles [brasileiros] nos disseram que se continuarmos aqui vão nos matar. Vou estar mais tranquila quando cruzar a fronteira”, disse Yaretsi.
A venezuelana Mariver Guevara, de 42 anos, vivia com a filha de 13 anos. “Chegaram nos atacando, atirando pedras, garrafas. Foi muito violento. Aqui moravam crianças, mulheres, recém nascidos de dois meses. As pessoas saíram correndo. Foram empurradas. A gente tentava se defender, mas não podia porque era muita gente”.
“Não sei o que fazer. Não quero voltar para a Venezuela”, afirmou Mariver Guevara.
O cenário na região fronteiriça vinha sendo tenso há algum tempo. Um relatório deste ano da FGV/DAPP já fazia um alerta para eventuais distúrbios:
“Um fator de grande preocupação em Roraima é o surgimento de conflitos pela disputa de emprego, vagas no sistema público de ensino e em hospitais — apenas em fevereiro, foram registrados dois ataques a venezuelanos. (…) A sensação de sobrecarga estaria, portanto, menos ligada a uma piora dos serviços a partir do maior contingente de imigrantes e, sim, mais relacionada a um cenário em que a prefeitura, sem o apoio dos governos estadual e federal para atrair projetos de desenvolvimento econômico para a região, não consegue prover o necessário a uma população majoritariamente desempregada, ou inserida no mercado informal, e pouco instruída”, diz o documento.
A governadora de Roraima, Suely Campos (PP), afirmou que já havia solicitado, desde o ano passado, a presença de mais homens da Força Nacional e apoio para a região fronteiriça. Segundo ela, os repetidos ofícios encaminhados ao governo Temer foram ignorados.
“Roraima vem solicitando da União o aporte de R$ 184 milhões, a título de ressarcimento dos gastos já efetuados pelo estado, para garantir a compra de remédios, materiais de cirurgias, aparelhamento das polícias para enfrentar a onda de violência, e assegurar educação para alunos estrangeiros. É uma quantia significativa para Roraima, mas irrisória para a União. A intervenção militar na Segurança Pública do Rio de Janeiro, por exemplo, foi orçada em R$ 3,2 bilhões”, aponta Suely.
O presidente nacional da OAB, Claudio Lamachia, criticou a gravidade da situação na fronteira. “Nesta semana estive em Boa Vista, capital de Roraima, onde pude presenciar as dificuldades enfrentadas tanto por imigrantes quanto pela população das cidades que hoje são a porta de entrada daqueles que buscam uma condição melhor para sobreviver”, afirmou.
Segundo ele os mais de 800 imigrantes que entram em Roraima todos os dias, “causam uma sobrecarga aos hospitais, tornando ainda mais vulnerável todo o sistema de saúde, além de reflexos no número insuficiente de vagas em escolas e o aumento da criminalidade”.
Para Lamachia, “cabe ao governo federal uma atuação urgente antes que uma tragédia aconteça. Está claro que o problema vem se agravando pela inoperância das autoridades ao longo desse episódio. O que era uma questão humanitária agora tem forte conotação de segurança. Os Estados precisam se organizar para receber os venezuelanos e dar um exemplo ao mundo de democracia e solidariedade”.
REFUGIO
Na segunda-feira, o governo de Roraima entrou novamente com um pedido no STF para o fechamento da fronteira com a Venezuela. No inicio do mês, a ministra Rosa Weber (STF), já havia indeferido o pedido. “A proteção aos refugiados está intimamente ligada à proteção dos direitos humanos”, destacou a ministra em seu parecer.
Weber alertou ainda que “partir para a solução mais fácil de ‘fechar as portas’, equivalente, na hipótese, a ‘fechar os olhos’ e ‘cruzar os braços”, não deve ser o tratamento para os venezuelanos que buscam refugio em meio a esta grave crise que o país vizinho vive.
De acordo com a mais recente estimativa da ONU, 2,3 milhões de venezuelanos deixaram o país nos últimos três anos, em um êxodo provocado, sobretudo pela falta de alimentos e medicamentos. O período marcou o agravamento da crise política, econômica e social na Venezuela. Apesar da tensão provocada pela chegada de imigrantes a Roraima, o Brasil não é o país que mais recebeu venezuelanos no período recente, a Colômbia abriga atualmente cerca de 870 mil venezuelanos, enquanto o Peru abriga 400 mil e o Equador, cerca de 110 mil.
Para a ministra, a existência de uma barreira para evitar a entrada de imigrantes “é medida que deflui de todas as normas internacionais a que aderiu o Brasil”.