Até o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Sydney Sanches, que presidiu o julgamento de Collor em 1992, há muito aposentado, saiu a campo para dizer que jamais viu algo como o inquérito aberto por Dias Toffoli, supostamente para investigar injúrias ao Tribunal.
A preocupação de todos os juristas que ocuparam, nos últimos dias, os jornais, as rádios e a TV era, mais ou menos, confluente:
No momento em que o país mais necessita do Supremo Tribunal Federal (STF) para defender a sua Constituição – já que os encastelados temporariamente no governo são inimigos da Carta de 1988 – o sr. Dias Toffoli conseguiu um jeito de prejudicá-lo, inventando um inquérito que, até agora, serviu para unir a sociedade contra ele, mas com Bolsonaro e caterva, travestidos de democratas (cáspite!), na mesma onda.
Assim, ao invés de juristas, jornalistas, etc. unirem-se contra Bolsonaro, foram obrigados a unir-se contra o inquérito de Toffoli, que conta, no momento, com o apoio do PT…
Todos sentem essa situação como desconfortável. Daí o conjunto de declarações de entidades e personalidades contra esse inquérito.
Há muito frisamos a falta de condição de Toffoli para ser ministro do STF. Falta a ele, para começo de conversa, o “notório saber jurídico”, que é uma exigência da função.
Falta-lhe, também, bom senso. Mais ainda para ser presidente do STF. A rigor, Toffoli transformou a função em um cargo, com as fantasias inerentes a quem jamais se achou, com razão, capaz de ocupá-lo – daí a sua ilusão de que a Presidência do STF é capaz de protegê-lo de qualquer coisa, inclusive da verdade.
Há cerca de um mês, quando Toffoli anunciou a abertura de um inquérito supostamente para apurar uma campanha de injúrias, calúnias e difamações contra o tribunal máximo do país, escrevemos um artigo, apontando algumas anomalias e estranhando as circunstâncias.
No entanto, acabamos por não publicá-lo. Não estava claro, então, o verdadeiro objetivo desse inquérito. Ater-se apenas a aspectos formais das leis – por exemplo, o fato de que, nesse inquérito, se fosse sério, o STF, contra a Constituição, seria, ao mesmo tempo, vítima, investigador e juiz – pode, muitas vezes, redundar naquilo que Rui Barbosa chamou de “prevaricação judiciária”: uma manobra para impedir que aquilo que é justo prevaleça (Rui, nesse trecho, estava se referindo aos juízes, e não aos jornalistas ou escritores que comentam decisões de juízes; mas não há razão para achar que, nisto, haja diferença entre uns e outros. V. O justo e a justiça política, in Obras Completas de Rui Barbosa, vol. XXVI, tomo IV, p. 191).
Mas a verdade é que os aspectos jurídico-formais sempre expressam um determinado conteúdo político e social.
O que faz um cidadão que se sente ofendido por uma campanha de difamação?
Deixando de lado o chamado desforço físico – que não é recomendado pela lei – esse cidadão pode recorrer à polícia ou ao Ministério Público (é o recurso a este último que se chama, comumente, “recorrer à Justiça”, pois somente o promotor ou procurador pode denunciar um agressor à Justiça).
Nenhum cidadão pode instalar uma investigação oficial sobre um ato de que foi vítima – muito menos pode julgar os culpados.
O STF não é diferente, nisso, de qualquer um de nós.
Então, por que o presidente do STF não recorreu à Polícia Federal ou à Procuradoria Geral da República para a instauração do inquérito sobre a campanha de difamação ao Tribunal?
Foi a falta de resposta a essa questão que nos fez suspender a publicação do artigo de que falamos acima.
Nossa função social não é, sem dúvida, despejar sobre o leitor aquilo que não entendemos – ou fabricar uma resposta, sem levar em conta se ela é verdadeira ou falsa.
FUNDAMENTO
No caso, havia um elemento agravante: o comportamento pouco sereno do procurador Dallagnol, na força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba, não era muito propício a inspirar confiança. Nem em nós, nem na procuradora geral da República, Raquel Dodge (v. Dallagnol coloca em risco, outra vez, a Operação Lava Jato).
Portanto, quando os procuradores protestaram contra o inquérito – não somente pelas ilegalidades, mas porque achavam que era voltado contra eles, e , em particular, contra a Operação Lava Jato – nós preferimos aguardar.
Entretanto, com os últimos acontecimentos, é forçoso concluir que o motivo alegado por Toffoli para o inquérito (“a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, (…) que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”) era um pretexto.
Toffoli não estava preocupado com o STF – e seu prestígio diante da população.
Se estivesse, não teria feito o que fez.
Relembremos, então, algumas coisas.
1) A base legal para o inquérito de Toffoli – pelo menos, a que alegou – é um artigo do regimento interno do STF que diz:
“Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro” (grifo nosso).
Trata-se de um artigo anterior à Constituição de 1988. Mas não é importante, aqui, a discussão sobre sua constitucionalidade ou não, diante da mudança de Constituição.
O que é claramente – escandalosamente – inconstitucional é a interpretação que Toffoli deu a esse artigo para instalar o inquérito.
Pois é evidente que o artigo destina-se a crimes cometidos dentro da sede do STF. Um jurista exemplifica: “o crime teria de ser cometido na sede ou dependência do STF e envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição. Ou seja, seria para casos como desacato, incêndio doloso, lesões corporais e homicídio, ocorridos em suas dependências e atingindo seus ministros ou outras pessoas a eles vinculadas” (cf. César Dario Mariano da Silva, “Ainda sobre o famigerado inquérito judicial e sua fundamentação equivocada”, OESP, 19/04/2019).
Toffoli, para instaurar o inquérito, estendeu o conceito (?) de “sede ou dependência do Tribunal”, a qualquer lugar onde esteja um ministro do STF, inclusive as suas próprias residências pessoais.
Porém, mais do que isso: levando essa lógica até às últimas consequências, como os ataques são “virtuais” – ou seja, via Internet –, o mundo todo seria “sede ou dependência do Tribunal”, já que a sede e as dependências do STF se localizam no mundo.
E nem falemos do Universo…
A pergunta aqui é: para que esse atropelo monstruoso?
Para investigar alguns cabeças de bagre bolsonaristas que espalham perdigotos e xingamentos?
Se fosse assim, por que não pedir à Polícia Federal e à Procuradoria Geral da República que procedam às investigações?
A resposta possível é: porque eram exatamente as atividades da PF e do Ministério Público (MP) – isto é, aquelas que são conhecidas sob o nome genérico de Operação Lava Jato – que se estava pensando em coibir.
Portanto, era inútil pedir à PF e ao MP que coibissem a si próprios.
PROTESTOS
2) Toffoli anunciou a abertura desse inquérito-frankenstein no dia 14 de março.
No dia anterior, o STF tomara a decisão de tirar da Justiça Federal, e enviar à Justiça Eleitoral, os casos de corrupção em que houvesse, também, caixa 2 eleitoral.
É claro que essa decisão provocou protestos no país todo – inclusive, e com destaque, dos membros do Ministério Público – porque é sabido que as condições da Justiça Eleitoral para condenar alguém por corrupção são, digamos, muito difíceis.
Já abordamos essa questão em outro artigo (v. Procuradora Geral: “Não vejo risco para a Lava Jato na decisão do STF”).
É verdade, como dissemos, que o STF tem o direito de tomar a decisão que lhe pareça melhor ou mais de acordo com a Constituição.
Porém, não pode fazer isso sem que haja críticas – como, aliás, qualquer instituição da vida nacional.
No caso, independente da adequação, ou não, de certos comportamentos, de sua boa educação ou má educação, os protestos eram compreensíveis – e, até mesmo, justos.
Claro que, nessa hora, o bolsonarismo tentou apresentar-se como paladino da luta contra a corrupção – o que ele não é; pelo contrário, das milícias aos laranjais do PSL, passando pelo Queiroz, nada autoriza Bolsonaro e sequazes a representar esse papel.
Mas é claro que, por isso mesmo, a decisão do STF propiciou um palco para esses artistas.
No dia seguinte, Toffoli anunciou o inquérito do STF, perfeitamente ilegal, sem passar pelo Ministério Público, baseado em uma extensão indevida (bota indevida nisso…) da sede do STF.
Logo no dia seguinte?
Trata-se, provavelmente, da jurisprudência da pirraça.
Toffoli, aliás, acaba de repetir essa performance, ao liberar as entrevistas de Lula, após o ministro Alexandre de Moraes suspender a proibição da revista “Crusoé” e do site “O Antagonista” publicarem a matéria “O amigo do amigo de meu pai”.
Por que não fez isso antes?
Por que somente agora?
INVESTIGAÇÃO: NADA?
3) O inquérito não tinha (e não tem) fato a investigar, o que é outra ilegalidade – esta, apontada pela procuradora geral, Raquel Dodge.
Não se pode abrir um inquérito para investigar “fake news” em geral ou “denunciações caluniosas” em geral.
Pode-se abrir um inquérito, por exemplo, para investigar quem chamou o ministro Gilmar Mendes de “soltador geral” da República ou coisa pior, em um determinado dia ou período de tempo, e em determinado lugar ou lugares (é verdade que, nesse caso, não importa a localização no espaço e no tempo, o inquérito seria inviável pelo excesso de investigados).
Mas não se pode abrir um inquérito sobre os “xingamentos”, em geral, contra a honra do ministro Gilmar Mendes.
Além disso, “a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares” não podem ser estabelecidas ou definidas pelo presidente do STF, sem nem ao menos explicar o que isso quer dizer.
Nas palavras da procuradora geral, Raquel Dodge:
“O devido processo legal exige a delimitação da investigação penal em cada inquérito, seja para permitir o controle externo da atividade policial, seja para viabilizar a validade das provas, definir o juízo competente, e assegurar a ampla defesa e o contraditório (…).
“A delimitação da investigação não pode ser genérica, abstrata, nem pode ser exploratória de atos indeterminados, sem definição de tempo e espaço, nem de indivíduos.
“Tal delimitação nem de longe equivale a não dar importância concreta a tais fatos delitivos específicos que, uma vez delimitados, devem ser noticiados ao Ministério Público para que, na condição de titular da ação penal, possa requisitar e desenvolver a investigação, contando com o apoio da força policial”.
A conclusão é:
Ou Toffoli não queria investigar nada concreto (ou seja, nada) – e tudo era apenas encenação.
Ou Toffoli queria usar o inquérito para alguma coisa que não quis, ou não pôde, dizer – o que é tão ilegal quanto condenar alguém sem se saber quem é esse alguém (não é uma piada ruim, leitor: na época da ditadura houve um processo político em que se condenou um réu sem que sua identidade fosse conhecida – ele era mencionado apenas como “Jacaré”).
Pode ser, também, uma mistura das duas coisas.
O fato é que, em um mês de inquérito, a medida mais rumorosa foi censurar uma revista de direita, mas não porque tenha ofendido o STF ou dito uma mentira.
A censura foi, exatamente, porque a revista disse uma verdade: que o presidente do STF era conhecido, nos subterrâneos da Odebrecht, como o “amigo do amigo de meu pai”.
“Amigo de meu pai” era como Marcelo Odebrecht referia-se a Lula.
ESCOLHA
4) O artigo 66 do Regimento Interno do STF determina sorteio para a escolha do relator do processo/inquérito, “mediante sistema informatizado, acionado automaticamente, em cada classe de processo”.
A única exceção é a “prevenção”, em que um ministro já tomou alguma providência em determinado processo, tornando-se, automaticamente, relator em outros atos desse processo.
Mas não existia “prevenção” no caso do inquérito que Toffoli abriu.
Então, pelo Regimento Interno do STF, era obrigatório o sorteio do relator.
Esse Regimento Interno é o mesmo que Toffoli usou como suposta base para abrir o inquérito (v. acima, item 1).
No entanto, no caso do relator desse inquérito, Toffoli passou por cima do Regimento e nomeou o ministro Alexandre de Moraes.
Por quê?
Porque Toffoli não quis se arriscar a ter o inquérito arquivado logo assim que batesse na mão de algum outro ministro.
Era, aliás, como diz o pessoal do Jockey Club, uma “poule de 10”, ou, talvez, uma “poule de mil”: as chances disso acontecer eram muito grandes.
Portanto, Toffoli entregou o inquérito a quem aceitou segurar o abacaxi – isto é, a quem aceitou ser relator.
Não sabemos se outros foram consultados. Mas isso não tem importância. Se tiverem sido, apenas confirma a nossa suposição. Se não foram, isso não anula o fato de que Moraes foi escolhido porque Toffoli sabia que ele aceitaria o encargo.
Além disso, é evidente que o escolhido não poderia ser Gilmar Mendes ou Ricardo Lewandowski.
Seria bandeira demais.
VAZIA
Resta um mistério ou um quase-mistério (que nos desculpe o leitor pela má expressão).
Como Toffoli pretendia (ou pretende, já que ele prorrogou o inquérito por 90 dias) denunciar alguém à Justiça, sem a participação do Ministério Público?
Pois, no sistema judicial da Constituição de 1988, o titular exclusivo da ação penal pública é o Ministério Público, constituído pelos procuradores ou promotores.
Portanto, é impossível denunciar alguém à Justiça, exceto através do Ministério Público.
Se o Ministério Público se recusar – como, aliás, nesse caso, já se recusou – a denunciar alguém, não existe denúncia, nem, por consequência, processo na Justiça (sobre a recusa do MP, v. Fachin pede explicações sobre inquérito das “fake news” do STF).
O que parece significar que o objetivo do inquérito não é investigar e encontrar culpados.
Muito mais, seu objetivo é intimidar procuradores.
E auditores fiscais: a esposa de Toffoli, Gilmar Mendes – e também a esposa deste – estão entre as 134 pessoas investigadas pela Equipe Especial de Programação de Combate a Fraudes Tributárias (EEP) da Receita Federal (v. Receita Federal investiga secretamente 134 agentes públicos, mostra documento, e, também, a nota do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais: Declarações ofensivas de Gilmar Mendes são inaceitáveis).
Tudo perseguição política – devem ter aprendido essa tecnologia com o Lula.
Então, já que é assim, Toffoli resolveu perseguir, na esperança de não ser perseguido…
Como se esse tipo de narrativa anulasse a diferença entre a verdade e a mentira.
Não anula.
C.L.