– a propósito do ponto de vista dos répteis sobre o Brasil e a espécie humana –
CARLOS LOPES
Recentemente, Fernando Henrique Cardoso confessou a sua preferência pelos jacarés em relação aos seres humanos. Como ostenta provisoriamente o título de presidente de uma comunidade de seres humanos, a declaração causou espécie, e, mesmo, em muitas áreas, surpresa. Não foi o caso do HP. Já tínhamos, há bastante tempo, percebido sua afeita identidade com o gênero dos reptilianos. Mas se havia ainda alguém com dúvidas, apesar da sua confissão, a quilométrica entrevista concedida à “Veja” desta semana, dirimiu-as. Segundo o editor da revista, o objetivo foi dar oportunidade a Fernando Henrique de expor o seu pensamento. Sobre isso não existe vestígio. Mas assim é a natureza. Só os seres humanos – que assumem sua condição e gostam dela – pensam.
Realmente, há de tudo na entrevista, menos pensamento. Segundo ele, “esquerda sou eu”, e repete: “esquerda sou eu. Eu sou um combatente contra o neoliberalismo”. Julga-se um “incompreendido”: “eu digo: não é possível que não vejam, não é possível. Não veem pelo menos o que eu estou querendo fazer? Eu queria que os inteligentes compreendessem. É para esses que digo: não é possível!”.
Pelo menos ele já reparou que a barra está muito, muito pesada para o seu lado. Mas esse apelo algo desesperado aos “inteligentes” é um ato falho que equivale a outra confissão: a de burrice. Se os inteligentes não o compreendem, o que será que ele, no fundo, se considera? No que, aliás, apesar de não o reconhecer, tem toda razão. Na verdade, seu problema não é que não o compreendam, coisa bastante fácil. O que ele quer é que o apoiem, que se submetam à sua política, assim como ele se submete aos interesses de bancos e outros cartéis transnacionais. Coisa, evidentemente, impossível para alguém inteligente, isto é, para o povo brasileiro, que, por compreendê-lo, faz votos de que ele se junte logo, e de uma vez, aos jacarés.
Homem de “esquerda” muito coerente, ele também chegou à conclusão de que “o problema não é ser de esquerda, direita, social-democrata ou conservador. É ser atrasado”, o que nada tem a ver, logicamente, com nenhuma definição ideológica. Seria injusto chamar isso de sociologia de latrina. Esta, sem dúvida, é muito mais inteligente.
O problema do Brasil, tal como o finado Eugênio Gudin, o mumificado Bob Fields e sua ilustre antecessora, Dona Maria, a Louca, sempre matraquearam, não é o bloqueio ao seu desenvolvimento por uma matilha que saqueia o país de dezenas e centenas de formas, cartéis, trustes, monopólios e os governos que dirigem nos países centrais. Nós é que somos “atrasados”. A culpa é nossa, do povo. Como pode-se ver, uma concepção moderníssima, e porque não dizer, revolucionária, do que é ser “esquerda”. Por ela chegamos à conclusão de que ser “esquerda” é, numa palavra, repetir as baboseiras que a direita mais obtusa e cretina repete há 500 anos. Mas ele quer “ser de esquerda”, tão somente, porque hoje, no país, não há nada nem ninguém mais à direita – isto é, mais isolado no seu rancor contra a Nação e o povo – do que ele.
Presumindo que os leitores são uma plêiade de incautos, Fernando Henrique faz citações à torto e à direito dos autores mais disparatados – em geral um pugilo de mediocridades reacionárias – revelando, no entanto, sempre e em todos os casos, uma ignorância abissal sobre o que eles disseram ou escreveram. Para provar (coisa que, apesar de inútil, ele acha indispensável, já que ninguém acredita) que é “de esquerda”, o nome de Gramsci é citado como se fosse uma boia em meio ao naufrágio do Titanic.
Pasme o caro leitor que, segundo Fernando Henrique, Gramsci, que rompeu com a social-democracia exatamente por ser marxista-leninista, teria dito que “a social-democracia tem a mesma raiz leninista, via Estado”. Que a questão do Estado foi precisamente a principal questão política que diferenciou – e diferencia – os sociais-democratas dos leninistas, não passa pelo bestunto do intelectual de salão.
É difícil saber o que é crassa e bestial ignorância, e o que é fraude. O mais provável é que sejam as duas: as citações de Fernando Henrique têm a mesma qualidade das suas estatísticas.
Depois de mencionar um vadio qualquer, ao que parece presidente de algum partido italiano, ele se declara “gramsciano”, de acordo, certamente, com alguma versão de Gramsci que lhe obsequiaram naquele lugar que, como se sabe, ele acha que deve servir de modelo para o resto do Brasil, a Praça Mauá, em frente ao cais do porto, no Rio: “num famoso artigo, ‘Americanismo e Fordismo’, Gramsci faz uma crítica da esquerda… Ele injeta então o que hoje seria chamado de liberalismo… E diz: ‘não é possível, tem gente aqui na Itália que se aposenta aos 25 anos’; ‘com esse corporativismo não é possível avançar’.”. Em suma, Gramsci seria a favor de acabar com as aposentadorias dos trabalhadores, demitir em massa servidores públicos e dissolver os sindicatos…
Gramsci não “injetou” nada, até porque não era dado a essas coisas esquisitas. E “Americanismo e Fordismo” (Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, 4a. ed., Civ. Bras., 1980, pág. 375) não é um “artigo” de Gramsci. É um rascunho esboçado na prisão, notas para um trabalho posterior que ele não teve tempo de escrever, muito menos de publicar. E seu conteúdo é o oposto da impostura de Fernando Henrique.
Neste texto não há “crítica da esquerda” alguma, exceto se alguém considerar que Trotsky e o trotskismo – que Gramsci achava “necessário derrotar” – têm algo a ver, ainda que remotamente, com a esquerda. O tema central de Gramsci, neste rascunho, é o parasitismo de certos setores sociais, sobrevivências do feudalismo, e que constituíam, na Itália, um entrave ao desenvolvimento do capitalismo, vivendo às custas dos trabalhadores e dos empresários nacionais. Os parasitas feudais tinham, como é próprio deles, uma corte de apaniguados (nas palavras de Gramsci: “quando um cavalo caga, vários passarinhos comem”), que eram nomeados para funções no Estado, sem concurso, não para serem servidores públicos, mas para serem servidores deles:
“homens relativamente jovens (com pouco mais de 40 anos), gozando de ótima saúde, no pleno vigor das forças físicas e intelectuais, depois de 25 anos de trabalho numa repartição, não se dedicam mais a nenhuma atividade produtiva, vivendo de pensões mais ou menos elevadas. Enquanto isso, o operário só pode receber a pensão depois de 65 anos, e para o camponês não há nem idade-limite para a aposentadoria”. (págs. 379/380 – grifo nosso)
Ou seja, é dos fernando-henriques feudais que Gramsci está falando. E é exatamente um desses elementos que quer, no Brasil, que o trabalhador só possa se aposentar aos 65 anos – depois de se aposentar muito antes dos 25 anos de trabalho.
Para evidenciar o problema histórico-social do parasitismo, Gramsci se vale de uma comparação com os EUA – daí o título, que não é de sua autoria -, onde não houve feudalismo, e, portanto, esses segmentos parasitários não existiam. Mas, ao fazer isso, demonstra como, na época do capitalismo monopolista, o parasitismo e sua decorrência, a decadência ideológica e moral, voltam outra vez, não mais como resquício feudal, mas como produto do domínio dos cartéis financeiros.
Fernando Henrique, cuja política é o mero servilismo diante desses parasitas, pretende-se “gramsciano”. Poderia se declarar também, se quisesse “provar” o seu fervor religioso, adepto das Testemunhas de Jeová, mas provavelmente estas não o aceitariam – parece que é uma questão de princípio desta religião, assim como de todas, não aceitar vigaristas. Mas ele acha que como Gramsci, que morreu combatendo o fascismo e seus picaretas pseudo-intelectuais, não está mais neste mundo, as pessoas vão acreditar em qualquer asneira que disser. Ledo engano. Só ele é capaz de acreditar na própria farsa. E para isso é preciso ser, além de atrozmente ridículo, muito doente.
Vamos agora ao conteúdo da “esquerda” da qual Fernando Henrique é membro – único, solitário e isolado, como ele mesmo reconhece. No vocabulário das pessoas comuns, isto é, dos seres humanos, tal “esquerda” recebe o nome de direita capachilda, vendida e rastejante. Mas Fernando Henrique resolveu reinventar o dicionário, certamente para que possa ser utilizado pelos jacarés, lagartixas, camaleões e outros aparentados.
Diz ele que o “mais complicado” são “os capitais que se liberaram e estão flutuando pelo mundo. Este último ponto é extremamente negativo do ponto de vista da ordem de cada sociedade… não os capitais que movem o sistema produtivo, mas esses que flutuam. Com relação a essa massa brutal de recursos que flutuam, não há país, não há governo, não há Banco Central, nem o BIS, em Zurique, – nada é capaz de controlá-la”.
Ao mesmo tempo, diz que “globalização é uma nova forma de dominação. Não tenho dúvidas quanto a isso. O problema é como conviver com ela, o que contrapor a ela”. A palavra “contrapor” aí é muito mais estranha do que Pilatos no Credo. Trata-se de mais uma enrolação: como “conviver” e “contrapor” ao mesmo tempo? E repete: “é verdade que é uma nova forma de dominação. Está globalizando, isso modifica a vida numa porção de aspectos e o resultado pode vir para o bem ou para o mal”.
Trata-se de um caso inédito: um capital que “ninguém é capaz de controlar”, portanto temos que nos submeter a ele. Mas, alto lá, trata-se de uma “dominação” que “pode vir para o bem”. Que maravilha de raciocínio sociológico! Mas não é tudo: “o mundo da globalização é ao mesmo tempo essa confusão do dinheiro internacional, da homogeneização da produção, da fragmentação – e um mundo que coloca de novo a humanidade como sujeito, porque traz à tona questões que afetam a todos”.
A única coisa que se parece com “globalização” nessa bagunça – além do desemprego, da fome e da miséria mundiais – é a especulação delirante, predatória e voraz. É a esta que Fernando Henrique acha que temos de nos submeter, para o nosso “bem”, e que “coloca de novo a humanidade como sujeito”. Trata-se de mais uma revolucionária inovação sociológica: submeter-se à escravidão, não só pode trazer o “bem”, como transforma o escravo em “sujeito”. Como sabem, por exemplo, os negros, que estão até hoje amaldiçoando a abolição da escravatura, bendita instituição. É impressionante o sucesso que essa tese fez entre os lagartos, onde encontra-se em grande moda. Fez o maior furor no último Congresso Lagartal de Sociologia.
Significativo de seus apurados dotes mentais é que ele considere que se trata de uma “nova forma” de dominação. Realmente, só tem 120 anos. Novíssima, em plena flor da idade. É verdade que, naquela época, chamava-se imperialismo. Homem de cultura verdadeiramente crocodiliana, Fernando Henrique não tomou conhecimento ainda do primeiro livro importante sobre o assunto, escrito pelo empresário inglês Hobson, no recente ano de 1900, e que chamava-se, precisamente, “Imperialismo”. Nem do segundo, de Hilferding, de 1910. Nem do terceiro, e definitivo, de Lenin, que ele odeia e detesta na exata proporção de sua ignorância e servilismo. Também, ao que parece, nunca ouviu falar do brilhante “A Ditadura dos Cartéis”, do empresário brasileiro Kurt Mirow.
Nada existe de novo na especulação desenfreada, na espoliação dos países capitalistas periféricos ou no domínio do mercado por meia dúzia de monopólios privados estrangeiros. O que existe hoje é, unicamente, a exacerbação histérica, desesperada e senil dessa tralha, e isto, exatamente porque nunca esteve tão decadente, tão podre. O que se esconde sobre a asneira da “globalização” é, unicamente, a guerra feroz de três quadrilhas – a americana, a alemã e a japonesa – pelo domínio de mercados cativos, sob pena de desaparecerem do mapa. Guerra, diga-se de passagem, já perdida: quem, depois do México, Tailândia, Malásia, Indonésia, etc., duvida disso? Só algum ou outro réptil.
O Brasil, por exemplo, sempre se defendeu e controlou, com mais ou menos sucesso, dependendo da firmeza dos governantes, o ataque da especulação estrangeira. Se hoje não controla, é, exclusivamente, porque Fernando Henrique escancarou o país para ela, sobrevalorizando artificialmente o câmbio para subsidiar uma enxurrada de importações totalmente supérfluas, mantendo, para financiá-las, os juros na estratosfera, exatamente para “atrair” a especulação, esse capital que ele chama de “flutuante”, e que nada mais é do que agiotagem parasitária.
Quanto ao “capital produtivo” estrangeiro, de “produtivo” na verdade ele nada tem: veio apenas para tomar empresas nacionais, privadas ou públicas, oferecidas de bandeja pelos servos do governo. Aliás, em boa parte dos casos, esse “capital produtivo” é tão especulativo quanto o outro: dedica-se a comprar fábricas para fechá-las, acabando com a concorrência nacional, ou a esquartejá-las, vendendo-as aos pedaços, com um lucro imenso. O que é isso senão especulação, saque, parasitismo e pilhagem? O resto são promessas para enganar trouxas.
O resultado dessa submissão é que estamos à beira do abismo – contas públicas e externas arrombadas, falências em massa, desemprego aos milhões.
Diz Fernando Henrique que a “globalização” faz com que “a agenda dos países comece a se assemelhar”. Não. O que é, não apenas semelhante, mas idêntica, é a política do imperialismo e dos seus serviçais – os fernando-henriques, menems e outros ratos, aliás, répteis: uns praticam a submissão e a subserviência, outros a subserviência e a submissão. Como se pode ver, tudo de acordo com os interesses de cada país, porque, como ele diz, “os países não vão ficar iguais”.
Mas nem tudo está perdido no Planalto. Fernando Henrique se declara um defensor do “interesse nacional”. Talvez ele queira se referir ao interesse nacional dos Estados Unidos, mas também não é verdade: o interesse dos bancos e cartéis norte-americanos não são, muito pelo contrário, o interesse da nação e do povo norte-americanos.
“Interesse nacional” para ele é, na questão da Alca – isto é, na questão da tentativa de tornar a América Latina um quintal monopolizado pelas mercadorias dos EUA – trocar pederásticas declarações com Menem sobre quem iria ter mais profundas “relações carnais” com os donos do Norte, enquanto o senador Sarney denunciava e desmoralizava os ataques norte-americanos ao Mercosul.
Ele não tem a mais pálida noção do que significa interesse nacional. O que não é uma novidade, porque ele não tem a mínima ideia de nada. Segundo ele, na época da ditadura, “a SBPC, o Lula, o sindicato, os empresários progressistas foram inventados pela mídia”. Como é evidente, não foram a SBPC, Lula, os sindicatos ou os empresários progressistas que foram inventados pela mídia…
Outra inovação reptiliana é a de que estamos vivendo uma mudança e “”nem se percebe. Os que estão vivendo o processo de transformação não têm consciência dele. Mais tarde vem um historiador, um cientista político ou um líder político e formula que mudou. Ex post pode-se dizer: houve uma revolução”. Trata-se, provavelmente, de uma revolução de descuidados: só depois é que se sabe que a carteira foi batida por um punguista.
No caso do desgoverno atual, não há quem não perceba as “mudanças”: a desindustrialização, o assalto ao mercado nacional, o roubo do Tesouro, a devastação na agricultura, a entrega criminosa do patrimônio público, o vandalismo na educação, a destruição do sistema de saúde, a falta de vergonha geral dos ocupantes do Planalto, Fazenda e Banco Central, o desemprego, o arrocho salarial, a miséria, etc., etc.
Só tem um elemento que realmente não tem consciência de nada disso, não percebe isso – e por três razões: porque não quer, porque não tem capacidade e porque morre de medo de ver -, qual seja, o candidato a jacaré Fernando Henrique Cardoso, que, aliás, parece ter sido reprovado nesse vestibular: os jacarés consideraram-no servil demais e o enviaram a prestar admissão entre as lagartixas, depois que o ouviram dizer que “a estrutura de nossa sociedade é mais americana do que europeia. A estrutura de classes”.
A estrutura de classes da nossa sociedade é a de um país oprimido, de um país onde trabalhadores e empresários nacionais são espoliados a partir de fora, embora seja o mais desenvolvido, o mais rico e o de maior potencial entre eles. Os EUA e os países da Europa Ocidental são sedes de potências imperialistas, sedes de cartéis financeiros e monopólios transnacionais que nos espoliam a partir destas matrizes. É evidente que a comparação é estúpida e não disfarça o desejo de destruir os direitos sociais e trabalhistas conquistados pelos trabalhadores desde Getúlio, direitos que não existem nos EUA, mas, em parte, existem na Europa, e de liquidar o empresariado nacional.
“A exclusão está diminuindo no Brasil, ao contrário do que se possa imaginar. O barulho sobre a exclusão é que está aumentando”. Genial. O “barulho” está aumentando porque o motivo para fazer barulho está diminuindo. Claro. Ainda bem que Fernando Henrique esclarece que “também não estou dizendo que não há miséria, seria louco se dissesse isso. Mas, proporcionalmente, há menos”. Como ele garante que não é louco, vamos acreditar: louco é todo mundo neste país, menos ele. Aliás, segundo os especialistas em psiquiatria e ciências afins, não há sinal mais seguro e inequívoco de loucura do que o sujeito que garante e tem certeza de que não está louco.
Seja como for ele acha um absurdo “ficar brandindo a bandeira da miséria”. E pergunta: “onde está a miséria? No Nordeste? Na periferia das grandes cidades?”. Até hoje pensávamos que, apesar dos pesares, ele morasse em um país do planeta Terra. Agora sabemos que reside num pântano mal cheiroso e escuro em Plutão. Deve ser por isso que mandou os juros para lá.
“Democrata radical”, ele não gosta dos partidos: “não acredito em partido que se propõe a refundar, sozinho, o Estado, a sociedade e a felicidade geral”. Quanto a “sozinho”, trata-se de uma evidente projeção. É difícil encontrar-se mais “sozinho”, ainda que mal acompanhado, do que ele está.
Mas o partido que não tem um programa para o Estado, a sociedade e a “felicidade geral” não é um partido político, mas uma conjunção de picaretas. Sobre “refundar”, ele, naturalmente, prefere destruir.
“Mas que partido?”, diz ele, “se acabar, faz outro”. Ou seja, ele acha que os partidos são necessários desde que concordem com ele e o apoiem. Os partidos “não representam a sociedade, mas a representam fragmentariamente. Eles conseguem agregar interesses”. Talvez seja por isso, por representarem os interesses de uma parte da sociedade, que os partidos chamam-se partidos. Mas Fernando Henrique ignora este complexo fato, presente até nos mais elementares dicionários.
Partidos representam classes, ou setores de classe, e lutam para chegar ao poder, para aplicar um programa para a sociedade. É duro ter que repetir o que é óbvio, mas, como dizia alguém mais arguto que Fernando Henrique, “’é a ignorânça que astravanca o pogresso”.
Só ele, segundo a sua concepção, tirada de modernos pensadores como Benito Mussolini, Adolf Hitler, Francisco Franco e Oliveira Salazar, é que representa a sociedade: “por que fui eleito presidente? Por que eu, ou melhor, minha candidatura, reunia uma série de valores que constituíam uma alternativa”. Como ele nunca apresentou ao povo qualquer programa, presume-se que ele esteja falando dos notórios cinco dedos: a segurança, que nunca esteve pior; a educação, que está caindo aos pedaços; a saúde, que quase deixou de existir; a agricultura, que foi devastada; e o emprego, que está proliferando nas calçadas das cidades.
Para completar, Fernando Henrique apresentou os seus heróis: o maior deles, Felipe Gonzalez, saiu escorraçado do governo, por corrupção, deixando a maior taxa de desemprego da Europa. Além disso, diz que Mitterrand tinha o mesmo estilo de “majestade e silêncio” de De Gaulle. Arrisca-se, assim, a receber durante a noite a visita do grande general, homem decente e corajoso, para a aplicação de um corretivo. Quanto à Mitterrand, há só uma ligeira confusão entre “majestade” e mediocridade. Mas é impossível que ele não faça essa confusão, uma vez que acha majestosa a sua própria mediocridade.
Darcy Ribeiro dizia que Fernando Henrique era um fenômeno: tentou provar que a escravidão era capitalista com uma pesquisa de campo feita num lugar onde não houve escravidão; depois, inventou uma “teoria da dependência” em que a espoliação externa não impedia os países dependentes de se desenvolverem e era, até mesmo, tão vantajosa, que não havia mais a fazer do que conformar-se com a espoliação – difícil era explicar onde estava e o que era tal dependência. A verdadeira, como se sabe, estava na realidade de cada trabalhador, de cada empresário brasileiro.
A entrevista publicada em “Veja” é mais uma dessa série, composta de estupidez e vigarice, permeadas por um rastejante servilismo. Realmente, era impossível, diante de tal indigência cerebral, que ele não se sentisse inconformado com o grande salto dado pela Humanidade quando passou a se locomover sobre os dois pés, tendo como consequência, segundo Darwin, Engels e Freud, o desenvolvimento da inteligência. Segundo outra escola de pensamento, não necessariamente antagônica à grande tradição dos clássicos, outro elemento foi decisivo para a identificação de Fernando Henrique com os jacarés e répteis em geral: é que eles são animais que se defendem com o rabo.