(HP 25/11/2015)
CARLOS LOPES
Ao sancionar a lei que permite um corte de 30% no salário dos trabalhadores, disse a senhora Rousseff que “a crise não pode ser desperdiçada” – como se a crise (isto é, a sua política) não fosse, em si, um desperdício de vidas, energia, trabalho e esforço, isto é, seres humanos e forças produtivas.
O que não pode ser desperdiçado – e, no entanto, é o que a política de Dilma está fazendo – é o país.
Porém, a frase “a crise não pode ser desperdiçada” é, literalmente, repetição do que disse, no final do último agosto, o economista-chefe do Bradesco, Octavio de Barros.
Segundo disse Barros, usando aqueles termos quase impagáveis (“agenda da produtividade”, “agenda do aumento da potência da política monetária”, etc.), próprios para o embobinamento de incautos, a crise é o momento mais propício – e quanto mais aguda a crise, mais propício é o momento – para acabar (não há outro termo) com a legislação trabalhista e previdenciária, com o ensino público, com qualquer proteção à indústria e à economia nacionais contra os monopólios externos, assim como para privatizar totalmente o crédito e o que resta de patrimônio público (é óbvio ao que ele estava, sobretudo, se referindo: à Petrobrás, já que o método Vaccari de privatização não foi muito bem sucedido).
Mas, falou Barros, antes de tudo é hora da “agenda da governança orçamentária”, isto é, impor que as transferências de dinheiro público aos bancos, via juros, sejam feitas em dinheiro vivo, pela “limitação” de endividamento do Estado (o projeto Serra), com o consequente aumento cavalar, ainda mais, do desvio de verbas da Saúde, Educação, etc., para os cofres rentistas.
Se faltasse prova de que é isso o que, tanto os tubarões do “mercado financeiro”, quanto a srª Rousseff, chamam de “não desperdiçar a crise”, bastaria notar em que ocasião ela repetiu a frase do porta-voz do Bradesco: ao sancionar a lei que permite o corte nos salários dos trabalhadores.
Ter uma presidente que se comporta como um papagaio do setor financeiro é grave – gravíssimo, como diria aquele personagem de Machado. Porém, do ponto de vista moral, pior é o molho de cinismo com que ela regou, para gáudio de alguns pelegos que transitam pela cúpula da Cut, essa declaração.
Pois, ao contrário de seu significado verdadeiro, ela tentou passar a crise – inteiramente provocada pela política do governo – como se fosse uma espécie de freada de arrumação. Portanto, supõe-se que, antes, a economia devia estar uma bagunça.
Essa última parte até que não é sem motivo. Mas a questão é que a bagunça de hoje é maior que a de ontem – e a presidente é a mesma. Portanto, sua solução para a bagunça é mais bagunça.
Dito de outro modo: a economia não entrou em crise porque faltasse freio ao seu crescimento. Pelo contrário, o que não faltou, a partir de 2011, foi freio. Aliás, frear o crescimento foi o único programa de Dilma logo após a sua posse, desmentindo, já na primeira eleição, tudo o que ela mesmo disse na campanha eleitoral.
Nesse sentido, é algo perfunctória a discussão de alguns economistas, uns defendendo que, depois do crescimento de 2010, a economia afundou porque houve exagero no freio, e outros defendendo que foi um fator “estrutural’ – a desindustrialização – que jogou o país no pântano.
Já veremos como as duas coisas se conjugam – e como a desindustrialização do governo Dilma conseguiu, em quatro anos, ser maior que aquela dos governos anteriores.
Voltemos, por enquanto, ao freio, isto é, à mudança da política econômica, da qual os sinais mais evidentes são: o arrocho no crédito, que o sr. Mantega – como sempre, repetindo o FMI e outras fontes externas de sabedoria – chamava de “medidas macroprudenciais” (cf. Piet Clement, “The term ‘macroprudential’: origins and evolution”, BIS Quarterly Review, March 2010, p. 59); mais importante: os cinco aumentos de juros seguidos, de 20 de janeiro a 31 de agosto de 2011.
O período seguinte, de lentíssima baixa nos juros básicos, que não foi acompanhada por outra medida – absolutamente nenhuma – que viabilizasse o crescimento pelo aumento do investimento público, acabou em 17 de abril de 2013, com a volta dos aumentos estúpidos de juros.
Ao invés de investimento público, naquela época grassou uma esquisita teoria, segundo a qual as desonerações – as isenções totais ou parciais de tributos – eram o “equivalente” do investimento público.
Evidentemente, o objetivo das desonerações era aumentar a margem de lucro dos monopólios, sobretudo os externos, na ilusão de que, aumentando seus lucros à custa do Estado – isto é, da coletividade – esses monopólios iriam investir, e, assim, o país iria crescer.
Em resumo: o negócio não era aumentar o investimento público, mas tentar aumentar o investimento privado – a rigor, o investimento dos monopólios – às custas das finanças públicas. Como se o problema das teles ou das montadoras fosse falta de lucros para investir…
Naturalmente, o máximo que essa política conseguiu fazer foi aumentar as remessas de lucros – oficiais e disfarçadas – das filiais de empresas estrangeiras para suas matrizes, e, no sentido inverso, aumentar as importações superfaturadas que essas filiais fazem de suas matrizes.
Seguiram-se, depois de 17 de abril de 2013, nove aumentos de juros seguidos, e, depois, mais uma série de sete aumentos. De 17/04/2013 a 29/07/2015 houve 16 aumentos na taxa de juros básicos.
Esses aumentos de juros só foram interrompidos entre 29 de maio e 29 de outubro de 2014 – ou seja, durante a campanha eleitoral de Dilma à reeleição.
No entanto, a srª presidente – e a cúpula do PT, de forma geral – retratam o governo Dilma, no primeiro mandato, como um paraíso.
Não chega nem a ser um paraíso artificial, daquele tipo solitário, que Baudelaire descreveu, depois de fumar haxixe (ou será que foi ópio?).
A realidade deixou de ser um complicante para o governo e o PT – exceto quando o juiz Moro decreta a prisão de um deles.
Agora, dizem eles, acabou o dinheiro. Por isso, não é possível mais uma política econômica “desenvolvimentista” – e, por isso, “agora” é necessário perpetrar uma chacina sobre o emprego, as empresas nacionais e o Tesouro (ou seja, o Estado nacional).
Isso é o “ajuste”, para o qual é essencial entregar a área econômica do governo a um preposto do setor financeiro. Caso contrário, não funciona.
Do ponto de vista ideológico, o PT está declarando que, supostamente para resolver os problemas, só existe o neoliberalismo.
Mas, como todo mundo sabe, somente os neoliberais acham isso – e ninguém mais.
Portanto, Dilma, o governo e o PT estão declarando seu credo neoliberal, e de maneira mais histérica do que fizeram os tucanos.
Por outro lado – aliás, pensando bem, pelo mesmo – estão declarando, com isso, que sua política anterior era mera palhaçada, uma demagogia para enganar os pobres, isto é, os eleitores.
Que não tenha sido assim – e nós achamos que não foi – não é importante para a questão que estamos examinando. O importante é que eles mesmos acham que assim foi. As raízes (?) desse tipo de forjicação da própria loucura, deixaremos para outro artigo – se é que teremos tempo de escrevê-lo.
Mas, por que falamos em loucura, ainda que forjicada?
Evidentemente, a ideia de que o primeiro governo Dilma afundou porque se gastou demais com os menos favorecidos – pois é isso o que se quer dizer com a história de que “o dinheiro acabou” – é uma alucinação reacionária. Somente isso e nada mais. Equivale àqueles cidadãos que, no século XIX, argumentavam que o motivo das crises que se seguiram à falência do banco Souto – aliás, Casa Souto –, em 1864, eram os excessivos gastos que os escravos impunham aos seus senhores, para sustentá-los.
Quando o governo e o PT repetem que “acabou o dinheiro” – e, por isso, é preciso agora fazer o “ajuste” neoliberal – estão, exatamente, aderindo a esse reacionarismo oligofrênico, diante do qual o falecido Plínio Salgado era quase progressista.
Por que será que os pobres, os que nada têm ou muito pouco têm, são sempre os culpados dos problemas do país? Talvez porque os ricos tenham a opinião de que poderiam enriquecer mais ainda, se não fossem as esmolas que alguns desmiolados concedem aos indigentes…
Tomemos o Bolsa Família, cujo mísero benefício familiar médio mensal é R$ 160 (cento e sessenta reais) – e, no caso dos pobres entre os pobres, é R$ 77 (setenta e sete reais).
Em quatro anos (2011-2014), segundo o Tesouro Nacional, o governo gastou R$ 89 bilhões com o Bolsa Família, que atende 13 milhões e 700 mil famílias.
No mesmo intervalo de tempo, o mesmo governo gastou R$ 868,502 bilhões com juros – cuja taxa, ele mesmo determina – e forçou o setor público (que inclui, além do governo federal, os governos estaduais, as Prefeituras e as estatais dos três níveis), nesses quatro anos, a um gasto de um trilhão e 10 bilhões de reais com juros.
Ou seja, o governo federal gastou 10 vezes mais com juros do que com o Bolsa Família, que, aliás, é insignificante do ponto de vista orçamentário.
De qualquer forma, a conversa de que “o dinheiro acabou” é estranha também em outro sentido: Dilma estava (pelo menos supostamente) governando um Estado, não uma sucursal da Legião da Boa Vontade. Portanto, que história é essa?
Estranha política desenvolvimentista é esta, que não criou dinheiro (isto é, não adicionou valor dentro da economia, pois o dinheiro é apenas expressão do valor).
Pelo visto, realmente, o PT considera que o desenvolvimento é uma variante da caridade pública. Está agora mais explicado o roubo que houve na Petrobrás… Deve ter sido um equívoco filosófico.
Sobre o “ajuste”, anotemos só de passagem – pois é uma repetição – que o objetivo da chacina sobre o emprego, as empresas e o Tesouro é aumentar a parcela da riqueza do país (renda e patrimônio) apropriada pelo setor financeiro, sobretudo pelos bancos e fundos estrangeiros. Por isso é tão essencial que os bancos tenham o controle da área econômica do governo.
Assim, ao mesmo tempo que as falências, de janeiro a outubro, aumentavam em 51,82% entre as médias empresas e em 37,14% entre as grandes empresas (certamente, não são as multinacionais), os lucros dos três principais bancos privados do país cresciam, no mesmo período, +20% (Itaú Unibanco), +16% (Bradesco), e, no caso do maior banco estrangeiro, o Santander, +165% (uma parte desse estupendo aumento do lucro líquido, é verdade, foi devida a uma decisão do STF que beneficiou o Santander, confirmando uma interpretação restrita do termo “faturamento”, que é a base para o cálculo da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social, excluindo dele, entre outras, as receitas financeiras em que não houve venda de serviços a clientes; assim, o Santander incluiu no lucro líquido mais de R$ 3 bilhões que estavam provisionados para o pagamento da Cofins).
O que dissemos sobre o cinismo da história sobre o “freio de arrumação”, exposta por Dilma, fica ainda mais claro se levarmos em consideração alguns números eloquentes – por refletirem a realidade – das “Contas Nacionais 2010-2013”, divulgadas pelo IBGE na última terça-feira.
Em 2010, o peso da indústria de transformação na economia brasileira, medido em termos de “valor adicionado bruto” (excluindo, portanto, dos preços de mercadorias ou serviços, os impostos pagos) correspondia a 15% do total.
Já era pouco, para um país que precisa crescer, e muito – e tem todas as condições para isso, exceto um governo que não traia seu presente, seu futuro e seu passado.
Porém, em 2013, o peso da indústria de transformação estava reduzido a 12,3% do “valor adicionado” total da economia brasileira (cf. IBGE, “Contas Nacionais Nº 46”, Tabela 13 – Participação no valor adicionado bruto a preços básicos, segundo os grupos de atividades – 2010-2013).
Portanto, em três anos – em apenas três anos de governo Dilma – o peso do setor decisivo para o crescimento caiu -2,7 pontos percentuais (p.p.) ou 18%.
Pode-se dizer, evitando-se exageros, que houve um massacre sobre a indústria – obviamente, sobre a indústria nacional.
Também é possível, sem dúvida, intuir que a situação piorou em 2014 – até porque nem precisamos usar a intuição, pois já temos os resultados trimestrais. Segundo estes, a queda da indústria de transformação em 2014 foi -3,8%, com sua participação na economia descendo para 10,9%. (cf. IBGE, “Contas Nacionais Trimestrais, 4º tri/2014”, p. 26).
Quanto à 2015, bem, leitores, é dispensável afirmar o que é evidente por si mesmo – falta apenas mensurar o diâmetro e a profundidade da cratera em que foi atirada a economia e a indústria brasileiras.
De 15% (2010) para 10% – presumivelmente, e com algum otimismo – a participação da indústria de transformação terá sido amputada em 1/3, e em apenas cinco anos.
Entretanto, o crescimento econômico é, praticamente, uma função do crescimento da indústria de transformação e de sua participação no conjunto da economia.
Nem mesmo é preciso ler os ensaios de Nicholas Kaldor sobre o assunto para saber disso.
Toda a nossa História, desde 1930, é uma demonstração prática dessa verdade.
Reduzir a indústria a uma coleção de maquiadoras, que, no máximo, apenas montam componentes e kits importados – com baixíssimo “valor adicionado” dentro da economia brasileira – é a forma segura de jogar e manter o país na estagnação econômica. Para um governo composto por sumidades que querem parar o tempo para continuar no poder, não deixa de ter alguma congruência.
Mas, sem dúvida, não é por amor à pureza da geometria, ou algo semelhante, que eles são, nisso, mais ou menos (?) congruentes – mas por submissão ao assalto perpetrado pelo setor financeiro, sobretudo ao assalto do setor financeiro externo.
Não apenas subserviência na omissão, mas, sobretudo, colaboração no crime: para boa parte deles, ser um pequeno banqueiro, ou um simulacro de banqueiro, um lobista ou “consultor”, passou a ser um ideal de vida – ou, mais propriamente, um ideal de ausência de vida.
Assim, para que o país precisa crescer? Somente para obrigá-los a trabalhar? Mais cômodo é ser parasita-lacaio na cadeia alimentar dos parasitas. Até que os colha outro tipo de cadeia…
Resumindo: regredimos, em termos de participação da indústria na economia, a uma situação pior que aquela do governo Dutra, quando essa participação estava acima de 18% (cf. Carmem Aparecida Feijó, Paulo G. M de Carvalho e Julio Sergio Gomes de Almeida, “Ocorreu uma desindustrialização no Brasil?”, IEDI, nov/2005, p. 2).
[UMA NOTA: Existe uma discussão, levantada por alguns economistas, de que os números de hoje sobre a participação da indústria – e, especificamente, a indústria de transformação no PIB – não seriam compráveis aos anteriores a 1995, por problemas de mudança na metodologia estatística do IBGE. Sem ignorar essa dificuldade (que, por sinal, parece sob medida para evitar comparações com tudo o que veio antes de Fernando Henrique entrar no Planalto), consideramos a imprecisão resultante como inteiramente secundária em um largo período histórico.]