
O jornal britânico The Guardian tem como manchete ‘Já enfrentamos fome antes, mas nunca assim’: crianças esqueléticas enchem enfermarias de hospitais enquanto a fome toma conta de Gaza.
O genocídio perpetrado em Gaza por Israel assumiu nos últimos dias, abertamente, sua face mais cruel e degenerada, através da fome forçada, com cenas de bebês palestinos esqueléticos, que se somam às de seus pais ou irmãos morrendo a tiros, em matadouros disfarçados de centros de distribuição de ajuda, e que chocam o mundo e tornam inadiável o fim de tamanha desumanidade.
Nesta quinta-feira (24), o jornal britânico The Guardian tem como manchete ‘Já enfrentamos fome antes, mas nunca assim’: crianças esqueléticas enchem enfermarias de hospitais enquanto a fome toma conta de Gaza. “Famílias forçadas à fome de Gaza ‘desmoronam’ enquanto a inação mundial é atingida”, registrou a Al Jazeera. “Crise de desnutrição em Gaza piora com 15 novas mortes em 24 horas”, disse El País. Até mesmo o New York Times reconheceu que “Fome severa toma conta de Gaza, onde as pessoas estão morrendo por inanição”.

Em depoimento ao Conselho de Segurança da ONU na terça-feira, o secretário-geral Antonio Guterres disse que a fome em Gaza bate em todas as portas como um “show de horrores”.
Ele denunciou que estamos vendo “estamos vendo o último suspiro de um sistema de ajuda construído com base em princípios humanitários” – em referência ao sistema militarizado instaurado por Israel e pelos EUA. Ao sistema de ajuda da ONU “estão sendo negadas as condições para funcionar. Negado o espaço para entregar. Negada a segurança para salvar vidas”.
OMS CONDENA
De acordo com dados do Programa Mundial de Alimentos da ONU, cerca de 100 mil mulheres e crianças sofrem desnutrição aguda grave no espaço palestino. “Não sei como você chamaria isso além de fome em massa e provocada pelo homem, é muito claro. Isso se deve ao bloqueio”, disse o chefe da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, em uma coletiva de imprensa virtual de Genebra.
O vice-primeiro-ministro irlandês, Simon Harris, descreveu os recentes relatos de fome em massa em Gaza como “uma afronta à nossa Humanidade coletiva”. “A fome em massa agora está se espalhando pela população. Pessoas estão morrendo todos os dias por falta de alimentos e remédios. As crianças estão morrendo de fome diante de nossos olhos. Centenas foram mortos enquanto tentavam coletar a pouca comida disponível”.
Mais de 100 entidades humanitárias, entre elas Médicos Sem Fronteiras, Oxfam Internacional e Anistia Internacional, exigiram que Israel liberasse imediatamente suprimentos para deter a fome.
“Nos arredores de Gaza, em armazéns – e até mesmo dentro da própria Gaza – toneladas de alimentos, água potável, suprimentos médicos, itens de abrigo e combustível permanecem intocados, com organizações humanitárias impedidas de acessá-los ou entregá-los. As restrições, os atrasos e a fragmentação impostos pelo governo de Israel sob seu cerco total criaram caos, fome e morte”, denuncia a carta.
“CADÁVERES AMBULANTES”
O comissário-geral da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), Philippe Lazzarini, disse que seus trabalhadores estão desmaiando de fome e que as pessoas em Gaza são “são cadáveres ambulantes’: um colega em Gaza me disse esta manhã”.
“Esta crise cada vez mais profunda está afetando a todos, incluindo aqueles que tentam salvar vidas no território devastado pela guerra. Os profissionais de saúde da linha de frente da UNRWA estão sobrevivendo com uma pequena refeição por dia, muitas vezes apenas lentilhas, se é que sobrevivem.
“Eles estão cada vez mais desmaiando de fome durante o trabalho. Quando os cuidadores não conseguem encontrar o suficiente para comer, todo o sistema humanitário está entrando em colapso.”
Há dois dias, a AFP pediu a Israel autorização para a saída de Gaza de seus redatores, fotógrafos e cinegrafistas palestinos e suas respectivas famílias. “Não nos restam forças por causa da fome”, disse um dos profissionais.
NÃO SE PODE MATAR NINGUÉM DE FOME “POR ACIDENTE”
Ao Guardian, Alex de Waal, diretor executivo da World Peace Foundation da Tufts University e autor de Mass Starvation: the History and Future of Famine, disse que o controle de Israel sobre as fronteiras terrestres e marítimas significa que o país tem supervisão total da quantidade de alimentos que entram no território, e os dados da ONU que fornecem informações detalhadas sobre a desnutrição entre os palestinos significam que seus líderes não podem dizer que a fome é um resultado imprevisto.
“Você não pode matar ninguém de fome por acidente, você pode atirar em alguém por acidente, mas … ao infligir fome, [você] tem 60 ou 80 dias em que [você] pode remediar o erro”, disse ele.
Outra entidade ouvida pelo jornal, a Forensic Architecture concluiu que as restrições de Israel à entrada de alimentos em Gaza são genocidas de duas maneiras diferentes, segundo seu diretor, Eyal Weizman.
“Obviamente, matar intencionalmente as pessoas de fome é genocida, e a fome também é usada para quebrar a sociedade. A fome é o meio e a fome é o fim.”
De Waal lembrou que essa “sociologia da fome” ou “humanismo genocida” foram primeiro apontados pelo advogado sobrevivente do Holocausto, Raphael Lemkin, que cunhou a palavra genocídio e fez campanha para que ela fosse reconhecida como crime no direito internacional.
Ele acrescentou que em escritos durante a Segunda Guerra Mundial, Lemkin “passou muito tempo descrevendo rações, racionamento como forma de minar grupos”.
Para Chris Newton, analista sênior do International Crisis Group e especialista em fome e inanição como arma de guerra, “não se trata de uma declaração formal de fome ou de um número especial de caminhões ou refeições. É sobre a tentativa de Israel de matar Gaza de fome indefinidamente sem a rápida morte em massa por fome e doenças que chamamos de fome”, disse ele. “Este experimento não pode durar para sempre, embora as consequências da fome possam.”
FOME: SEÇÃO 3 DA CONVENÇÃO CONTRA O GENOCÍDIO
Omer Bartov, professor de estudos do holocausto e genocídio na Brown University, enfatizou que se trata de um crime de guerra. “Há agora uma tentativa, como diz a resolução do genocídio de 1948, de infligir deliberadamente aos palestinos condições de vida calculadas para provocar a destruição física no todo ou em parte – esta é a seção três da convenção do genocídio”, disse Bartov à Al Jazeera.
“Então, claramente, isso é parte de uma tentativa de tornar a vida impossível para os palestinos, seja para forçá-los a sair ou simplesmente para vê-los morrer onde estão”, disse ele, lembrando que o Tribunal Penal Internacional emitiu mandados de prisão contra o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e o ex-ministro da Defesa Yoav Gallant também por usar a fome como ferramenta de guerra.
Ele lembrou como durante o cerco alemão a Leningrado (hoje, São Petersburgo), cerca de um milhão de pessoas morreram, principalmente de fome. E por não ser nova, a fome “foi incluída na definição de genocídio em 1948 – é um crime de guerra, é um crime contra a humanidade e também faz parte da definição de genocídio”.
Quanto à intenção genocida, além das próprias autoincriminações desde os mais altos escalões do regime de apartheid israelense, há os números: depois de dois meses de zero caminhões com ajuda, Israel passou a permitir a entrada a conta-gotas, 28 por dia em média – quando antes eram 500 por dia, ou seja, 5%.
FOME NUA E CRUA
“Os filhos de Akram Basheer choram de fome. Tudo o que ele pode fazer é segurá-los e prometer: um dia, quando o cerco israelense terminar, você comerá o que quiser”, relata o Middle East Eye, em reportagem assinada por Maha Hussaini e Mohammed al Hajjar, desde a Cidade de Gaza.
Uma promessa – acrescentam – que o palestino pai de três filhos sabe que não pode cumprir. ‘Não há absolutamente nada que eu possa fazer. Eu apenas os apoio psicologicamente. Eu digo a eles: ‘Insha’Allah [se Deus quiser], as coisas vão melhorar e a comida estará disponível’. Não há outra opção”.
Morando em Deir al-Balah, no centro de Gaza, Basheer, de 39 anos, passa todos os dias procurando comida suficiente para alimentar seus filhos e pais idosos, cuja saúde se deteriorou drasticamente.
Às vezes, a família de Basheer consegue uma única refeição. Muitas vezes, nem isso. “Muita coisa mudou em meus filhos por causa da fome. Eles estão perdendo peso, dormindo demais, lutando para se concentrar. O dia todo, eles pensam em comida, especialmente doces. Eles nos dizem que estão com fome o tempo todo”.
Os adultos não são melhores, acrescentou. “Todos nós perdemos peso. Qualquer pequeno esforço nos deixa completamente exaustos.” Ainda assim, Basheer acredita que consegue manter seus filhos vivos com qualquer comida que encontrar.
São seus pais que mais o preocupam. Eles são idosos e doentes, com o pai sofrendo de diabetes e pressão alta. Ele desmaiou várias vezes de tontura e fadiga”, disse Basheer. “Temos que observá-lo constantemente. Ele caiu recentemente e quebrou a mão. E sem leite, sem ovos, sem nutrição, é difícil para seus ossos se curarem.”
O MEE lembra que em 2 de março, Israel fechou completamente as fronteiras de Gaza, cortando quase toda a ajuda e suprimentos para Gaza, incluindo alimentos básicos, fórmula infantil e água potável. A Classificação Integrada da Fase de Segurança Alimentar (IPC) informou que, em maio, cerca de meio milhão de pessoas em Gaza enfrentavam uma fome catastrófica (IPC Fase 5).
“A crise começou quando a ocupação fechou as passagens no início do Ramadã, mas piorou para um nível sem precedentes há um mês e meio, quando o estoque que armazenamos acabou”, explicou Basheer.
“Eventualmente, não poderia durar para sempre. Somos uma família inteira com crianças que precisam constantemente de comida e, quanto mais tempo dura, menos alimentos básicos encontramos”.
Drama semelhante é vivido por Basem Munir al-Hinnawi. No mês passado, ele e sua família só puderam comer pão uma vez a cada quatro ou cinco dias. Ele é o único provedor de duas famílias desde que seu pai foi morto no início da guerra
“Agora eu sustento minha mãe, minhas irmãs e dois irmãos, além de minha esposa e filho de um ano”, disse o homem de 32 anos do campo de refugiados de Jabalia. “Nos dias em que não encontramos pão, às vezes compro para as crianças um pedaço muito pequeno de biscoitos amanteigados apenas para conter a fome. E quando as lentilhas estão disponíveis, fazemos sopa de lentilha.”
Hinnawi diz que durante os primeiros meses do bloqueio, a fome constante era bastante difícil. Mas nas últimas semanas, o custo físico da desnutrição tornou-se cada vez mais “insuportável”, deixando-os fracos, tontos e lutando para funcionar.
“Ultimamente, tenho sofrido de fadiga extrema e não consigo me mover facilmente. Estou constantemente tonto e severamente emaciado. Desde o início da guerra, perdi 39 quilos. Todos os meus irmãos perderam entre 15 e 20 quilos”, acrescentou.
“A cada poucos dias, temos que levar minha irmã ao hospital depois que ela desmaia devido à desnutrição, enquanto minha esposa, que está amamentando, sofre de fadiga ainda mais extrema, tontura e fraqueza. Ela não consegue mais administrar nenhum trabalho doméstico simples.
Quando Hinnawi consegue garantir uma pequena porção de comida, eles a reservam para as crianças. Quanto aos adultos, eles sobrevivem com água e sal. “Fui aos pontos de distribuição de ajuda cinco vezes e não consegui comida todas as vezes. Fui exposto a um perigo extremo, incluindo tiros de tanques e quadricópteros”, lembrou.
“Todas as vezes, eu voltava de mãos vazias. Por Deus, houve dias em que nós, adultos, passamos quatro dias sem comer nada, apenas bebendo água com sal dissolvido”, acrescentou. Sua mãe, que sofre de diabetes e pressão alta, não consegue andar 20 metros sem desmaiar.
“Nós, adultos, às vezes podemos suportar essa fome. Mas como uma criança pequena pode entender que estamos morrendo de fome deliberadamente?” Hinnawi acrescentou. “Como eles poderiam entender que não somos nós, seus pais, que não queremos que eles comam?”
Com alimentos básicos desaparecendo dos mercados e famílias suportando dias sem o suficiente para sobreviver, cenas de pessoas desmaiando de fome e exaustão se tornaram cada vez mais comuns nas ruas de Gaza. “Ainda ontem, enquanto eu caminhava por Sheikh Radwan, onde estou deslocado, uma mulher de quase 40 anos desmaiou no meio da rua de fome”, contou Hinnawi.
“As pessoas a carregavam e a colocavam na calçada até que alguém saísse de casa com uma colher de açúcar, que atualmente é muito escassa, e a alimentasse. Lentamente, ajudou-a a recuperar a consciência e se levantar. As pessoas estão simplesmente exaustas”
Enquanto isso acontece, o parlamento de Israel aprovou simbolicamente a anexação da Cisjordânia, enquanto um ministro publicava vídeo feito com a AI da ‘Nova Gaza’, a Riviera Sobre Cadáveres, sem palestinos e com a Torre Trump, e este retirava os Estados Unidos da Unesco, a organização da ONU para educação, ciência e cultura, entre outras razões porque esta aprovou a Palestina como estado-membro. Na semana passada, o New York Times disse que Netanyahu tem esticado a guerra para “permanecer no poder”, isto é, para fugir da deposição e prisão por corrupção.