
“O que aconteceu hoje em Rafah é um massacre deliberado e um crime de guerra de pleno direito, cometido a sangue frio contra civis enfraquecidos por mais de 90 dias de fome induzida pelo cerco”
Pelo menos três pessoas morreram e dezenas ficaram feridas em Gaza, quando milhares de palestinos famintos tentaram obter comida de uma organização de fachada israelense-norte-americana recém-criada, a Fundação Humanitária de Gaza (GHF), em Rafah, no sul do enclave, depois de três meses de fome e bloqueio total israelense.
No calor do meio-dia de terça-feira (27), milhares de palestinos pularam cercas e empurraram multidões para tentar obter qualquer comida.
“As forças de ocupação, posicionadas dentro ou ao redor dessas áreas, abriram fogo real contra civis famintos que foram atraídos para esses locais sob o pretexto de receber ajuda”, denunciou o Escritório de Mídia do Governo de Gaza em um comunicado, acrescentando que o incidente “fornece evidências inegáveis do fracasso total da ocupação israelense em gerenciar a catástrofe humanitária que criou deliberadamente”.
“O que aconteceu hoje em Rafah é um massacre deliberado e um crime de guerra de pleno direito, cometido a sangue frio contra civis enfraquecidos por mais de 90 dias de fome induzida pelo cerco.”
O regime de apartheid israelense proibiu a agência da ONU de assistência aos refugiados palestinos e não libera a entrada de caminhões de ajuda que sempre cumpriram esse papel, substituídos por operadores privados sob escolta das tropas de ocupação, e com os 400 pontos de entrega distribuídos ao longo de Gaza substituídos por quatro no sul.
Segundo um comunicado dos ocupantes, suas forças não direcionaram tiros contra os palestinos, mas dispararam “tiros de advertência” em uma área externa.
O porta-voz da ONU, Stephane Dujarric, disse que ver milhares de palestinos invadindo o local de ajuda foi “de partir o coração”.
“Nós e nossos parceiros temos um plano detalhado, baseado em princípios e operacionalmente sólido, apoiado pelos Estados-membros para levar ajuda a uma população desesperada”, disse ele a repórteres. “Continuamos a enfatizar que uma ampliação significativa das operações humanitárias é essencial para evitar a fome e atender às necessidades de todos os civis onde quer que estejam.”
De acordo com o último relatório de Classificação Integrada da Fase de Segurança Alimentar, 1,95 milhão de pessoas – 93% da população do enclave – estão enfrentando escassez aguda de alimentos e 500 mil estão enfrentando uma “fome catastrófica”.
“Não é assim que a ajuda é feita”, disse Ahmed Bayram, porta-voz do Conselho Norueguês de Refugiados, à Al Jazeera, descrevendo a cena em Rafah como a “consequência inevitável de um plano imprudente e desumano”.
“Acho que a melhor coisa que pode ser feita agora é que esse plano seja cancelado, revertido, e que nós, humanitários profissionais da ONU e ONGs, façamos nosso trabalho. Há toneladas e toneladas de ajuda esperando do outro lado da fronteira. [É uma] decisão muito simples: abrir os portões e mantê-los abertos.”
Organismos da ONU e organizações humanitárias têm denunciado que, há meses, Israel usa a fome como arma de guerra.
A GHF é visto como parte do plano de Netanyahu em prol da “Riviera sobre Cadáveres” proposta por Trump, a ser viabilizada pela limpeza étnica em Gaza, forçando os 2,3 milhões de palestinos a se concentrarem numa estreita faixa ao sul, despovoando o norte e visando tornar a situação tão insuportável que possam desencadear a Nakba do século XXI.
De acordo com um relatório do The New York Times, o GHF emergiu de “reuniões privadas de funcionários, oficiais militares e empresários com laços estreitos com o governo israelense”. A ONU denuncia que a fachada não cumpre com as normas internacionais de ajuda humanitária. Seu ex-chefe renunciou repentinamente esta semana, citando a incapacidade da fundação de defender os princípios humanitários fundamentais de “neutralidade, imparcialidade e independência”.
De acordo com o próprio Netanyahu, a suspensão do bloqueio total em Gaza por essa entrada de comida a conta-gotas seria para atender “aos países amigos”, que pediram que fossem evitadas “cenas de fome em massa”.
Com essa “distribuição” de comida, além de empurrar a população para o sul, bem próximo do Egito, a ocupação também busca implantar o sistema de reconhecimento facial dos beneficiários da ajuda, com óbvias consequências no terreno da vigilância e repressão.
CERCO E EXCLUSÃO DA ONU DA DISTRIBUIÇÃO DE ALIMENTOS É SADISMO CRIMINOSO
Um dos palestinos presentes à cena, Mohammad al-Sedeideh, disse ao portal Middle East Eye que “não há substituto à UNRWA (Agência da ONU para Refugiados Palestinos, criada ante a catástrofe de 1948, com a expulsão pelo terror israelense de 750 mil palestinos, muitos deles abrigados na Faixa de Gaza).
“Eles querem acabar com a UNRWA, eles não querem que sejamos consideramos pelo que somos, refugiados palestinos, de forma a poderem nos deslocar. Eu não serei expulso, eu morrerei em minha pátria”.
O comissário especial da ONU para o Direito a Moradia Digna, Balakrishnan Rajagopal, repudiou a forma como os exíguos alimentos estão sendo distribuídos por forças israelenses e mercenários norte-americanos: “É sadismo”, condenou.
“Estou sem palavras para descrever a sádica distribuição de ajuda em Gaza. É mais um crime israelense-norte-americano: o uso de ajuda humanitária para humilhação, assassinato e tortura”.
“Ao esfomear as pessoas deliberadamente, abrindo caminho para o deslocamento forçado, de acordo com a ONU, Israel tem empurrado 2,4 milhões à fome fechando as passagens de Gaza desde o dia 2 de março, bloqueando especialmente os alimentos e agora distribuindo migalhas”, afirma a agência de notícias palestina WAFA.