
“Podemos, sim, criar um mundo melhor. Não imitando o outro, mas sendo o que a gente é”, enfatizou o rabino Sobel em uma de suas entrevistas.
Nascido em Portugal, de pais judeus tradicionais que fugiram do nazismo, Henry Sobel, formado em rabinato nos Estados Unidos, escolheu o Brasil para exercer sua liderança religiosa e se tornar a principal referência e liderança da comunidade judaica do país.
Sobel, que costumava dizer que “a violação dos direitos humanos é um pecado contra Deus e contra os homens”, pôs em prática essa convicção no gesto mais significativo e importante de sua atuação enquanto rabino líder da Congregação Israelita Paulista (CIP), negou-se a aceitar a versão da ditadura de que o jornalista judeu Vladimir Herzog, o Vlado, teria se suicidado por enforcamento. Na ocasião, Sobel afirmou que as marcas de tortura no corpo do jornalista deixavam claro e sem sombra de dúvidas que a causa da morte não fora suicídio.
Pela religião judaica, o atentado contra a própria vida é um dos mais graves pecados e aos suicidas só é permitido o enterro em covas rasas, sem cerimônia religiosa e ao lado do muro ao fundo do cemitério.
Não aceitando a versão do suicídio de Vlado, Sobel fez questão de celebrar a cerimônia religiosa do enterro no centro do Cemitério Israelita. Para isso, não fez caso das pressões que sofreu de parte dos setores mais reacionários, submissos ou ligados ao regime ditatorial que infelicitava o país.
Participou da organização o do ato ecumênico idealizado pelo então presidente do Sindicato dos Jornalistas, Audálio Dantas, que reuniu uma multidão para ouvir as preleções do rabino, do cardeal Dom Paulo Arns e do reverendo Wright na Catedral da Sé. Por sua contundência e repercussão o ato tornou-se um dos marcos mais importantes na luta do povo brasileiro contra a ditadura e dos momentos que mais ajudou o povo brasileiro a conquistar o retorno à democracia.
Seus familiares, destacaram que o rabino sempre foi uma “voz firme em defesa dos direitos humanos no Brasil”.
Ivo Herzog, filho do jornalista assassinado destacou: “Se meu pai foi uma das vítimas daquele período, Henry Sobel foi um dos grandes heróis. Registro aqui minha homenagem e saudades desta pessoa que faz parte da minha vida”.
“A missão do judeu não é tornar o mundo mais judaico. A missão do judeu é tornar o mundo mais humano”
Assim como Ivo, não faltaram declarações de saudação à vida do rabino por parte de lideranças de dentro e fora da comunidade judaica.
Destacamos algumas delas:
O rabino Nilton Bonder dedicou-lhe estas palavras: “Ele sempre esteve muito presente na vida nacional, a começar por aquele ato extremamente corajoso de se colocar quando da morte do jornalista Vladimir Herzog, afirmando que não havia sido suicídio. E ali soltou sua voz, tão importante, ao lado do cardeal Dom Evaristo Arns. Junto com ele formou uma dupla muito importante na busca do retorno à democracia…Foi meu rabino”.
A Confederação Israelita do Brasil referiu-se ao amor de Sobel pelo Brasil, o que ele próprio expressou, certa vez, ao dizer que “ser judeu é amar ser brasileiro”. A Conib destaca que o rabino foi “um protagonista histórico na defesa dos direitos humanos no Brasil” e “uma das grandes lideranças religiosas” do País. “Sobel estabeleceu diálogo e construiu pontes entre o judaísmo e as demais religiões, participando de inúmeros cultos e eventos ecumênicos. Foi também representante da Conib para o diálogo inter-religioso. Sua atuação ajudou a inserir a comunidade judaica em um outro patamar na vida nacional”.

Jayme Brener, coordenador do Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil e editor de sua autobiografia, “Um Homem, Um Rabino”, afirmou que “o papel de Sobel na defesa dos direitos humanos foi muito além da comunidade judaica”.
Jayme, que em sua matéria publicada na Folha de São Paulo, destacou algumas das características pessoais que o marcavam, o sotaque americano, o corte do cabelo, o solidéu grande e colorido, prossegue afirmando: “Tikkun Olam é um conceito bastante caro ao judaísmo. Significa, literalmente, ‘consertar o mundo’. E como tudo no judaísmo, tem 5.000 interpretações diferentes. Uma delas traduz Tikkun Olam como o compromisso que o judeu e a judia têm com o mundo, além de sua família e de sua comunidade.
“Seja qual for a tradução que se escolha, ela se aplica perfeitamente a Henry Sobel (1944-2019), rabino cuja trajetória representou um compromisso permanente, muito além da comunidade judaica, com os direitos humanos no Brasil e com o mundo”.
“Agradecemos a Sobel por ter nos ensinado os caminhos do judaísmo e dos direitos humanos. Que seu exemplo seja seguido por nós”, finaliza Brener.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que prefaciou o livro de Sobel, também lhe rendeu homenagem: “Foi um bravo na hora difícil, quando vigia o autoritarismo”.
A professora emérita da USP, a socióloga Eva Blay lembra que Sobel era visto com “animosidade” e até alvo de antissemitismo por alguns, por ser “progressista”. “Uma pessoa aberta, que não tinha crítica no sentido de restringir liberdades dos indivíduos, que, para ele, eram todos iguais”.
“Tinha um trabalho que era tão grande, tão importante junto com católicos e comunidades de outras religiões pelos direitos humanos”, comenta.
A também professora da USP, a historiadora Maria LuizaTucci Carneiro diz que o legado de Sobel “extrapola as fronteiras” da Congregação Israelita Paulista, “deixando lições de dignidade, justiça e respeito aos direitos humanos”. “Como rabino, cidadão e amigo, soube usar sua sabedoria a bem dajustiça e da democracia que, neste momento, carece de seus sábios conselhos. Assim será lembrado, marcando seu lugar na história como personagem singular.”
O presidente honorário do Congresso Judaico Latino-Americano, Jack Terpins, descreve o rabino emérito Henry Sobel como o “maior líder que a comunidade judaica teve. Não teve igual a ele. Foi um cara do qual não existirá um segundo, era ele mesmo”.
Quando da inauguração do denominado Templo de Salomão, Sobel – que tinha como uma de suas características marcantes a coragem de se pronunciar abertamente sobre tudo que achava incorreto – alertou para o “desnecessário e exagerado uso dos símbolos judaicos” pela Igreja Universal.
ENCONTROS COM SOBEL
Eu tive a oportunidade de estar com o rabino Sobel em alguns momentos marcantes. A primeira delas foi quando fui recebido em seu escritório, na Congregação Israelita Paulista, logo depois da assinatura dos Acordos de Oslo. Para minha surpresa, no centro de uma bancada, atrás de sua cadeira, vi duas estatuetas, uma ao lado da outra, de Arafat e de Rabin.
Pouco depois, em um momento triste, estive ao seu lado em uma cerimônia que lotou a CIP, no primeiro sábado após o assassinato de Rabin, por um fanático judeu a serviço da direita israelense. Na ocasião Sobel me disse: “Não podemos nunca esquecer Rabin”.
Alguns anos depois, estive novamente na CIP, quando, sempre na sua atitude de corajosa afirmação de contraposição à ocupação da Palestina, a entidade presidida por ele trouxe ao Brasil a filha do general Moshe Dayan, Yael, então prefeita de Tel Aviv e aberta contestadora da ocupação dos territórios palestinos.
Em 1998, o entrevistei para o Hora do Povo, ao final de uma recepção ao ex-governador Orestes Quércia, então candidato a presidente do Brasil. Quando perguntei a ele, o motivo daquela recepção, Sobel foi claro: “Somos eternamente gratos ao Quércia por seu gesto como o único político de destaque a comparecer ao enterro de Vlado”.
As últimas das vezes em que o encontrei foi quando promoveu um debate entre jovens judeus e palestinos dentro da CIP, por solicitação do grupo Shalom Salam Paz e quando participou de um debate entre judeus e palestinos na sede da OAB. Nos dois casos, enfrentou com altivez e não se rendeu a uma enorme pressão por parte dos setores supremacistas judeus e que defendem uma postura acrítica com relação ao governo de Israel dentro da comunidade judaica paulista.
CONSCIÊNCIA TRANQUILA
Não foi à toa que Sobel, em entrevista, há poucos anos, concedida ao jornal O Estado de São Paulo, em 2013, se disse “com a consciência tranquila: “Tenho vivido bem com a minha consciência. E passei a agir não só pelo Vlado, mas por outros torturados. A causa transcendeu. Naquele momento ganhei adversários, sim, e uma recompensa: a dos jovens judeus que me acompanharam ao culto. Eles andavam comigo na catedral. Éramos um time, jogando juntos. Procurei o que era certo e Deus resolveria o resto. Isso significa ser judeu consciente. Assumir, agir, lutar se necessário. E confiar. Confiar.”
“Falta buscar outros Vlados cujos direitos foram violados, Vlados humilhados em vida e depois da vida. O trabalho pelos direitos humanos está apenas começando no Brasil. Temos um longo caminho a percorrer. E, enquanto for rabino, algo que pretendo ser até o fim da minha vida, assumo o compromisso de lutar por isso. A morte de Vladimir Herzog não terá sido em vão”, concluiu.
PRÉDICAS
Concluo esta matéria com duas de suas prédicas semanais escritas no ano de 2016 e que dizem muito de sua ideologia humana e progressista:
1 – Amigos: conta-se uma história sobre um homem que andava todo encurvado. Um colega de infância, que não o via há muito tempo, assustou-se com aquela deformidade. Ele se lembrava do amigo como um rapaz jovem e saudável, alto e ereto. Então, alguém lhe contou o que tinha acontecido. O homem havia encontrado um dia uma moeda de ouro na rua. Ficou tão contente, mas tão contente, que só pensava em achar mais e mais dinheiro. Assim, ele começou a andar curvado, com os olhos grudados no chão, sempre procurando. De fato, ao longo dos anos ele conseguiu encontrar mais algumas moedas. Enquanto isso, porém, suas costas foram se entortando e sua vista enfraquecendo. Que preço alto ele teve que pagar!
Amigos: a vida não é feita só de coisas materiais. O homem pode fazer fortuna, mas ela não pode fazer o homem. Os verdadeiros tesouros são os valores morais e espirituais que herdamos e cultivamos. São estas as riquezas que precisamos preservar e transmitir às futuras gerações.
Que possamos andar eretos, de cabeça erguida, com o olhar voltado para cima, confiantes em nós mesmos e nas bênçãos de Deus.
2 – Amigos: um conhecido rabino estava certa vez oficiando o culto religioso na sinagoga. De repente, chegou um senhor querendo fazer o mesmo. O rabino cedeu imediatamente a honra ao outro. Quando alguém perguntou indignado ao rabino “É justo o senhor deixar um ilustre desconhecido rezar em seu lugar?”. E o rabino respondeu: “O maior ato de justiça que se pode praticar é fazer feliz outro ser humano”.
Em última análise amigos, é isto que significa ser religioso: ser correto, moralmente limpo, honesto consigo mesmo e solidário com o próximo.
Ninguém nos pede que sejamos mais divinos. O que se exige de nós é apenas que sejamos mais humanos.