Existe uma má vontade generalizada nas universidades no Ocidente em relação à natureza do sistema político chinês e em relação à própria China, assinala o pesquisador e escritor Elias Jabbour no Meia Noite em Pequim, da TV Grabois, desta semana, em que convoca a ter um juízo menos colonizado, mais periférico, e inclusive brasileiro, sobre a China.
Jabbour observa que a afirmação de que ‘a China é um país capitalista’ é o único ponto em que convergem correntes de pensamento no Ocidente que vão de marxistas a neoclássicos, passando por keynesianos e estruturalistas.
Em que só varia que, para os primeiros, é um capitalismo de Estado, enquanto para os neoliberais é um capitalismo de livre mercado.
Segundo o pesquisador, o pensamento ocidental, sob uma crise muito grande, vai ficando incapaz de encontrar respostas para fenômenos complexos, como é a China, que é hoje uma fronteira do conhecimento muito grande.
Para Jabbour, a decadência do pensamento ocidental é a decadência objetiva da filosofia mais avançada que a burguesia criou, o positivismo, o que impede que se avance nos estudos sobre a China, e também influencia os marxistas na academia.
Daí que existe um ‘checklist’ na cabeça de todos nós para classificarmos, por exemplo, o que seria um país socialista, diz Jabbour. Se alguns desses itens faltarem no cardápio, então supostamente não é uma experiência socialista.
A própria necessidade de classificação de uma realidade sob categorias transcendentais é um fenômeno que é estranho ao marxismo. “Nós observamos historicamente uma realidade, e a partir delas é que tiramos sínteses historicizantes dessa realidade”, enfatiza Jabbour.
Assim, a China é uma sociedade em que existe capitalismo, é uma sociedade de transição, é uma formação econômico-social orientada ao socialismo por conta da existência tanto de um poder político de novo tipo quanto pelo domínio da propriedade pública da produção sobre todas as outras formas históricas de propriedade.
Isso não impede que na China o novo conviva com os piores fenômenos do capitalismo. Mas sob o pensamento positivista, tendo em vista que na China tem consumismo, tem desigualdade, tem fetiche, tem alienação, essa experiência, por conta da existência de partes dela com essas características, tem que ser jogada no lixo porque não é uma experiência de um novo tipo, não é uma experiência socialista.
Mas o conceito se manifesta no real. Não existe o socialismo pronto e acabado para ser aplicado. É um movimento real que é historicamente determinado e geopoliticamente determinado, ele sublinha.
No nosso livro – acrescenta Jabbour – nós colocamos que o socialismo no século XXI, esse socialismo que a China está tentando encampar, é uma experiência que, por conta da existência dela ocorrer num mundo amplamente dominado pelo capitalismo e onde as relações produtivas sociais de produção e troca a nível mundial, as instituições econômicas em nível mundial, foram criadas pelo capitalismo e reguladas pelo capitalismo, isso cria por si só uma série de restrições às experiências socialistas.
Também, essa experiência chinesa é uma experiência socialista muito embrionária. Ou seja, ela é muito nova, uma criança nasce, cresce, vira adulta e a face dela também muda, e como nós observamos a realidade a partir da visão de que o conceito se verifica no movimento real, nós abrimos mãos de conceitos abstratos para entender o que é socialismo, ele ressalta.
Por exemplo, a abolição da propriedade privada como algo solto no tempo e no espaço, e não como o resultado de um longo processo histórico; abrimos mão disso para observar como o socialismo se apresenta no mundo real.
O socialismo chinês se apresenta ao mundo com a razão como instrumento de governo, destaca o pesquisador. A forma como a China enfrentou a Covid-19 demonstra isso.
E também o fato de que nenhum país, nenhuma formação econômico-social capitalista no mundo é capaz de fazer o que a China fez, justamente por ter o domínio, ou seja, o núcleo duro do seu setor produtivo e financeiro ser a propriedade pública. Isso é fundamental e comandado por um poder político de novo tipo.
Quanto a isso, Jabbour registra ninguém o irá convencer de que o Xi Jinping é enquadrado por bilionários, ou que os bilionários chineses enquadram o Exército de Libertação Popular. Registra, ainda, que na China a propriedade privada não exerce o poder de geração dos ciclos de acumulação na economia e é o setor público que gera os ciclos de acumulação.
Assim, é essa crise do pensamento ocidental que atinge diretamente o marxismo e impede a observação da experiência chinesa. A qual, ele enfatiza, contém dentro de si todos os problemas que o capitalismo traz, e todas as suas contradições, mas também o novo.
Uma outra subjetividade está surgindo frente ao fetiche da mercadoria. A China consegue mobilizar 450 mil voluntários para enfrentar a Covid-19 em Wuhan, três milhões de jovens recém-graduados foram retirar da pobreza os últimos 36 milhões de pessoas.
Para o pesquisador, há uma diferença brutal entre o que os marxistas da academia pensam sobre a China em relação ao que Fidel Castro pensa, que não tinha dúvidas de enquadrar a China como país socialista. Inclusive ele dizia que quem quiser falar de socialismo tem que aprender com a China.
Para concluir, Jabbour indaga porque essa opinião de Fidel, ou a de Hugo Chávez, ou de outros pensadores socialistas latino-americanos, não são levadas em consideração sobre a China na academia, enquanto as de Zizek, David Harvey, Thomas Piketty, e outros marxistas ou progressistas ocidentais, são.
Elias Jabbour é professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ.