CARLOS LOPES
José de Alencar é o fundador do romance brasileiro – e, com o poeta Gonçalves Dias, um dos fundadores da literatura brasileira.
É possível ver em Manuel Antonio de Almeida e seu Memórias de um Sargento de Milícias (1852-1853) um precursor, mas isto não tira Alencar do seu lugar, reconhecido pela maior autoridade literária da época, Machado de Assis.
Entretanto, há poucos dias, li um texto em que Alencar era considerado um escritor racista – tanto em relação aos negros quanto em relação aos índios, perdão, indígenas – e, especialmente, por Iracema (1865), que Antonio Candido considerou o seu melhor livro (é interessante o julgamento geral deste crítico sobre o conjunto da obra romanesca de Alencar: “Desses vinte e um romances, nenhum é péssimo, todos merecem leitura e, na maioria, permanecem vivos, apesar da mudança dos padrões de gosto a partir do Naturalismo. Dentre eles, três podem ser relidos à vontade e o seu valor tenderá certamente a crescer para o leitor, à medida que a crítica souber assinalar a sua força criadora: Lucíola, Iracema e Senhora. Há outros que constituem uma boa segunda linha, como O Guarani. Mais do que isto é difícil dizer, porque a variedade da obra de Alencar é de natureza a dificultar a comparação dos livros uns com os outros.” – v. Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira, 2º volume, Itatiaia, 6ª ed., 1981, p. 222).
Caracteristicamente, o ataque a Alencar conjugava-se com um ataque ao Brasil, mais especificamente, à formação e trajetória do nosso país. Mas isso não é surpreendente: o que é um país sem literatura própria? Nada, até porque inexiste algum país sem literatura. Portanto, o ataque a um fundador da literatura nacional teria que ser, consciente ou inconscientemente, um ataque à nação.
Existe o fato de que Alencar, como político – parlamentar, ministro do Império e membro do Partido Conservador – era um defensor do escravismo. Foi, inclusive, um dos principais adversários da Lei do Ventre Livre, contra o chefe do seu próprio partido, o visconde do Rio Branco.
Mas isso não deveria fazer com que supostos antirracistas atuais quisessem “cancelar” (desculpem-nos o termo) o velho Alencar. O que eram os célebres “pais fundadores” dos EUA, senão a nata dos senhores de escravos daquele país? Por algum acaso algum combatente sério contra o racismo – por exemplo, Martin Luther King Jr. – propôs “cancelá-los” e acabar com sua obra, ou seja, com os EUA enquanto país independente?
Nelson Werneck Sodré já abordou as relações – e as limitações – de Alencar quanto à nacionalidade no brilhante ensaio “José de Alencar (a ficção numa sociedade escravocrata)”, incluído em seu livro “A Ideologia do Colonialismo” (ISEB, Rio, 1961, pgs. 37 a 57).
O mesmo autor, em sua “História da Literatura Brasileira” observa como a figura do índio corresponde à figura cultural da nacionalidade – antes de corresponder a uma realidade, algo reconhecido pelo próprio Alencar em “Como e Porque sou Romancista” – e como era impossível, em uma sociedade escravagista, que essa figura cultural da nacionalidade fosse representada pelo negro, africano ou descendente de africanos.
Sob esse aspecto, nos parece que Werneck até mesmo subestima um pouco os romances urbanos ou não-indianistas de Alencar:
“Cronista, teatrólogo, orador e político, José de Alencar ficou realmente na história literária como o romancista por excelência de uma época. Nem mesmo suas incursões no campo do romance urbano, de costumes, com os seus perfis de mulher, deslocaram a preferência dos leitores daqueles livros em que, no campo de sua predileção, trabalhou com os materiais característicos, o índio e a paisagem. Sua observação, denunciada na agudeza das crônicas, apanharia muitos dos traços da sociedade brasileira do tempo, situando-os nas figuras femininas e nas que as rodeiam. A mestria, entretanto, estava naquilo que, em sua obra, continua a atrair as atenções, e isso é que assegura a permanente fascinação que os seus livros exercem, constituindo uma iniciação literária que se repete através do tempo. Nem pode ser desmerecido o seu esforço, apesar dos reduzidos resultados, em introduzir na criação literária uma linguagem mais próxima dos brasileiros do que aquela utilizada pelos que imitavam os mestres lusos. Fundador do romance nacional, José de Alencar pretendeu compor um quadro do país que abarcasse toda a sua variedade. (…) Discutida, analisada, negada no todo ou em parte, a obra de José de Alencar não só está incorporada ao patrimônio literário brasileiro, com um lugar de indiscutível destaque mas persiste na curiosidade popular, onde encontra ressonância, o que não deixa de ser um expressivo traço de sua força” (Nelson Werneck Sodré, História da Literatura Brasileira, Difel, 7ª ed., 1982, p. 282).
Mas está correto o caráter de unidade nacional pretendido por Alencar em sua obra. O primeiro a apontá-lo foi, precisamente, Machado de Assis.
Aliás, nesse pioneirismo, o primeiro mesmo, antes até de Machado, foi o próprio Alencar, em sua introdução a “Sonhos D’Ouro” (1872). Um trecho:
“Eis uma grande questão, que por aí anda mui intrincada, e de todo ponto desnorteada, apesar de tão simples e fácil que é. Lá uns gênios em Portugal, compadecendo-se de nossa penúria, tomaram a si decidir o pleito, e decretaram que não temos, nem podemos ter literatura brasileira.
“A grande inteligência de Alexandre Herculano nos profetizara uma nacionalidade original, transfusão de duas naturezas, a lusa e a americana, o sangue e a luz. Mas os ditadores não o consentem; que se há de fazer. Resignemo-nos. Este grande império, a quem a Providência rasga infindos horizontes, é uma nação oca; não tem poesia nativa, nem perfume seu; há de contentar-se com a manjerona, apesar de ali estarem rescendendo na balsa a baunilha, o cacto, e o sassafrás.
“Os oráculos de cá, esses querem que tenhamos uma literatura nossa; mas é aquela que existia em Portugal antes da descoberta do Brasil. Nosso português deve ser ainda mais cerrado, do que usam atualmente nossos irmãos de além-mar; e sobretudo cumpre eriçá-lo de hh, e çç, para dar-lhe o aspecto de uma mata virgem.
(…)
“Aos que tomam a sério estas futilidades do patriotismo, e professam a nacionalidade como uma religião; a esses hás de murmurar baixinho ao ouvido, que te não escutem praguentos estas reflexões:
“‘A literatura nacional que outra cousa é senão a alma da pátria, que transmigrou para este solo virgem com uma raça ilustre, aqui impregnou-se da seiva americana desta terra que lhe serviu de regaço; e cada dia se enriquece ao contato de outros povos e ao influxo da civilização?’
“O período orgânico desta literatura conta já três fases.
“A primitiva, que se pode chamar aborígene, são as lendas e mitos da terra selvagem e conquistada; são as tradições que embalaram a infância do povo, e ele escutava, como o filho a quem a mãe acalenta no berço com as canções da pátria, que abandonou.
“Iracema pertence à essa literatura primitiva, cheia de santidade e enlevo, para aqueles que veneram na terra da pátria a mãe fecunda — alma mater, e não enxergam nela apenas o chão onde pisam.
“O segundo período é histórico; representa o consórcio do povo invasor com a terra americana, que dele recebia a cultura, e lhe retribuía nos eflúvios de sua natureza virgem e nas reverberações de uma natureza esplêndida.
“Ao conchego desta pujante criação, a têmpera se apura, toma alas a fantasia, a linguagem se impregna de módulos mais suaves; formam-se outros costumes, e uma existência nova, pautada por diverso clima, vai surgindo.
“É a gestação lenta do povo americano, que devia sair da estirpe lusa, para continuar no novo mundo as gloriosas tradições de seu progenitor. Esse período colonial terminou com a independência.
“A ele pertencem o Guarani e as Minas de Prata. Há aí muita e boa messe a colher para o nosso romance histórico; mas não exótico e raquítico como se propôs a ensiná-lo aos beócios, um escritor português.
“A terceira fase, a infância de nossa literatura, começada com a independência política, ainda não terminou; espera escritores que lhe deem os últimos traços, e formem o verdadeiro gosto nacional, fazendo calar as pretensões hoje tão acesas, de nos recolonizarem pela alma e pelo coração, já que não o podem pelo braço.
(…)
“Onde não se propaga com rapidez a luz da civilização, que de repente cambia a cor local, encontra-se ainda em sua pureza original, sem mescla, esse viver singelo de nossos pais, tradições, costumes e linguagem, com um sainete todo brasileiro. Há, não somente no país, como nas grandes cidades, até mesmo na corte, desses recantos, que guardam intacto, ou quase, o passado.
“O Tronco do Ipê, o Til e o Gaúcho, vieram dali; embora, no primeiro sobretudo, se note já, devido à proximidade da corte, e à data mais recente, a influência da nova cidade, que de dia em dia se modifica, e se repassa do espírito forasteiro” (cf. José de Alencar, Sonhos D’Ouro, Garnier, 1872, publicado sob o pseudônimo de Senio, ortografia atualizada por nós).
A própria distribuição geográfica dos romances de Alencar, que vão do Ceará ao Rio Grande do Sul, mostram essa tentativa de fazer da literatura a “alma da pátria”.
José de Alencar é o primeiro escritor – o primeiro romancista – brasileiro com os dois pés fincados no Brasil. Não se pode dizer isso de Macedo (nem do seu melhor romance, “As Mulheres de Mantilha”) ou de Manuel Antonio de Almeida, cujo único romance é passado na época de D. João VI.
Mas, é verdade, ele era um escravista, que defendeu a manutenção da escravidão no parlamento. Estranhamente, foi autor de uma peça teatral abolicionista, Mãe, era amigo de abolicionistas como Joaquim Serra e republicanos como Salvador de Mendonça, e seu personagem principal de O Tronco do Ipê, Mário, é um adversário do tráfico negreiro.
Mais ainda, teve como melhor amigo um homem que não era branco – Machado de Assis – e foi o responsável pelo lançamento do jovem poeta Castro Alves, depois de ouvir com prazer os seus poemas contra a escravidão.
Porém, não foi ele que procurou Castro Alves, mas este que foi a sua casa: o poeta dos escravos não achava que José de Alencar fosse infenso ao abolicionismo. Tanto assim que foi procurá-lo, pedindo que o promovesse – no que foi bem sucedido: Alencar enviou-o ao grande crítico da época, Machado de Assis, que publicou uma carta pública, elogiando o poeta. Destinatário da carta: José de Alencar.
Então, a questão reside nessas contradições de Alencar. Qual o significado delas?
A Independência se fez com base na classe dos grandes proprietários territoriais – ou seja, dos senhores de escravos. Não havia outra classe – isto é, uma burguesia – em que pudesse se basear. O próprio José Bonifácio, em sua “Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil Sobre a Escravatura”, reconhece que era impossível, naquele momento, abolir a escravatura. Vejamos como Bonifácio formula a questão:
“O mal está feito, senhores, mas não o aumentemos cada vez mais; ainda é tempo de emendar a mão. (…) já que somos forçados pela razão política a tolerar a existência dos atuais escravos, cumpre em primeiro lugar favorecer a sua gradual emancipação, e antes que consigamos ver o nosso país livre de todo deste cancro, o que levará tempo, desde já abrandemos o sofrimento dos escravos, favoreçamos, e aumentemos, todos os seus gozos domésticos e civis” (grifos nossos).
Alencar nascera em 1829, isto é, sete anos após a Independência. Pertencia à classe dos senhores de escravos, mas também era neto de Bárbara de Alencar, revolucionária de 1817, e filho do padre José Martiniano de Alencar, revolucionário da Independência, de quem herdou o nome.
As suas contradições eram a expressão das contradições da sua própria classe – tensionada entre construir uma nação e impedir que essa nação se desenvolvesse, para manter a escravidão.
Nesse sentido, os conflitos de Alencar com a monarquia são expressivos dessas contradições, pois a monarquia, como afirmaram José do Patrocínio e Luiz Gama, era, exatamente, a superestrutura da escravidão (sobre os conflitos de Alencar com a monarquia, v. Lira Neto, “O Inimigo do Rei: Uma biografia de José de Alencar”, Globo, 2006).
Desenvolver a nação significava desenvolver as relações capitalistas no país. As relações escravagistas, a partir de 1850 (isto é, a partir do fim verdadeiro do tráfico africano), tornaram-se o principal entrave ao desenvolvimento do Brasil, na medida em que bloqueavam as relações capitalistas – o caso de Mauá, com sua falência, é mais que ilustrativo dessa situação.
Mas nesse momento, começou a desagregação da classe de proprietários territoriais.
Alfredo Bosi, em “História Concisa da Literatura Brasileira”, nota a aversão de Alencar ao dinheiro, que, progressivamente, toma conta do Segundo Império, à medida que as relações capitalistas vão se desenvolvendo:
“É sempre com menoscabo ou surda irritação que olha o presente, o progresso, a ‘vida em sociedade’; e quando se detém no juízo da civilização, é para deplorar a pouquidade das relações cortesãs, sujeitas ao Moloc do dinheiro. Daí o mordente das suas melhores páginas dedicadas aos costumes burgueses em Senhora e Lucíola.
(…)
“À idolatria do dinheiro, que aviltaria a nova sociedade do Segundo Império, o Conselheiro José Martiniano de Alencar opusera o seu desprezo impotente (V. o Prefácio ao Gaúcho). Mas o romancista dispunha do refúgio de outros mundos onde a imaginação não sofria limites e onde se liberava ao talhar heróis soberbos e infantis que em refrangido espelho tão bem o projetavam” (cf. Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, Cultrix, 2ª ed., 1994, pp. 137-138).
Bosi aventa como perspectiva, para Alencar, a volta ao mundo natural e selvagem. Porém, como isso era já completamente impossível em sua época, ele estava diante de um impasse: a própria construção da nação com que quis contribuir através da literatura, levava a outro estágio dessa construção, que negava o país escravista e monárquico de que fazia parte. Ele mesmo se chocou com a monarquia, sem compreender que estava se chocando com o escravismo que, explicitamente, politicamente, defendia.
Alencar, portanto, corresponde a um momento da cultura nacional – um momento da constituição da nacionalidade. Sua importância está em, naquele momento, conceber a literatura brasileira como separada, como independente de outras literaturas, em especial da literatura portuguesa.
Era necessária uma especial independência ideológica para assim conceber, naquela época, a literatura brasileira. Daí a atração que exerceu nos meios literários e a sua grande popularidade. Por isso, pode-se dizer que ele abriu o caminho para Machado e outros escritores posteriores.
Alencar viveu pouco, pela média atual. Tuberculoso desde os 19 anos, morreu aos 48 anos, em dezembro de 1877. Entretanto, deixou 21 romances, numa vida produtiva – como romancista – que percorreu desde Cinco Minutos (1856) até Senhora (1875) e uma obra póstuma (Encarnação, 1893).
A morte de Alencar é também o encerramento de uma era da literatura brasileira. Outra se abriria quatro anos depois, com a publicação, por Machado, de Memórias Póstumas de Brás Cubas.
A comparação entre essas duas eras – e esses dois escritores – tem importância para a situação de Alencar na literatura (e também para a situação de Machado, mas esse não é o nosso assunto).
Bosi, no livro que citamos, aponta que a redenção é um tema recorrente em Alencar. Um exemplo dos mais nítidos está no último romance que publicou em vida, Senhora, em que Seixas, o marido comprado por Aurélia, se regenera – a história de sua regeneração é a própria trama do romance. Outro exemplo é a prostituta de Lucíola (1862). Ou a inocência do Barão em relação à morte do pai de Mário, descoberta ao fim de O Tronco do Ipê.
Não há nada parecido no Machado da segunda fase. A sociedade do Segundo Império que ali aparece é tremendamente decadente – e a infelicidade ou mediocridade de seus principais personagens criou toda uma ensaística sobre o suposto “pessimismo” de Machado de Assis.
Portanto, podemos concluir que, em Alencar, apesar de seu desajustamento com a vida oficial da época, havia ainda esperança dentro daquela sociedade. Era uma esperança limitada por torturantes fatores, mas era, afinal, esperança.
Nada semelhante, repetimos, pode se encontrar no Machado da segunda fase, aquela inaugurada por Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Uma última questão – pelo menos para este sucinto artigo – é a relação de Alencar com a literatura estrangeira de sua época.
Já frisamos o seu objetivo de ter no Brasil uma literatura nacional. Mas isso não quer dizer que fosse indiferente ou que não absorvesse esteticamente a literatura de outros países.
Sabemos que ele leu, atentamente, Balzac, ao qual teve acesso através do amigo Francisco Otaviano. Por seu próprio testemunho, também sabemos que leu o visconde de Chateaubriand. E é fácil, pela leitura de O Guarani, perceber que ele leu o norte-americano James Fenimore Cooper, hoje principalmente conhecido por O Último Dos Moicanos (1826).
Porém, aqui estamos diante de outra contradição, tanto de Alencar quanto da época: um escritor antiburguês, aversivo ao dinheiro que invadia os poros da sociedade do Segundo Império, tinha por base cultural a literatura burguesa de outros países.
A contradição parecerá menos aguda se lembrarmos que serão os escritores burgueses os principais críticos da sociedade burguesa de seus países (desde Balzac a Zola, passando por Flaubert, para nos ater apenas aos franceses). E, mais, que muitos românticos europeus, como forma de resistir à vulgaridade burguesa, aquela que transforma tudo em mercadoria, demonstraram uma inequívoca nostalgia do passado, isto é, de épocas pré-capitalistas.
Entretanto, o conhecimento de Balzac deu a Alencar um viés realista difícil de encontrar em outros autores do romantismo. Este é um dos motivos da sua permanência na literatura brasileira.
Muito bom. Parabéns.
Falar do romantismo brasileiro e não mencionar
Bernardo guimaraes e um crime
Não, não é. Até porque o artigo não é sobre o romantismo, mas sobre José de Alencar e seu lugar na literatura brasileira.
Ele era escravista, pois foi educado pela família
e pela sociedade para ser. No entanto, a educação intelectual por qual passou foi se desfazendo do viés racista.