Josué Guimarães é um autor importante na história da literatura brasileira.
Surpreendentemente, sua obra ficcional, iniciada com o livro de contos “Os Ladrões” (1970), foi toda criada após o golpe de 1964, quando Josué enfrentou uma odiosa perseguição – durante um tempo, viveu na clandestinidade, até ser preso em 1969, em Santos; posteriormente, recorreu ao uso de pseudônimos para conseguir publicar alguma coisa na imprensa.
Em menos de 20 anos (ele faleceu em 1986), o escritor gaúcho escreveria “Depois do último trem”, “É tarde para saber”, “Os tambores silenciosos” – talvez a sua obra mais conhecida – “Dona Anja”, “Enquanto a noite não chega”, “Camilo Mortágua”, “Amor de Perdição”, os dois primeiros volumes de “A Ferro e Fogo” (ele não teve tempo para terminar o terceiro e último volume), uma série de livros para crianças (“A casa das quatro luas”, “Era uma vez um reino encantado”, “A onça que perdeu as pintas”, “Meu primeiro dragão”, “História do agricultor que fazia milagres”, “O avião que não sabia voar”, “A última bruxa”), mais dois livros de contos (“O cavalo cego” e “O gato no escuro”) e uma peça de teatro (“Um corpo estranho entre nós dois”).
Antes de 1964, Josué foi, sobretudo, jornalista (desde 1939, quando mudou para o Rio de Janeiro) e político (em 1951, foi o vereador mais votado, pelo PTB, em Porto Alegre, e vice-presidente da Câmara; depois, foi chefe de gabinete de João Goulart na Secretaria de Justiça do Rio Grande do Sul, e, no governo Jango, de 1961 a 1964, foi diretor da Agência Nacional).
Pois foi este homem que, em 1952, realizou uma viagem à União Soviética e à China Popular. Desta viagem resultou o livro “As Muralhas de Jericó”, que jamais foi publicado durante a vida do autor.
Espantosamente, é seu primeiro livro, e já mostra as qualidades de estilo que se revelariam 18 anos depois, quando iniciou sua série de contos, romances e novelas.
O título é uma espécie de trocadilho ideológico: Josué, o personagem bíblico, sucessor de Moisés, fez ruir, ao som de trombetas, as muralhas da cidade de Jericó; já o moderno nacionalista Josué Guimarães pretendia, com seu livro, fazer ruir – nem que fosse um pouquinho – a cortina de ferro de desinformação, que o imperialismo levantara em torno da URSS e da China.
Não sei até que ponto é confiável a história, contada pela prefaciante da edição publicada pela L&PM, de que teria sido Getúlio Vargas, então presidente da República, quem aconselhou Josué Guimarães, em jantar no Palácio do Catete, a não publicar seu livro de viagem “para não perturbar a ordem estabelecida no país”.
Não parece o estilo de Getúlio, em geral muito cioso no respeito ao espaço alheio, e cuja atividade consistia, precisamente, em mudar “a ordem estabelecida no país” – o que fez, até ao extremo do próprio sacrifício.
A prefaciante atribui essa suposta informação a familiares de Josué Guimarães.
Pode ser, mas, tanto esse prefácio, quando as notas acrescentadas ao livro pela mesma prefaciante, não inspiram muita confiança. De forma geral, ela exibe todos os preconceitos anticomunistas que Josué Guimarães jamais demonstrou – e que, no texto, faz um tremendo esforço para combater, esperando que seus leitores os superem, e apontando o bloqueio da imprensa ocidental pelo imperialismo como responsável pelas deformações em relação à URSS e à China daquela época.
Quanto a esse problema da edição, ficaremos por aqui, acrescentando apenas que algumas notas revelam uma deplorável ignorância (por exemplo, não é verdade que a URSS tenha adotado uma “política de isolamento”, que Churchill descreveu com o termo “cortina de ferro” – pelo contrário, Churchill estava atribuindo aos soviéticos o resultado da política imperialista de bloqueio à URSS; e também não é verdade que a Komintern – a Terceira Internacional – tivesse por objetivo “estabelecer a sujeição total dos partidos comunistas de cada país”; se fosse assim, jamais haveria revolução na China).
Mas nada disso prejudica – ou nem isso é capaz de prejudicar – o valor literário e histórico de “As Muralhas de Jericó”.
Nesta página, o leitor poderá ler uma pequena amostra. É o relato que Josué faz de sua visita ao Mosfilm, um dos maiores estúdios russos da época (e, aliás, até hoje, como se pode constatar pelas duas Mostras Mosfilm de Cinema, realizadas no Brasil, em 2014 e 2015).
C.L.
JOSUÉ GUIMARÃES
Estamos na sala de projeções do único cinema em três dimensões de Moscou. É um cinema, como eles próprios dizem, em período experimental. O povo assiste aos filmes coloridos, depois, se quiser, poderá mandar as suas observações para os estúdios produtores.
É uma sala pequena, talvez para trezentos espectadores. O prédio é velho e adaptado, as cadeiras são numeradas como, aliás, em qualquer outro cinema da União Soviética. Não há perigo de superlotação e ninguém pode entrar após a projeção da película. A frase que mais se lê em qualquer lugar de Moscou é o clássico É PROIBIDO FUMAR, os cinemas não são exceção da regra, antes pelo contrário, não se pode fumar na sala de projeção nem sequer no saguão de entrada. Fumar mesmo só na rua, se o vício for maior que o medo ao frio.
A tela é de vidro e pequena, de acordo com o tamanho da sala, e apresenta raiaduras em diagonal, entre vidro fosco e brilhante. Receberíamos óculos de papelão, com papel celofane verde e encarnado? Não. Eles eliminaram o invento norte-americano dos óculos, por impraticável, criando um outro sistema que, se não estou enganado, se resume no uso de telas de vidro superpostas e dupla, ou tripla, projeção.
Há um ponto ideal para que nossos olhos encontrem a terceira dimensão, e se faz necessário manter a cabeça em determinada posição. E o que se vê assim é simplesmente assombroso. A tela se transforma, de repente, numa grande janela aberta. As cenas se desenrolam como se nós, os espectadores, estivéssemos debruçados num janelão, enxergando a profundidade de maneira impressionante. Bastará, entretanto, tirar a cabeça daquele ponto ideal para a imagem se tornar menos luminosa e sem profundidade. Esse é o defeito que está mobilizando os técnicos soviéticos de cinema, desejosos todos de encontrar uma solução que alivie o público da imobilidade completa a que está obrigado atualmente. Imobilidade extremamente cansativa.
Mas não resta dúvida que o passo dado pela técnica soviética, proporcionando a terceira dimensão, em cores, em sala comum de projeção, é dos mais avançados na história do cinema. Os objetos tomam volume e a perspectiva é real. As árvores, realmente, balouçam seus galhos, independente de qualquer outra cena de fundo que adquire o seu plano definido na paisagem. E quando alguma coisa avança em direção da máquina, da objetiva, essa alguma coisa se projeta fora da tela como se penetrasse na própria sala onde estamos. A isso tudo, devo acrescentar o perfeito colorido dos filmes soviéticos atuais, considerados como os de maior perfeição em todo o mundo, sem os exageros de cores que estamos acostumados a ver nos filmes tecnicolor, onde em geral o céu é azul carregado, os cavalos são vermelhos e as pessoas são bonecos cor-de-rosa, de cabelos azuis.
Afirmam os que se dizem entendedores de fotografias e de cores que o processo usado na Rússia é Agfa, levado da Alemanha, mas de uma coisa não podemos escapar: é reconhecer que o colorido dos filmes soviéticos é incomparavelmente superior a qualquer similar alemão, mesmo em se tratando de cores no ramo da fotografia. Há, nos dias atuais, no colorido do cinema russo, uma delicadeza maravilhosa de tons. Nuances onde mal sentimos a cor, e muitas vezes as suas paisagens apresentam céus de matizes diversos, desde o alaranjado discreto do crepúsculo ao céu azul-claro dos dias ensolarados. As pessoas em cena têm pele natural e são mais vivas, no entanto, do que quaisquer outras que tenhamos visto anteriormente. Uma prova está num dos poucos filmes coloridos da União Soviética que foi liberado para as plateias brasileiras: Flor de Pedra. Busquemos, pois, nas críticas dos nossos entendidos em cinema, a opinião sobre a técnica da cor dos estúdios de Moscou.
Stalin tem uma frase que foi reproduzida na entrada de um dos maiores estúdios da União Soviética, o Mosfilm: “O cinema, nas mãos do poder soviético, representa uma valiosíssima e inapreciável força”. Lenin tinha ido mais longe ao desejar prestigiar a cinematografia na Rússia, afirmando: “De todas as artes, a mais importante para nós é o cinema”.
Seria avançar muito querer afirmar que essa ou aquela manifestação de arte tenha recebido do governo da União Soviética especial proteção, ou merecido maior atenção. Todos nós sabemos que o balé corre pelo sangue dos russos e a dança faz parte de sua vida, quase dos seus hábitos. Hoje em dia o teatro é uma potência e o autor mais representado continua sendo Shakespeare, o que nos dá bem uma ideia do nível cultural das plateias.
Assim, a despeito das frases de Lenin e dos reforços recebidos da parte de Stalin, não nos aventuramos a afirmar que o cinema tenha merecido atenção especial, quanto mais proteção, mas simplesmente dizer que a sétima arte, tão abandonada no Brasil, é hoje tida na Rússia não só como uma grande e poderosa indústria, capaz de canalizar rios de dinheiro para o povo soviético, como, e principalmente, um meio de levar beleza e bom gosto às multidões.
Não vemos um produtor de filmes na União Soviética lançando estórias de bandidos e mocinhos, de amores triangulares, de crimes, de enredos policiais. Não há o interesse de fazer o filme sensação, o grande golpe de bilheteria. Que foi Flor de Pedra – para citar apenas o mais conhecido – se não uma apoteose de arte, de cores, de bom gosto, enfim?
Mas passemos para a Mosfilm, um dos maiores estúdios de Moscou, situado, praticamente num arrabalde da Capital da Rússia dos nossos dias. Ele faz parte do grupo de cinco grandes estúdios soviéticos que estão dentro dos limites da cidade de Moscou e o valor dos seus estúdios atinge a casa dos cem milhões de rublos. Não há, é natural, magnatas do cinema, e tampouco veremos agentes de publicidade criando estórias de amores e de divórcios entre os principais artistas. O povo todo sabe que as artistas são casadas, em sua grande maioria, e têm filhos e são humanas como qualquer mocinha espectadora. Mesmo porque nem as próprias revistas de cinema — de kino — perdem tempo com futilidade e sensacionalismo. Os redatores especializados entram fundo na crítica do valor da obra apresentada, analisando os seus defeitos e salientando as suas vantagens como obra de arte. Desaparecendo a finalidade comercial como base da produção, os filmes e os produtores se libertam de uma série de injunções materiais, dando largas à imaginação e ao bom gosto.
A Mosfilm produz somente películas coloridas, não se dedicando a trabalhos em preto e branco. Atualmente realiza de doze a quinze filmes de longa metragem. Em geral, uma película requer quatro meses de trabalho. As despesas com cada obra variam de três a nove milhões de rublos. Os filmes mais conhecidos já produzidos pela Mosfilm são: A Queda de Berlim, Ivan, o Terrível, Flor de Pedra, A Batalha de Stalingrado, Lenin em Outubro, Cossacos de Kuban, Encontro sobre o Elba, Contos da Terra Siberiana, Homens Valentes e Véspera de Natal, de Gogol, que está sendo produzido em terceira dimensão.
Assistimos em Moscou, em dois dias consecutivos, A Queda de Berlim, considerada a melhor produção soviética, tendo custado a importância de nove milhões de rublos. Ora, valendo o rublo cinco cruzeiros, é fácil avaliar o custo dessa obra monumental que procura retratar – e o conseguiu brilhantemente – a odisseia dos soldados e do povo soviético na luta contra o nazismo. A estória se resume na vida de um jovem e modesto operário russo que obtém o “Prêmio Stalin” batendo todos os recordes de produção individual numa grande usina de aço. Por esse motivo é levado à presença do chefe do governo e participa de um almoço na companhia dos maiores homens da União Soviética. Nesse meio tempo, os alemães invadem a Rússia e dominam as cidades do oeste. O operário ingressa nas forças armadas e consegue um dia chegar até Berlim, quando participa da implantação da bandeira vermelha no alto do Reichstag. O filme reconstitui a conferência de Yalta entre Churchill, Roosevelt e Stalin e retrata os últimos dias de Hitler e Eva Braun nos subterrâneos anti-aéreos, atendo-se, na medida do possível, à verdade histórica, de acordo com documentos encontrados. É uma película forte e impressionante, e as cenas de batalha – quase todas reconstituídas – são de uma autenticidade admirável.
O sistema de salários na indústria de filmes na União Soviética também difere muito do que conhecemos. Um diretor, por exemplo, recebe de cinco a seis mil rublos mensais e, ao finalizar a sua obra, tem o direito a uma espécie de gratificação de setenta e cinco mil rublos. Os principais artistas recebem setenta e cinco por cento do salário do diretor – isto é – de três mil e quinhentos a quatro mil e quinhentos rublos mensais, e ainda a mesma percentagem sobre a gratificação final de setenta e cinco mil rublos, que vem a ser quarenta e cinco mil cruzeiros. Uma organização distribuidora financia os trabalhos prevendo todas as despesas, salários e gratificações e, após, lança o filme no mercado nacional, arrecadando as receitas e prestando contas ao Estado.
Encontramos o diretor Gregorie Alexandrov às voltas com cenas do seu novo filme Glória ao Povo, cuja artista principal é Vinogradova. Tem como operador o célebre Tissé, autor dos melhores trabalhos de câmera na União Soviética. O filme gira em torno da vida do grande compositor russo Glinka, transcorrendo a maioria das cenas na Itália, onde aquele músico obteve os seus maiores sucessos.
Alexandre Prushko – o hoje célebre diretor de Flor de Pedra – nos recebe com um grande sorriso e paralisa a filmagem de seu novo trabalho Sadko. Interessa-se em saber do êxito e da crítica de seu filme no Brasil e agradece os elogios que fazemos à sua obra, onde o colorido atinge toda a sua grandeza. E sobre Sadko – uma antiga lenda russa que já serviu de motivo para uma ópera – diz Alexandre Prushko:
– Considero este meu trabalho superior à Flor de Pedra, pois hoje disponho de maiores recursos técnicos.
Horas depois assistimos a quatro partes de Sadko, já concluídas e com som, e não tínhamos dúvidas da afirmativa de Prushko: o trabalho será superior a Flor de Pedra. Stolizrov, o principal ator, também trabalhou naquele filme anterior de Prushko, e é considerado hoje um dos maiores e mais queridos atores da União Soviética.
Outro diretor não menos famoso nos é apresentado na Mosfilm: Abraão Room. Ele dirigiu os filmes A Baía da Morte, Tribunal de Honra, O Fantasma que Não Volta, e agora dirige, de Sheridan, Escola de Intrigas, em que atuam todos os grandes atores do famoso Teatro de Arte da Rússia.
Quando esses filmes serão exibidos no Brasil? Não sabemos. Eles não contêm propaganda comunista, não defendem qualquer ideologia. São, na sua grande maioria, obras-de-arte. Enquanto isso, os nossos cinemas repetem velhas películas americanas, na falta de obras novas, e o nosso público bate palmas para sensacionais estórias de gangsters onde sempre o passivo de mortes é assustador.